Podem as burocracias inovarem como startups?

Podem as burocracias inovarem como startups?

Velocidade e dinâmica são termos que podem ser aplicados em diálogos distintos, mas tratando-se de tecnologia e futuro, tornaram-se palavras-chave no vocabulário nas organizações que aceitam e valorizam essas capacidades. O emoji de um foguete é símbolo popularmente atrelado a coisas ou pessoas que estão numa fase de crescimento e avanço, em especial as startups. Esse símbolo, ainda que reduzido, consegue condensar a noção comum acerca dessas novas formas de surgirem organizações, extinguir estruturas ineficientes e definir como combustível da governança, justamente a tecnologia. O lançamento desses foguetes super inovadores, que são as startups, tornaram-se mais um critério de comparação entre o mercado privado e as instituições administradas pelo Estado, de modo a ressaltar as críticas recorrentes acerca do modo de organização e geração de resultados. Para iniciar a discussão, alguns pré-conceitos podem ser revistos acerca do que realmente são as burocracias e como destravar algumas questões mais aprofundadas e até controversas da questão da inovação.

A concepção moderna de burocracia é construída sob influência de contextos históricos, interpretações sociológicas e que em alguns casos não ultrapassam o campo da opinião. Max Weber, destacado protagonista na formação da Sociologia, consegue definir, de maneira isolada, o que é então a burocracia, bem como suas aparições anteriores à formação dos Estados modernos, além da sua extensão funcional sobre as organizações e eventos coordenados. Ele indica: "A burocracia é o meio de transformar a 'ação comunitária' em uma 'ação societária' organizada racionalmente. Por isso, a burocracia, como instrumento de 'societarização' das relações de poder". De maneira simplificada, o objetivo da burocracia é demonstrar de maneira estruturada os caminhos processuais que serão percorridos nas atividades que serão realizadas pelo Estado. Ainda assim, os traços burocráticos são encontrados em empresas privadas com organização hierárquica e cadeias formais de trabalho e comunicação, ou seja, a burocracia trata da organização em si dos processos.

Contudo, processos mal planejados ou com aplicação deficitária conseguiram, ao longo do tempo, serem relacionados e atribuídos a um adjetivo de "burocráticos". Esse modelo de pensamento decorre de experiências ruins com organizações estatais, normalmente relacionadas a emissão e regularização de cadastros físicos e jurídicos, licenças e alvarás. O descontentamento parte também de uma parcela especial das sociedades modernas: das pessoas jurídicas, os "CNPJs". No entanto, até que ponto essa é uma particularidade das organizações geridas pelo Estado? São os processos excedentes e dispensáveis em importantes redes formais de informação e patrimônio (público e privado)? Numa reflexão acerca dos levantamentos, alguns exemplos recentes no Brasil podem facilitar a análise.

O relacionamento entre instituições financeiras e clientes tem perdurado em percalços e pouco movimento de mudança focado na experiência e usabilidade dos serviços oferecidos. As expressivas cestas de taxas aplicadas às contas bancárias sucediam em insatisfação, mas com poucas opções no mercado, os clientes não eram apresentados a taxas e alíquotas com demasiadas  distâncias entre si. O surgimento das instituições de pagamento, as fintechs (empresas de serviço financeiro concentradas de tecnologia), ofereceu possibilidades que abrangiam de modo realista perfis com menor poder financeiro e iniciantes nos mercados, tais como MEIs, recentes graduados e famílias com renda que não eram tão abordadas pelas instituições tradicionais. As diferenças nas taxas, análises de perfil e oferecimento de crédito conseguiram oferecer aos consumidores possibilidades que até então simplesmente não existiam. Todavia, a inovação financeira não se restringe ao mercado privado; em outubro do ano passado, o Banco Central lançou o "Pix", um novo meio de transferência financeira. Diferente das transferências existentes, como TED e o DOC, esse tipo destaca-se pela gratuidade da transferência para pessoas físicas, a disponibilidade ilimitada e a eficiência, resultado da automação do processo. Tanto no caso das fintechs quanto o Pix, a inovação foi a ferramenta capaz de mudar o modelo vigente existente.

