Quem tem medo da Cultura? Políticas públicas culturais como um fator de estruturação social

Quem tem medo da Cultura? Políticas públicas culturais como um fator de estruturação social

Presente no texto constitucional, é fato o dever do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, além de apoiar, incentivar e valorizar a difusão das manifestações culturais.

O artigo seguinte destaca, além disso, a necessidade do poder público de proteger as manifestações culturais populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos originários do Brasil.

Desse modo, é estipulado ainda o estabelecimento do Plano Nacional de Cultura, com caráter plurianual, como objetivo de guiar o desenvolvimento cultural em todo o País, com foco na defesa e na valorização do patrimônio cultural brasileiro, na produção, promoção e difusão de bens culturais, na formação de gestores especializados, na democratização do acesso aos bens de cultura e na valorização da diversidade étnica regional.

Todas essas especificações acerca da cultura e do dever do Estado perante a esse direito estão redigidos nos fundamentos da democracia moderna brasileira. No entanto, atualmente, o que disso é possível observar na prática?

É fato que a sociedade e o poder estatal brasileiro vivenciaram uma longa trajetória no que tange o desenvolvimento das políticas públicas culturais nacionais:

Partimos, em 1930, da existência de órgãos públicos precursores, exclusivos a esse setor, com um papel central e relevante no fomento cultural, e caminhamos para a extinção do Ministério da Cultura em 2019, onde a maior parcela das políticas públicas culturais pode ser resumida em leis de incentivo, que eximem o Estado do papel central de mantenedor e provedor cultural.

Como se deu esse desenvolvimento? Quais são os valores por trás das práticas culturais assumidas pelo Estado?

Vamos entender isso, e um pouco mais, a seguir:

Em primeiro lugar, podemos estar nos perguntando: Por que é competência do Estado zelar pela cultura, um conceito tão abstrato?

Os primeiros estudos relacionados ao tema, que introduziram o aspecto científico acerca da cultura, se deram na Inglaterra ao longo da década de 1940. 

Raymond Williams, integrante da escola inglesa, denota em sua obra “Cultura e Sociedade” a noção de cultura como algo comum à sociedade, indicando a cultura como um processo humano, e não como uma conclusão.

Essa definição foge da perspectiva de cultura como uma diretriz social ou pessoal que deva ser imposta. Na verdade, afirma que "a cultura é de todos, em todas as sociedades e em todos os modos de pensar”.

A partir desse movimento, a cultura passa a ser considerada como uma função da organização social, capaz de promover a elevação e a libertação, já que é na expressão e na experiência cultural que o indivíduo atinge o protagonismo social.

Com pensamentos semelhantes, Renato Ortiz, já em 2004, aponta que “a cultura é constitutiva da sociedade (ou, se preferirem, não há sociedade sem cultura)”, no sentido de que é o resultado inerente às interações humanas.

Nessa mesma toada o autor aponta que, enquanto políticas públicas se relacionam com o poder social, políticas de cultura se relacionam com a expressão social, sendo ambos, portanto, objetos da atuação da gestão pública.

Denotada a relevância da cultura na sociedade e, portanto, a conexão inerente do tema com a gestão pública, Yvone Donders, em 2011, traz uma visão ainda mais aprofundada dos arcabouços legais, fundamentados na Declaração dos Direitos Humanos, que reforçam o dever de uma atuação do Estado em defesa do desenvolvimento cultural.

Para a autora, é possível observar os direitos culturais sob três aspectos: Se analisarmos sob uma perspectiva mais restrita, considerando como cultura aquilo que corresponde a produtos culturais, materiais e imateriais, então tais direitos são incluídos no direito à proteção desse patrimônio, bem como o direito ao acesso a tais produtos. Se considerarmos sob a visão artística, os direitos culturais se incluem no direito à liberdade de expressão e liberdade artística. Por fim, se forem analisados sob uma ótica de modo de vida, então tais direitos seriam compreendidos no direito de autodeterminação, de liberdade de pensamento, religião, associação e educação.

Dessa forma, a partir da prática dos direitos fundamentais, de criar, de preservar, de desenvolver e de ter acesso a seus bens, com base na liberdade e no protagonismo social, podemos constituir a participação na vida cultural, condicionada pelo produzir, pelo expressar-se e pelo fruir.

