Por fora, pão bolorento; por dentro, ainda há fermento?

Por fora, pão bolorento; por dentro, ainda há fermento?

Façamos da interrupção um caminho novo. Da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro! 

Fernando Pessoa

Não é mais novidade a pandemia, a euforia do primeiro momento já passou, as adaptações do lar em trabalho foram feitas, as comidas dos supermercados não acabaram, o medo do apocalipse foi embora, mas e agora, o que nos resta? Viver, será? Podem me responder que isso também já conseguimos, afinal de contas estamos (quem tem este grandiosíssimo privilégio) protegidos do vírus em nossas casas e, ainda que, roubos por exemplo, continuem acontecendo, a restrição da vida social também nos protege dessa ameaça real. Então, declara-se, sim, vivemos! Concordo que estamos percebendo que conseguimos viver com bem menos do que um dia poderíamos imaginar, sobram roupas, sapatos e acessórios nos armários, são poucas e sempre as mesmas peças a serem lavadas semana após semana e ainda que continuemos enchendo carrinhos virtuais, muitas vezes não damos cabo a nossas intenções, uma vez que questionamos mais se realmente precisamos daquilo. Eu, por exemplo, planejava comprar uma bota nova neste inverno. Resumo da obra: caí do cavalo antes mesmo de subir. Nem é inverno ainda e já vejo que não tem porquê fazer esta compra agora. Restringe-se, então, as possibilidades conhecidas de nos relacionarmos conosco, com nossos desejos, nossas necessidades, nossa carência e algo novo urge para ser pensado: como viver de agora em diante?

Assistindo noticiários e reportagens, assim como conversando com colegas e referências em minha área, tenho ouvido muito a frase que "nada mais vai ser como era antes" e, como se não bastasse isso, há um detalhezinho, que torna tudo ainda mais assustador: "não há como voltar ao normal, porque este que conhecíamos já nem existe mais". Todas as vezes que ouço essa afirmação doída (ou doida mesmo), penso que quero perguntar (e ter uma resposta, obviamente) de como será então. O que é isso que tanto dizem? Me lembro da música do Lulu Santos que diz: "nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará, a vida vem em ondas, como um mar, num indo e vindo infinito, tudo que se vê não é, igual ao que a gente viu há um segundo, tudo muda o tempo todo no mundo..." Essa lembrança vem me dizer, então, que é só mais do mesmo? Não é nova essa sensação que nos aflige neste momento? Não sei ao certo, mas o que sinto é que é diferente (talvez por ficar tão evidente?) e, que, ainda não consigo conceber o que pode ser. Fico viajando em minha mente pensando o que vai ser daqui pra frente, como vai ser, quando isso vai acabar, vamos voltar a nos encontrar e poder nos encostar?, vamos ter que continuar usando máscaras para sempre?, teremos que todos pegar o vírus para voltar? e, quando volta? 2020?, 2021?? Se na ilha deserta do poema Utopia de Wisława Szymborska, as pegadas vistas ao longo das praias se voltavam sem exceção para o mar e desta ilha de certezas e garantias, ambiente imponderável à vida, só era possível sair, no momento atual que nos encontramos, com os poucos e selvagens pensamentos que conseguimos ter, parece ser o oposto, só é possível entrar, sem pistas ainda de como sair.

Me parece que realmente viver e não só sobreviver tem a ver com mergulhar de cabeça neste desconfortável mundo novo e ter coragem de abrir os olhos durante o mergulho. Bion se dedicou a estudar esta grande dificuldade que temos de pensar os pensamentos. Bem diferente do que imaginamos, eles não vêm de graça. Aliás, eles estão sempre passeando por aí esperando um pensador que possa ousar pensá-los. Louco, não? Assim, o que fazemos em uma análise é criar um aparelho para pensar os pensamentos. Então, se ainda não há um aparelho mental, fica difícil sobreviver a este mergulho intenso e profundo que é se manter vivo durante a pandemia, porque isso exige olhar a realidade e não só reagir a ela e, olhando, encontramos frustrações, dor, tristeza e muita, muita angústia, que aparecem de variadas formas. Temos, diariamente, exemplos dessa falta de condição de pensar com nosso malvado favorito no poder. É, não é nada fácil! Mas tenho me surpreendido também com pessoas se reinventando (palavra da moda, né?) e, com isso, necessariamente abrindo os olhos e se surpreendendo por conseguir enxergar, ainda que arda um pouco as vistas. É isso que acontece quando entramos no corredor das dúvidas e questionamentos sem saber onde vai dar e, surpreendentemente, correndo este risco, encontra-se não só o risco de morte e desintegração, mas também e, principalmente,o risco de vida. E, daí, surgem os novos pensamentos, que podem ser, então, pensados e trabalhados do presente pra frente, buscando novas medidas.