Na perspectiva estratégica mercadológica, captar as lacunas e a necessidade de um público que ainda não tem as demandas atendidas é um processo "comum" de expansão e conquista de mercado das organizações privadas ou mistas. Na perspectiva de planejamento de país - que ultrapassa governos e que é responsabilidade do Estado -, Keynes aponta: "O importante para o governo não é fazer coisas que os indivíduos já estão fazendo, e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior; mas fazer aquelas coisas que no momento não são feitas de forma alguma". Coexistindo, as inovações oriundas do mercado privado podem ser incentivadas por autarquias e órgãos reguladores; o Estado, de maneira paralela, consegue ser direcionado para fins maiores e que sejam capazes de impactar de modo escalar o crescimento.

A presença de um Estado mais ativo e que desbrave além das "falhas de mercado", é argumentada na obra "Estado Empreendedor" (2014) da economista ítalo-americana Mariana Mazzucato. A autora, inicialmente, é explícita ao recusar a ideia de uma dicotomia que rivaliza o Estado e os mercados: "[...] aproveitam esse contraste conveniente e dão munição para a dicotomia entre um setor privado dinâmico, inovador, competitivo e 'revolucionário' e um setor público preguiçoso, burocrático, inerte e 'intrometido'". Ela utiliza alguns exemplos de sucesso para demonstrar como o Estado vem sendo um investidor de risco e arrojado em alguns casos de sucesso - ou não - de inovação tecnológica.

 

Quando Steve Jobs, à frente da Apple, lançou o histórico "iPhone" - um smartphone que introduziu no mercado um produto capaz de ser um conjunto de bússola e computador móvel de peso e tamanho mínimo em comparação a máquinas tão potentes quanto o aparelho - formou-se um grande alvoroço acerca daquela impressionante criação. Contudo, de onde surgiram tantas ferramentas que existiam naquele conjunto de funções singulares?

O GPS (Sistema de Posicionamento Geográfico) e o prenúncio do que seria a internet, por exemplo, foram resultados de demasiados anos de investimento, pesquisa e desenvolvimento de setores de defesa e de desenvolvimento da máquina estatal.

Em startups de variados modelos de negócios, os investidores no estilo venture capital (capital de risco) apostam em ideias com poucos recursos e expectativas de resultados (em alguns casos, sem qualquer materialização). Em investimentos que demandam longo prazo e não se distanciam de prejuízos nos projetos pilotos - todavia, exerçam atividades com objetivos de grande escala -, comumente tem o Estado como parcial ou investidor integral. Assim ocorre em projetos de transformação e substituição de matriz energética, políticas públicas de educação e saúde e tantos outros. A questão é,  quanto tempo até que os pesos da balança sejam insuportáveis até mesmo para um Leviatã, como Hobbes propôs em sua metáfora?

Alguns conceitos de planejamento oriundos do processo de design conseguem contribuir de maneira criativa no desempenho de planos e aplicações. No campo do empreendedorismo, a abordagem de Design Thinking (método inspirado no modo de eficácia em projetos de design) tem se mostrado atuante e positiva na geração de resultados de equipes e projetos, em decorrência da ferramenta multidisciplinar e focada na criação que detém. Michael Barzelay em “Gestão pública orientada ao design” (2021) consegue expandir esse modelo de pensar e criar esquematizando os sensos necessários para refletir, elaborar e aplicar projetos de maneira sistemática e que consiga ser desdobrada em etapas pré-concebidas. Em síntese, o que essas abordagens inovadoras querem apontar, é a capacidade de imersão que os elaboradores desses projetos atingem para obterem resultados que aproximem os desejos e necessidades - algumas desconhecidas - inerentes à cadeia que estão analisando e propondo soluções. A hipótese de que esses processos ainda estejam distantes das atuais políticas adotadas pelo Estado por meio dos governos, baseia-se, ainda que implicitamente, nessa noção de atraso do setor público, contudo, algumas experiências atuais conseguem confrontar essa percepção.