Por essa forte conexão entre aspectos fundamentais da vida humana com a cultura, passa a ser função do Estado garantir a base para que a prática cultural, e ao mesmo tempo o desenvolvimento humano, aconteça de forma estruturada.

Dentre ações possíveis e necessárias destacamos a disponibilização de uma infraestrutura pública capaz de promover a participação popular, além da promoção da acessibilidade física e da eliminação de barreiras de comunicação. Também é crucial a proteção da diversidade e do subsídio às atividades culturais. 

Enfim, é necessário garantir estruturas e meios para que se desenvolvam, se expressem, se preservem e se promovam as identidades, tanto da língua, quanto da tradição e dos costumes, como atributos centrais à sociedade.

Nesse sentido, políticas públicas culturais devem ser pensadas a fim de promover a participação e de viabilizar o ativismo social.

É sabido que, a partir da oferta de meios estimulantes e apropriados para fomentar a expressão artística, o Estado passa a atuar como promotor de cidadania e a reconhecer os indivíduos como seres autônomos, que se manifestam entre si.

Foram nesses termos que se deu origem ao movimento dos direitos culturais, cujo ápice remete à Conferência da UNESCO, em 1970. Esse acontecimento marcou a discussão política-cultural e forneceu uma compreensão ampla dos alicerces que fundamentam a atuação pública no campo da cultura.

Como resultado, as práticas culturais idealizadas para a gestão pública passaram a ser fundamentadas tanto na noção da “democratização do acesso”, quanto na de “democracia cultural'', ambos conceitos amplamente difundidos e aplicados a partir desse ponto.

Compreendemos como políticas de democratização do acesso o conjunto de ações que têm como objetivo ampliar o acesso da população às atividades e aos produtos de cultura dominados principalmente pela elite, a fim de democratizá-los.

Já em relação à democracia cultural, ações que buscam a valorização e o apoio às práticas culturais populares, a fim de reconhecer e valorizar a diversidade cultural.

É possível observar, portanto, que a atuação democrática do Estado no campo da cultura não deve significar a intervenção no gosto da nação, muito menos a imposição de conteúdos, formatos, códigos ou padrões. 

Pelo contrário, é preciso que se dê a partir da promoção de meios para a apropriação da herança cultural e do oferecimento de corredores onde ocorram a transferência de informação, de formação, de dados e de ativos, além de meios suficientes para assegurar a expressão cultural das diversas comunidades, coletivos e mesmo da singularidade dos indivíduos.

Dessa forma, é fato que por meio da implementação de políticas culturais são oferecidas possibilidades para a promoção da liberdade dos indivíduos e do protagonismo social, a partir do processo de valorização da criação e das escolhas particulares quanto ao o que fruir, consumir e vivenciar, caracterizando a ação cultural como uma verdadeira potência na promoção da igualdade. 

No Brasil, a promoção cultural guiada pelo poder público foi iniciada em 1930, de forma bem demarcada. A década é, inclusive, considerada pelos estudiosos um marco histórico da produção cultural nacional, no que tange a instrução pública, a vida artística e literária, e os estudos históricos e sociais, além dos meios de difusão cultural, tais como os livros e as rádios.

É a partir desse momento que passa a ser possível identificar a sistematização de ações do Estado em torno de políticas culturais, concretizadas por meio da criação do Ministério da Educação e Saúde em 1934, que se responsabilizou por institucionalizar algumas práticas voltadas para a disseminação cultural, nos mais diversos setores.

Como consequência dessa evolução na política brasileira, surge em 1935 a primeira estrutura pública efetivamente incumbida da formulação e implementação de políticas culturais. O Departamento Municipal da Cultura da Cidade de São Paulo foi fundado por Mário de Andrade, com o objetivo central de garantir a humanização da cultura.

Contrária à noção de uma cultura restrita à elite, a atuação do Departamento se deu a fim de garantir a ampliação da acessibilidade e da fruição dos bens culturais, formalizando ações de fomento ao teatro, cinema, escola de rádio e discoteca pública, educação e recreio, bibliotecas, museus, documentação histórica e social, ao povo da cidade.

Em contrapartida, o intervalo seguinte, entre os anos de 1940 e 1960, não contou com grande atuação do Estado no campo da cultura. Foi, na realidade, um período marcado pelo baixo investimento público na área, o que favoreceu que iniciativas privadas se consolidassem e assumissem o domínio dos meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão.