Constata-se, assim, que também existe amor nos noticiários...Nem só de coronavírus se vive! Tem também aniversário de quinze anos acontecendo em estacionamento com muitos carros convidados e com direito a valsa e tudo mais; tem shoppings propondo cinema drive in, algo que minha geração não teve oportunidade de viver e agora, quem sabe, possa ser possível. Ah, há também bandas tocando para pessoas em seus carros dentro de estacionamentos, levando música e alegria a elas! Essas pessoas precisaram suportar o medo, o vazio, a dúvida, a angústia para, enfim, ter condições de conseguir pensar algo novo, possível para o momento atual. Algo fundamental para conseguirmos pensar nossos pensamentos é, primeiramente, poder ouvi-los e, às vezes, há tanto barulho, que não conseguimos escutá-los, quem dirá pensá-los. Há alguns dias li que já se sabe na neurociência que a cada segundo recebemos 11 milhões de bits de informação por meio de nossos sentidos. Desses 11 milhões, só conseguimos capturar aproximadamente 40 BITS POR SEGUNDO! Muito pouco, né? Eu me espantei  por aqui, vocês também? Diante disso, Thebas e Dunker acalentam nossos corações afirmando que o que nos ajuda a reter mais informações é a nossa capacidade de ser afetado pelo que nos acontece dia após dia, isto é, quanto mais conseguimos estar abertos às experiências, maior é a possibilidade de nos emocionarmos e, isso, automaticamente faz com que uma informação seja capturada ao invés de escorrer ralo abaixo. Incrível, né? Me faz pensar que, sim, este período que estamos vivendo, além de assustador e muito triste, pode ser também fértil, uma vez que temos menos estímulos chegando até nós, o que nos ajuda a ter silêncio, solidão, vazio, elementos importantíssimos para tornar um terreno fértil.

Hoje estava pensando sobre uma planta que ganhei e que pode ficar bem maior, mas pra isso preciso trocá-la de vaso. Quando estava pensando sobre isso, me veio à mente a ideia de deixá-la no vaso menor que está e, depois que crescer, aí sim a passaria para um maior. Mas, ao pensar isso, logo em seguida ri sozinha, pois não há como ela crescer se continuar no vaso que está, não há espaço para isso. Mas se colocá-la num espaço maior, ficará vazio, pois ela ainda não cresceu e, nem tenho garantias de que irá crescer o tanto que estou imaginando. Pra isso, para correr o risco de que ela possa crescer, precisarei (eu e ela) suportarmos o espaço vazio, importantíssimo para seu futuro ainda desconhecido. Haja ato de fé para aguardar de forma esperançosa este processo! Penso que o mesmo é o que fazemos em um trabalho analítico com os nossos pacientes, também oferecemos espaço para que possam se escutar e se (des)conhecer, utilizando da relação com o analista, matéria prima mais rica do processo terapêutico, para se encontrarem consigo mesmos, enfrentando seus vazios e descobrindo novos recursos para não mais apenas sobreviver. O trabalho analítico é feito, basicamente (o que não tem nada de básico, by the way), de um rearranjo, que  o analista se esforça arduamente para fazer, das palavras usadas pelo paciente pra falar de si como, por exemplo, trocar um ALÔ por um OLÁ. O que muda é apenas a disposição das letras e o acento, mas acentua-se não só a palavra, mas seu sentido e, assim, passam a poder, juntos, ressignificar o passado, abrindo novas possibilidades de, não só se manter vivo, mas se sentir vivo!

Aí está o fermento que pode ser o responsável pela criação de um admirável mundo novo, cheio de dores, medos, nostalgias, mas também possibilidades e potenciais a serem descobertos. Assim, por fora, seguimos confinados, mas por dentro...ah, por dentro...há tanto que pode ser criado! Utilizando as palavras de Toquinho e, juntando-as às minhas, encerro este texto assim: basta numa folha qualquer (que esteja vazia de sentidos prontos), alguém se arriscar a desenhar, sabendo que em algum momento se descolorirá, mas ainda assim topar girar um simples compasso e, num círculo, fazer um mundo (POSSÍVEL) pra si. E, assim, ali logo em frente, a esperar pela gente (e a gente também a esperá-lo), o futuro está!

Ilustração: Andréa Tolaini

Referências: O palhaço e o psicanalista - Cláudio Thebas e Christian Dunker

Utopia - Wisława Szymborska

Seminários italianos - Bion

Aquarela - Toquinho

Como uma onda - Lulu Santos

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