Do narcisismo ao amor próprio: uma travessia necessária

Do narcisismo ao amor próprio: uma travessia necessária

"Há tanto tempo eu vinha me procurando, quanto tempo faz, já nem lembro mais 

Sempre correndo atrás de mim feito um louco

Tentando sair desse meu sufoco

Eu era tudo que eu podia querer

Era tão simples e eu custei pra aprender

Daqui pra frente nova vida eu terei

Sempre a meu lado bem feliz eu serei

 

Eu me amo, eu me amo

Não posso mais viver sem mim

 

Como foi bom eu ter aparecido

Nessa minha vida já um tanto sofrida

Já não sabia mais o que fazer

Pra eu gostar de mim, me aceitar assim

Eu que queria tanto ter alguém

Agora eu sei sem mim eu não sou ninguém

Longe de mim nada mais faz sentido

Pra toda vida eu quero estar comigo

 

Eu me amo, eu me amo

Não posso mais viver sem mim

 

Foi tão difícil pra eu me encontrar

É muito fácil um grande amor acabar, mas

Eu vou lutar por esse amor até o fim

Não vou mais deixar eu fugir de mim

Agora eu tenho uma razão pra viver

Agora eu posso até gostar de você

Completamente eu vou poder me entregar

É bem melhor você sabendo se amar"

 

Ao prestar atenção na letra desta música "Eu me amo" do Ultraje a Rigor, fiquei pensando sobre narcisismo. Minha mente foi por diversos caminhos e, pensei de aqui compartilhar com vocês o que pensei, sem pretensão de determinismos e muito menos de fechar o assunto em si mesmo, mas sim proponho uma associação livre e despropositada que, como sabemos, pode nos levar a lugares nunca dantes navegados. Comecei me fazendo os seguintes questionamentos: Será que essa música retrata uma pessoa narcisista? O que será uma pessoa narcisista? Será possível a gente apenas se amar? Será esse o ideal de autoestima que é tanto divulgado e desejado? E amor próprio, é diferente disso?

Ao ler novamente a letra com mais calma, percebi se tratar de alguém que, muito provavelmente, está pela primeira vez podendo enxergar algo no reflexo de seu próprio espelho. Vocês já perceberam quão apaixonada e encantada fica uma criança que começa a identificar sua própria imagem no espelho? Demora muito para que ela consiga entender que aquele ser que ela está enxergando é ela mesma e, para isso, muitos estágios são necessários e, a peça fundamental é a presença de um pai, mãe ou alguém que desempenhe a função de cuidar. Alguém que participe ativamente dessa fase, podendo emprestar seus olhos, sua linguagem, seu toque, seu manejo e sua presença viva e afetiva para auxiliar essa criança, ainda tão pequena e fragmentada, a conseguir se constituir como uma unidade. A letra, então, me passa com muita força a ideia de alguém que está podendo ser apresentado para si mesmo. E se dar conta de cada cantinho nosso, ainda mais os mais bonitos e cheirosos, é a coisa melhor que há nessa vida! Não há sensação mais prazerosa do que essa!

Quando se fala em narcisismo ou diz-se que uma pessoa é considerada narcisista, precisamos ter em mente que é alguém que não teve de forma satisfatória esta fase de se conhecer e, principalmente, de se reconhecer no olhar do outro que lhe oferece os primeiros cuidados essenciais para a vida. Assim, o resultado costuma ser a impossibilidade de se ligar a outras pessoas e, sim, tomar a si mesmo como objeto de amor (Freud, 1914). Green, em seu livro Narcisismo de vida e Narcisismo de Morte afirma: "os narcisistas são pessoas feridas. Frequentemente a decepção não se limitou a um dos pais, mas a ambos. Que objeto lhes resta para amar senão eles mesmos?". Ler esta citação sempre refresca minha memória e me ajuda a entender a profundidade da dor de uma pessoa que não teve esta fase muito bem desenvolvida. Deste modo, a ideia que circula no senso comum a respeito dos narcisistas como pessoas muito bem resolvidas e que se sentem muito boas e melhores do que as outras é muito equivocada, pois isto nada mais é do que uma grande e espessa carcaça que eles precisaram criar para se sentirem minimamente protegidos do externo que já foi algum dia bem traumático. Importante frisar que quando digo eles também me refiro a mim e a você que lê este texto neste momento, pois todos nós temos e carregamos nossos núcleos narcísicos e, nos momentos de fragilidade e exposição eles são rapidamente acionados.

