O estranho encontro

O estranho encontro

Certo dia, uma pessoa aqui intitulada Fulana chega em uma sala específica e se depara com Ciclana, que há uma semana não via. Fulana, então, pergunta: Oi, tudo bem?

Ciclana responde: Imagina, como poderia estar tudo bem se eu sinto uma dor no estômago e tenho esse aperto no peito que não para nem por um minuto?

Fulana retruca: Como assim? Isso não pode ser normal. Trate de ficar bem logo, já já chega o final de semana e tudo fica bem.

Ciclana fica por um tempo pensando se daria para ficar bem com aquele aperto e, não conseguindo segurar, desaba a chorar.

Fulana, em um sobressalto, quase cai de onde estava apoiada. Não imaginava que aquelas águas iam rolar com tamanha intensidade bem naquele momento em que tudo, até poucos minutos atrás, parecia normal. Fica confusa, pensativa, tentando entender o que estava vivendo a Ciclana. Fulana, então, ainda sem entender, comenta: Tem alguma coisa errada, acho que pode ser efeito de algo que você comeu ou bebeu antes de vir pra cá ou será efeito desta sala ou mesmo deste confortável, porém esquisito móvel em que você se repousa?

Ciclana responde: É, não sei, mas é como se fosse um estado de sono, ou melhor, de sonho. Tô sentindo e percebendo um monte de coisas que não parecem se encaixar, não fazem sentido, como num sonho.

Fulana já impaciente com aquela baboseira toda, revida: Trate de se recompor. Onde já se viu ficar toda sensível, chorona. Sempre te vi tão firme e forte, pronta pro que der e vier. Nananinanão, isso não vai bem. Levanta já daí!

Ciclana, por sua vez, se sente estranha, porque não quer ficar mal e se entregar pra angústia que está sentindo, mas percebe que não tem controle sobre isso, simplesmente assim está. Será que assim é? Com muito medo da reação da Fulana, Ciclana fala baixinho: Parece que eu sou feita disso também...carne e osso, alegria e tristeza, um punhado de angústia. Parece até um móvel cheio de poeira que não é limpo há muito tempo, parece até abandonado.

Fulana ficando cada vez mais assustada com tamanha asneira, grita: Para! Para com isso Ciclana, não quero ouvir mais isso! Isso não faz o menor sentido!

Ciclana, agora mais calma, responde com graciosidade: Vamos ficar numa boa! Para de implicar comigo, será que não podemos formar um par? Um par iluminado pelo escuro que clama por ser visto e ouvido e, quem sabe assim a gente não sente menos dor? Ou pelo menos podemos entender porque dói tanto e talvez até possamos sentir outras coisas.

Um terceiro sujeito, do nada, interrompe o diálogo, diz que está na hora e que a espera na próxima semana no mesmo horário e lugar.  

 

Esta poderia ser só mais uma história de uma conversa entre duas pessoas, mas não é só uma conversa e, talvez, de alguma forma, poderíamos sim considerar que são entre duas pessoas, pois o que uma psicoterapia psicanalítica propõe é esse estranho, diferente, muitas vezes difícil e confuso encontro consigo mesmo. Mas ao nos depararmos conosco nos defrontamos com o nosso inconsciente, com o desconhecido que existe em nós mesmos. Isso assusta? Sim, muito! No entanto, percebo que aos poucos, com um trabalho cuidadoso e ético, muito do que parece firme e sólido pode cair por terra e dar espaço para algo não tão rígido, mas sim com flexibilidade que permita ampliar, ver novos horizontes sobre os outros com quem convivemos, mas principalmente sobre nós, sobre os nossos aspectos até então pouco conhecidos ou até mesmo totalmente desconhecidos, não experimentados e, que muitas vezes não estão nem mais falando para serem ouvidos, mas sim gritando por meio de diferentes dores e somatizações para terem um lugar.

Gosto de pensar que o paciente em uma análise começa a escutar a sua própria canção, com letras que ora rimam ora se desencontram e, não é uma canção em que se usa playback, mas é, sim, cantada com a própria voz. E que atire a primeira pedra quem nunca se assustou com o som da própria voz, quem nunca sentiu estranheza ao perceber a própria afinação, quem nunca sentiu vergonha de ouvir as próprias palavras, aquelas que sempre são ditas e incansavelmente repetidas! A diferença do contexto psicanalítico é que neste é feito um convite para ir além do susto, da estranheza e da vergonha que queremos esquecer e esconder a fim de atravessar esse desconfortável processo de autoconhecimento para, quem sabe, se aproximar do estranho que nos habita, mas que se apresenta de forma única e singular em cada um. Assim, espera-se que, durante este processo, seja possível construir intimidade com este que nos é tão estranho, mas ao mesmo tempo tão precioso.

Compartilhar: