Oposição não é necessariamente inimizade

Oposição não é necessariamente inimizade

Há alguns dias me pediram para discorrer sobre a questão do fortalecimento de discursos de ódio e intolerância que têm sido cada vez mais frequentes em nossa sociedade. Em um primeiro momento relutei, pois a questão do acolhimento e da aceitação das diferenças dentro de um determinado grupo, seja este familiar, de amigos ou na sociedade como um todo é bastante polêmica, o que tornou a frase "política, futebol e religião não se discutem" bastante conhecida e também muito pertinente ao nosso contexto atual. No entanto, acredito que refletir e discutir é, não só importante, mas condição fundamental para que haja crescimento e desenvolvimento pessoal e também social. Mas, para que isso possa acontecer de forma saudável penso ser imprescindível retomar o que Freud discorreu em sua obra "O mal estar na civilização" a respeito do narcisismo das pequenas diferenças para nos ajudar a conversar sobre esta questão. Freud afirmou que: "seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade." O que presenciamos nos dias atuais tem muita semelhança com esta afirmação, não é mesmo? Percebemos que tem sido extremamente difícil conciliar amizades e diferentes ideias, ideais e opiniões, como se oposição fosse sinônimo de inimizade.

Freud, então, nos ajudou a entender a intolerância a partir da tendência que temos de exagerar as diferenças entre grupos semelhantes a fim de que haja o sentimento de que um dos grupos é superior ao outro. Assim, podemos simplificar essa questão do seguinte modo: há duas pessoas, Maria e João. Maria identifica em João características muito semelhantes às suas, porém algumas delas ela não gosta e, por isso, tem dificuldade de aceitá-las. Nestes casos é muito comum que Maria negue a percepção destas características pessoais e as coloque apenas em João, que passa a ser considerado o único com essas características e, portanto, fica depositado nele tudo de ruim, inadequado ou insuficiente. Desta forma, Maria se sente aparentemente mais tranquila, pois o ato de tirar de si algo que não aprecia e projetar no outro com quem convive reforça sua noção de identidade e a separa do que ela considera pior. Assim, fazendo uso deste exemplo, podemos identificar que, diferente do que muitos imaginam, o outro se torna alvo de intolerância muito mais quando a diferença é pequena do que quando esta é acentuada. Deste modo, as regras básicas de convivência que são pautadas em agir de forma respeitosa com as pessoas a nossa volta ficam prejudicadas, pois cria-se a ilusão ou até quase um delírio de que há a superioridade de uma classe sob a outra ou de um partido político sob o outro, o que obscurece a ideia dos direitos e deveres iguais para todos e, principalmente, prejudica o convívio social saudável.  

Desta forma, percebo que muitas vezes ao nos relacionarmos com uma pessoa não estamos, de fato, lidando com o outro real, mas sim com o outro que desejamos e que criamos em nossa mente. Deste modo, penso que é importante lembrarmos que a noção de alteridade, isto é, o reconhecimento do outro enquanto sujeito é bastante delicada, pois a nossa tendência automática é reduzir as crenças e pensamentos do outro às nossas, que são conhecidas. Então, normalmente eu enxergo o outro a partir dos meus óculos e da minha visão de mundo, o que impossibilita o vínculo real com o outro, que é inevitavelmente diferente de mim. Isso acontece até entre pessoas mais próximas como grupo de irmãos, marido e mulher, pais e filhos, em que todos são essencialmente diferentes, embora muitas vezes pareçam similares.

Assim, percebo que precisamos nos esforçar muito para acolher o diferente, pois vivemos buscando o semelhante ou o "igual", o que acreditamos que irá evitar conflito e que ajudará a manter algum tipo de ordem e harmonia. No entanto, vejo que é justamente o diferente que pode vir a acrescentar e a enriquecer como, por exemplo, na ciência em que não há uma única verdade absoluta, mas sim descobertas que vão sendo acrescentadas ao que já existe e, assim, o conhecimento caminha e há a possibilidade de desenvolvimento. Mas penso que esta é, de fato, uma tarefa árdua, pois se relacionar abertamente com o outro envolve sairmos da nossa zona de conforto, o que realmente gera muito incômodo e angústia. 

Então, acredito que o fortalecimento dos discursos de ódio está muito relacionado à dificuldade de realmente enxergarmos o outro com quem convivemos. Com isso, não desenvolvemos habilidades importantíssimas para se viver em sociedade. Algumas delas são a capacidade de escutar o que o outro tem a dizer e de respeitar sua opinião, as quais são pré condições para o desenvolvimento da empatia, que é a habilidade de se colocar no lugar do outro, respeitando e reconhecendo sua diferença. No entanto, esta habilidade é muitas vezes confundida com a ideia de ter que concordar com a opinião alheia e, na realidade, não precisamos concordar para se ter diálogo, mas sim respeitar e legitimar as diferentes possibilidades de ser e de pensar. Assim, quando não há possibilidade de escuta e de respeito com o outro, partir para a violência pode ser mais rápido do que se imagina, pois o diferente é sentido como ameaça e a resposta imediata pode ser a defesa por meio do ataque. Como bem colocou Renato Russo em uma de suas canções, é muito fácil que a gente siga a seguinte receita: "pegue duas medidas de estupidez, junte trinta e quatro partes de mentira, coloque tudo numa forma untada previamente com promessas não cumpridas, adicione a seguir o ódio e a inveja, as dez colheres cheias de burrice, mexa tudo e misture bem e, não se esqueça, antes de levar ao forno, temperar com essência de espírito de porco, duas xícaras de indiferença e um tablete e meio de preguiça".

Então, penso que um ponto importante para evitar essa onda de violência e ódio a que estamos cada vez mais expostos é podermos fazer luto das perdas vividas. O que quero dizer com isso? Quando um time de futebol perde o campeonato ou um partido político perde as eleições é de extrema importância que a pessoa possa ter o momento de luto dos projetos e ideais aos quais investiu uma boa dose de sua energia. Para isso, é necessário tempo para que a dor da perda possa ser elaborada, no entanto em nossa sociedade imediatista e intolerante ao desprazer presenciamos poucos processos de luto e sim muita confrontação com o adversário que vence, o que torna impossibilitada a condição de pensar, fazer novos projetos e, consequentemente, se desenvolver.  

Finalizo com uma frase de Mahatma Gandhi, que resume bem a mensagem que gostaria de passar com este texto: “A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos.”

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