Na mesma onda, propiciada pela maior disponibilidade de mídias, estabeleceu-se no Brasil uma cultura de importação de hábitos e de padrões, em detrimento das construções nacionais.

Essa tendência trouxe à tona movimentos nacionalistas populares em defesa de uma criação genuinamente brasileira. Surge então o projeto formulado pela União Nacional dos Estudantes, com a proposta de lutar contra o subdesenvolvimento e de fomentar a criação cultural nacional.

A partir de festivais de música brasileira, e da reunião de jovens vanguardistas, foi estabelecido um cenário de revolução política e cultural nos maiores centros do Brasil, marcado pela luta por uma cultura popular e pela oposição ao domínio cultural.  

Em decorrência do apelo social, em 1985 foi fundado o Ministério da Cultura, um órgão público exclusivo para a formulação e execução de políticas públicas culturais, com atuação estruturada para todo o território nacional.

O escopo de ações do órgão foi fundamentado no objetivo de garantir a participação democrática de todos os cidadãos, nos mais diversos campos da cultura, por meio da oferta de bens e serviços, ou equipamentos culturais, bem distribuídos entre as regiões, que contemplem os processos de criação, consumo, difusão e fomento da cultura.

No entanto, apesar da abrangência inicialmente proposta para a atuação do Estado, alguns anos após o surgimento do Ministério da Cultura o papel do poder público como agente central na estruturação de políticas culturais foi substituído por parcerias com instituições privadas, por meio das leis de incentivo. 

Nesse ponto, apesar dos grandes avanços observáveis, conquistados pela atuação do Estado como pilar da definição das diretrizes culturais, a partir do implemento do programa de leis de incentivo, a maior parte das práticas e das deliberações políticas no setor passaram a ser assumidas por iniciativas privadas, e direcionadas para os interesses particulares das organizações.

Com esse modelo, recursos de natureza pública passaram a ser aplicados aos projetos das empresas patrocinadoras, segundo objetivos internos, e não necessariamente com contrapartidas de natureza social. Mesmo assim, pode-se observar ainda a preponderância e a busca por alavancar as políticas fundamentadas nessa lógica, em detrimento de ações puramente públicas.

Apesar de algumas reviravoltas na história, como em 2003 a iniciativa de redesenhar a política cultural do Ministério da Cultura para algo orientado à criação de programas de apoio direto à iniciativas culturais da sociedade civil, é possível afirmar que os tempos atuais, no que tange a cultura, seguem com as mesmas métricas de um Estado passivo ao desenvolvimento de políticas culturais.

A tentativa falha de extinção relâmpago do Ministério da Cultura em 2016 foi bem executada em 2019, quando se deu o surgimento do Ministério da Cidadania, como fruto da junção de outros 2 ministérios.

Em consonância ao ato simbólico, pouco tem-se visto de políticas públicas culturais inovadoras. Na verdade, o País persiste em apresentar falta de acessibilidade aos bens culturais e distorções na criação e na distribuição destes bens, distanciando-se do que é considerado um Estado democrático de direito, que visa disponibilizar meios para a estruturação da vida humana e do indivíduo particular.

Celina Souza, cientista social, aponta que a ação do Estado no campo da cultura se trata justamente da atividade estatal que busca sanar conflitos por meio da articulação de diferentes interesses, convivência e equivalência de preferências.

E você, concorda?

Como observa que estejam as práticas culturais no Brasil?

 

Texto escrito por Elisa Coelho Farina, estudante de Ciências Contábeis na FEA-RP/USP.

Imagem: O Batizado de Macunaíma. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

Referências: 

Souza, Celina. Sociologias: Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.

Williams, Raymond. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell, Tradução Vera Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2011c.

Ortiz, Renato. “Cultura e Desenvolvimento”. s/l. s/d.

Donders, Yvone; Laaksonen, Annamari. “Encontrando maneiras de medir a dimensão cultural nos direitos humanos e no desenvolvimento”. In: Revista observatório itaú cultural/OIC 

Cevasco, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2012.

Leite, Ana Flávia. Políticas Públicas para cultura: concepção, monitoramento e avaliação. São Paulo, 2015.

Entenda: cultura como política pública | Guia do Estudante (abril.com.br)

Secretaria da Cultura: qual a sua função? | Politize!

Constituição da República Federativa do Brasil - Art. 215 (senado.leg.br)

 

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