O Brasil de ‘Temer”: da ditabranda para a ditadura?

O Brasil de ‘Temer”: da ditabranda para a ditadura?

A música “Brasil” de Cazuza, da década de 1980, dizia “Brasil, mostra a tua cara /Quero ver quem paga /Pra gente ficar assim /Brasil /Qual é o teu negócio? /O nome do teu sócio /Confia em mim”.

17 de junho de 2016, dois meses depois do início do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, e décadas depois da música de Cazuza, vemos ao vivo, em cores e em rede nacional o desfile de nomes e siglas partidárias, de ontem e de hoje, sufragados para nos representar, mas que na realidade nos aliena e faz a “gente ficar assim”: terceiro mundo, serviços públicos precários, endividados, presente falido, aposentadoria capenga para a iniciativa privada e polpuda remuneração da aposentadoria para algumas das carreiras e funcionários do Estado, e com o futuro comprometido; pasmados diante do caos do Estado tornado patrimônio privado em proveito de caciques políticos e empreiteiras com lucros comparáveis ao grande capital internacional – que os indígenas nos perdoem pelo termo.

O desfilar de nomes e siglas partidárias, envolvidas em denúncias e crimes contra a cidadania, não é fenômeno novo e nem estranho à República no Brasil, e muito menos a história que a antecedeu. Mas, não deixa de ser original o fato de que no tempo presente conhecemos a gramática e a hierarquia do patrimonialismo, traduzido no cotidiano como corrupção e, como ironia histórica histriônica, dado à luz por determinação legal sancionada e patrocinada pela presidenta afastada pelo ritual do impedimento, Dilma Rousseff, na Lei 12.850/2013.

Embora houvesse legislação pretérita quanto a delação foi a Lei 12.850/2013 que possibilitou avanços sem precedentes, como podemos ver a olhos nus pela atuação do Juiz Sérgio Moro – ainda que questionado e questionável em alguns de seus procedimentos – e que tem levado para a punição exemplar pela perda da liberdade – ainda que em prisão domiciliar – alguns dos principais nomes da política e do empresariado nacionais. É um feito sem precedentes, assim com o foi o contexto que possibilitou este processo histórico.

As manifestações do início do ano de 2013, e que se notabilizaram em junho, tinham por marco inicial as péssimas condições do serviço público em geral e, em particular, de transporte coletivo em face do preço e do aumento das passagens diante do baixo rendimento salarial da população. Num crescendo alocou interesses outros e tornou-se num caudaloso movimento contra tudo que tem oprimido de modo atávico a nação, em especial, o patrimonialismo, o partidarismo de elite, como pano de frente a um movimento que tinha como estofo o antipetismo, ou melhor, o direito a uma democracia com conquistas sociais face a uma classe média que descobria, aturdida, sua realidade diante da ascensão dos mais pobres: a classe média também faz parte da pobreza face ao grau de exploração a que é submetida mesmo com títulos e relações preciosas.

Como tentativa de esvaziar o discurso explícito das manifestações, a pouca transparência do Estado e impunidade dos corruptos e ladrões endinheirados da nação e do Estado que inviabilizavam serviços públicos de qualidade, viu-se a presidenta e todo o aparato republicano impelido à lei mais abrangente e severa que pudesse dar satisfação à nação; o que resultou na Lei 12.850/2013.

Se num primeiro ponto respondia pela ânsia histórica por um Estado democrático de fato e não só de direito, por outro deu combustível para a já combalida República administrada pelo Partido dos Trabalhadores, devido ao Mensalão, ao que se somou o Petrolão. Assim, o discurso implícito ganhou força, o de retirada do PT do controle do poder de Estado. Neste ambiente beligerante entre as elites e com o aporte legitimador do judiciário, que fazia cada vez mais baixas no Partido dos Trabalhadores e aliados que veio num crescendo os autoritários com seu discurso anti ganhos sociais em nome de certa estabilidade econômica, ou seja, o tradicional direito da classe média em explorar os de baixo da pirâmide posta em risco pelos avanços sociais, num primeiro momento, e agora carcomido pela crise econômica-política.

Pouco afeitos a democracia eleitoral, sobretudo a democracia social, os autoritários tiveram munição suficiente para realizar as maiores manifestações vistas no Brasil desde as que pediam o impedimento de Fernando Collor, mas bem aos moldes da histórica Marcha da Família com Deus que estendeu de março a junho de 1964. Neste país que não é para amadores, é interessante notar como os autoritários instrumentalizaram um meio legítimo de participação democrática para trabalhar contra a democracia. O efeito foi o terceiro turno realizado no domingo dia 17 de abril de 2017 e que marca o início de transformações profundas no Brasil.

O afastamento da presidenta eleita com Michel Temer no exercício da presidência pode ser comparado ao primeiro episódio histórico que levou ao golpe de 1964, o parlamentarismo. Assim, estaríamos diante da ditabranda realizada com aportes democráticos para se legitimar, mas com objetivos antidemocráticos de fato?

A ditabranda, ou soft power, tem por missão criar uma nova hegemonia a ponto de legitimar os novos atores no poder. Todavia, isto seria possível apenas revertendo a Lei 12.850/2013 e com isto limitando o poder da Lava jato de modo mais imediato. Como denunciado por Sérgio Machado os planos visavam conseguir isto até 2018 com uma nova Constituinte. Ou seja, há um projeto em curso em meio aos parlamentares de médio prazo.

O sinais da ditabranda são sensíveis: formação de um ministério patriarcal, secretaria das mulheres com uma secretária anti-feminista, “defesa da mulher bela, recatada e do lar”, fim do Ministério que defendia Mulheres, Negros e LGBTT, desocupação de prédios públicos sem mandato, prisão de professor que realizava aula pública, prisão do primeiro jornalista no exercício da função no Brasil, Rio Grande do Sul, Matheus Chaparini, em 34 anos; tentativa de controle dos meios de comunicação social, tipo “Zap-zap”, decretar a “falência econômica do Estado” via Estado de calamidade, e a lista pode ser ampliada.

Neste ponto, resta saber se, diante da impossibilidade social de se parar a Lava jato que já anuncia a probabilidade de se chegar ao presidente interino, se utilizar-se-á mais uma vez o hard power, a ditadura como resposta para legitimar o poder estabelecido em nome da extração máxima do lucro diante de uma elite pouco afeita à democracia e seus rituais e diante de um Estado que se diz falido. Ou seja, os fins justificariam os meios?

No hard Power decretar a falência econômica do Estado é meio para se legitimar toda ação possível para a extração do lucro. Neste assunto chegamos ao ponto de partida, as manifestações de julho de 2013 – que já demonstravam o esgarçamento da capacidade do povo de pagar taxas, tributos e outros elementos mais para se manter as prática que por séculos sustentam os usos patrimoniais do Estado. E, mais que isto, notamos um projeto bem elaborado, onde o discurso oculto é mais forte e importante que o explícito.

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