Então, será possível ir além do próprio narcisismo? Tarefa difícil essa, que normalmente leva uma vida inteira para ser concluída, se é que dá pra falar de conclusão. Penso que nos darmos conta do narcisismo nosso de cada dia é a grande sacada que nos possibilita sair de vez em quando desta posição e, inclusive, poder rir de nós mesmos quando nos percebemos assim...grandiosos, onipotentes e muito importantes para todos ao nosso redor. Aprender a relativizar essa importância e o desejo de ser especial pode nos ajudar a perceber que apesar de muito precários e pequenos que somos, também temos alguma importância, mas nunca toda. Assim, podemos começar a conversar sobre autoestima e amor próprio. Diferente do que se imagina no senso comum, uma pessoa com boa autoestima não é aquela que só se ama e não vive sem si mesma, como bem diz a música, mas sim uma pessoa que tem maturidade egóica suficiente para tolerar sua incompletude e precariedade e, sabendo disso, pode tornar-se mais forte, pois quando realmente aceitamos nossas limitações, tendemos a nos tornar apenas humanos e não mais deuses ou semideuses, o que significa poder ir além, crescer, errar, aprender, cair, levantar e, com isso, se desenvolver de forma menos arrogante e solitária. Poder perceber que não somos completos e totais nos coloca ainda em contato com uma dor gigante, que é a de se dar conta da alteridade, isto é, perceber que não é único no mundo e, sim, que existem outras pessoas, as quais possuem algo que eu não tenho, assim como possuem precariedades diferentes das minhas e, só a partir disso, podemos realmente estar na companhia de alguém diferente de nós mesmos, com quem podemos somar.

Finalizo relacionando o seguinte trecho da música: "Completamente eu vou poder me entregar, é bem melhor você sabendo se amar" com uma citação do livro de Cintra e Figueiredo, a respeito de conceitos de Klein, que discorre lindamente sobre esta difícil tarefa, que podemos chamar de luto ou de integração de diferentes partes nossas (partes mais infantis e partes mais adultas ou partes mais narcísicas e partes mais relacionais) e que também esbarra na ideia de completude que está presente no final da música.

"Também durante a infância celebram-se muitos lutos, pois não apenas criam-se vínculos como se inicia um quase interminável processo de separação dos pais, que visa conduzir à vida adulta e autônoma. Além disso, muita coisa precisa desaparecer: os sonhos de perfeição pessoal, a onipotência, os amores ideais, os devaneios em que tudo parece absoluto, grande, grandioso. Os ídolos e os ideais precisam morrer e renascer modificados. E o que dizer dos lutos de milhares de microferimentos ao longo de uma vida inteira, de todas as pequenas desatenções vividas ou imaginadas? Tais lutos terão de ser feitos e refeitos milhares de vezes ao longo da infância e outras milhares de vezes pela vida (e pela análise), não apenas no momento em que ocorre uma perda por morte ou separação, mas porque a transitoriedade de tudo obriga, constantemente, a fazer o luto do momento presente para obter acesso ao momento seguinte." Os autores finalizam afirmando, ainda, que as perdas, lutos e a melancolia não são só episódios contingenciais e acidentais, mas são partes integrantes e indispensáveis da travessia existencial de cada um de nós. Portanto, saúde mental não significa escapar a esse destino e, sim, ao contrário, assumi-lo.

Créditos da imagem: Andréa Tolaini

Textos citados:

Introdução ao Narcisismo - Sigmund Freud

Melanie Klein: Estilo e Pensamento - Elisa Maria de Ulhoa Cintra e Luís Cláudio Figueiredo

Narcisismo de vida, Narcisismo de Morte - André Green

 

Compartilhar: