Sobre abraçar a incerteza e ir além

Sobre abraçar a incerteza e ir além

Que as certezas nos cega e nos impede de ir além, já sabemos. Mas sabe quando você se dá conta disso por um vértice que separa o antes e o depois e marca a impossibilidade de voltar para onde você estava, pois já não existe mais aquela pessoa?

Não estou me referindo a nada extravagante, que pode ser imediatamemte notado pelo outro, mas sim de uma transformação interna que se dá após uma experiência afetiva impactante que chega muitas vezes como uma associação livre, que a priori mais desorganiza e invade do que organiza. A posteriori, se transformada, pode promover essa separação que estou me referindo arbitrariamente como antes e depois.

Um exemplo contemporâneo pode ser o uso das vacinas que NÃO têm potencial de nos transformar em jacarés, mas SIM, nos modifica. Afinal, uma vez injetada, sua substância constituída por agentes patogênicos estimulam o sistema imune na produção de anticorpos, que serão fundamentais para nossa proteção frente a esses mesmos agentes patogênicos, inclusive. Neste sentido, há uma mudança importante e grandiosa, mas produzida internamente, com esforço, efeito colateral, tempo e dúvidas.

São processos como esses que estou interessada em me aproximar, pois são sutis e ao mesmo tempo marcantes em nossas vidas. Na psicanálise já deixamos de trabalhar com grandes descobertas arqueológicas do passado que podem ficar calcificadas em belas teorias e temos nos atentado muito mais para o presente, para o fugaz aqui e agora de cada dia, de cada sessão, de cada instante e de cada lembrança continuamente ressignificada. Embora estudemos e nos dediquemos a isso, somos também seres inseguros e desejosos de algo que nos acalme e, nesse caso, as certezas caem como uma luva, não?

Estou lendo um livro que está sendo tão forte e impactante que está produzindo em mim algumas dessas reações colaterais. O livro é A menina da montanha, de Tara Westover, uma americana que pisou pela primeira vez numa sala de aula aos 17 anos. E pasmem: foi direto para a faculdade! Embora sua mãe tivesse alguma intenção de educá-la, ela sequer teve ensino em casa. Vocês podem estar se perguntando porque isso aconteceu e a resposta é o início desse texto: a certeza nos cega e nos impede de ir além.

A crença religiosa do pai de Tara produz verdades com v maiúsculo, que não podem de forma alguma ser pensadas, repensadas e muito menos questionadas, mesmo pela sua esposa. Nessa crença que se torna, então, delirante, não há espaço para dúvidas, o que impede que percebam as situações de extremo risco a que se expõem e, consequentemente, expõem seus filhos.

A tão sonhada e desejada (por todos nós) certeza, nessa história, é apresentada de forma cruel, violenta e impeditiva de cuidado. A história de Tara tem me emocionado tanto que muitas vezes preciso parar e (re)pensar, o que tem me feito olhar para as minhas tentativas vãs de encontrar certezas asseguradoras e tranquilizadoras sob um novo prisma, impossível de ser ignorado e esquecido.

Tara escreve numa passagem, após perceber que o que o pai falava não fazia mais sentido pra si mesma: "Admitir a incerteza é aceitar a fraqueza, a impotência, e acreditar em si mesma apesar delas. É uma fragilidade, mas nela existe uma força: a convicção de viver na minha própria mente e não na mente de outra pessoa. [..] Não saber ao certo e me recusar a ceder àqueles que alegam ter certeza era um privilégio que nunca tinha me permitido antes. Minha vida me foi narrada por outros. Suas vozes eram vigorosas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorreu que minha voz pudesse ser tão forte quanto a deles".

Perceber a força que há na incerteza é, de fato, uma das tarefas mais difíceis e também mais valiosas dessa vida. Desde pequenos somos ensinados a decorar, a andar nos trilhos, a fazer planilhas, a saber o que queremos ser quando crescer e isso vai consumindo pouco a pouco o ser que estamos sendo no agora, que paradoxalmente, é o único momento que temos e, portanto, o único possível de construir base para o futuro.

Então, se eu puder dar um conselho é que duvidem de quem tem certezas pra dar e vender, façam perguntas, se inquietem com as dúvidas, se angustiem enquanto não encontram uma certez...ops, já foi, deu tempo nem de terminar a escrita. Entendam que não se prender em certezas (que, inclusive, são sempre passageiras) é uma dádiva e não uma tortura. Se permitam fluir junto com o mistério.

Numa análise é isso que a gente encontra, um espaço fértil para fazer perguntas, não quaisquer perguntas, mas as suas perguntas, as que te impulsionam, as que fazem morada dentro de você. Como Tara coloca, é desbravar a própria mente antes de moldá-la a qualquer outra. E, se você encontra um psicólogo que prontamente lhe oferece respostas rápidas, fórmulas mágicas e promessas de cura: fique em alerta, é cilada na certa!

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