A fim de construir inovação e um fortalecimento da economia, da pesquisa e do mercado, de modo que o "monstro da inércia" pare de assombrar o imaginário comum acerca da burocracia, as parcerias público-privadas nascidas dos parques tecnológicos são caminhos que vêm sendo construídos e contribuindo com resultados interessantes para as organizações participantes. 

As universidades públicas estaduais de São Paulo, possuem parques que são geridos e financiados intelectualmente pelo estado e com investimentos financeiros contundentes do capital privado. Localizados nas proximidades dos campus das instituições, eles contam com o arsenal do tripé de ensino, pesquisa e extensão oferecido por meio de estudantes e pesquisadores envolvidos a fim de demarcar possibilidades de crescimento que impactam e geram valor de diversas naturezas para a sociedade. 

A Habits, por exemplo, é uma incubadora-escola tecnológica situada no campus da USP Leste que atua na área de serviços e tecnologia da informação e conta com o pré-requisito do direcionamento social nas atividades a serem elaboradas no espaço de coworking. Desse modo, consegue conciliar aspectos específicos tais como geração de valor financeiro, pesquisa, impacto social e retorno de valor agregado à comunidade do entorno da universidade, conciliando política pública, inovação e pesquisa em projetos únicos e que fortalecem socioeconomicamente a sociedade brasileira a longo prazo.

 

Texto escrito por Natália Abreu, estudante de Administração na FEA-USP/RP.

Referências:

AUSPIN. “Habitats de inovação”. Disponível em:http://www.inovacao.usp.br/habitats/  Acesso em 6 de agosto de 2021.

BANCO CENTRAL DO BRASIL. "Fintech". Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs  Acesso em 5 de agosto de 2021.

BANCO CENTRAL DO BRASIL. "Pix". Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pix . Acesso em 5 de agosto de 2021.

BARZELAY,Michael. A gestão pública como uma disciplina profissional orientada ao design. Tradução de Eliane Rio Branco, João Guilherme Casagrande Martinelli Lima Granja Xavier da Silva, Pedro Junqueira Vilela.Brasília: Enap, 2021.

ENDEAVOR BRASIL. “Design Thinking: ferramenta de inovação para empreendedoras e empreendedores”. Disponível em: https://endeavor.org.br/tecnologia/design-thinking-inovacao/. Acesso em 7 de agosto de 2021.

ENDEAVOR BRASIL. “Precisamos falar sobre burocracia e produtividade das empresas no

Brasil”. Disponível em: https://endeavor.org.br/ambiente/precisamos-falar-sobre-burocracia-e-produtividade-das-empresas-brasil/. Acesso em 6 de agosto de 2021.

FOLHA DE S.PAULO; KAY, John.  "Projeto que levou homem à lua resolveria problemas da terra, propõe economist” Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/01/projeto-que-levou-homem-a-lua-resolveria-problemas-da-terra-propoe-economista.shtml. Acesso em 5 de agosto de 2021.

MATERA." Banco ou instituição de pagamento: conheça as diferenças". Disponível em: https://www.matera.com/blog/banco-ou-instituicao-de-pagamento-conheca-diferencas/. Acesso em 6 de agosto de 2021.

MAZZUCATO,Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Penguin Books, 2014.

MAZZUCATO, Mariana. Palestra proferida no TED Talk, 2018. Disponível em: https://www.ted.com/talks/mariana_mazzucato_government_investor_risk_taker_innovator.Acesso em 6 de agosto.

TENÓRIO, Fernando Guilherme. Weber e a Burocracia. Revista do Serviço Público, 1981. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/download/2328/1225.Acesso em 5 de agosto de 2021.

Universidade Cornell, INSEAD e OMPI (2020). Índice Global de Inovação 2020: Quem financiará a inovação? Ithaca, Fontainebleau e Genebra.

UOL;CANCIN, Renato. “Max Weber e o significado de burocracia”. Disponível em: “https://educacao.uol.com.br/disciplinas/sociologia/burocracia-max-weber-e-o-significado-de-burocracia.htm. Acesso em 5 de agosto de 2021.

Compartilhar: