Conexões possíveis

Conexões possíveis

Na última terça-feira, estava em casa, cozinhando, e quando fui tirar uma travessa do forno, relei, distraída, o dedão no grill e o queimei. Desde então, me acompanha uma dorzinha chata, aguda, insistente... Latejante.

Engraçado que, imediatamente, o episódio me remeteu à reflexão sobre o que eu precisava aprender com isso... Além de prestar mais atenção ao que faço, claro!

Fiquei buscando mentalmente uma relação desse pequeno evento com algum significado maior que a vida estivesse tentando me dizer, afinal, tudo o que passamos são autocriações para nosso aperfeiçoamento. Naquele momento, no entanto, não me ocorreu nada além da dor e acabei deixando a tal reflexão para lá.

No dia seguinte, no horário do almoço, vi meus planos de executar algumas tarefas extras no computador desfeito com um problema súbito que o ‘interditou’ e, só por isso, por essa pequena eventualidade, acabei indo almoçar na cozinha, na companhia de alguns colegas de trabalho, momento em que a conversa pairou sobre a temática do suicídio. Justamente no dia anterior uma jovem de apenas 20 anos havia atentado contra a própria vida, causando comoção nos colegas e em mim também. Muito nova para dar tão pouco valor à vida...

Uma opinião aqui e outra ali, um achando que era um ato de coragem e outro de covardia, me vi, de repente, revisitando a minha própria adolescência... Relembrando um período bastante difícil, de muitos conflitos internos, onde me sentia demasiadamente sozinha, incompreendida, revoltada, sem amigos, sem amor, sem lugar neste mundo... Não foram poucas as vezes, ali, naquele passado nem tão distante, que também desejei partir... Fugir de casa... Fugir da vida... A adolescência é dramática!  

Não sei que razão, no entanto, me distanciou dessa ideia... Pensar no pesar da minha mãe talvez seja uma. Uma natural covardia, quem sabe, ou então uma proteção invisível, uma espécie de ‘manto protetor’, lançado sobre mim, por merecimento anterior, talvez tenha sido preciso nesta fase complexa da vida... 

O certo é que este episódio me fez revisitar um lugar perdido em mim mesma, um lugar de solidão, de rejeição, de um sofrimento que, embora tenha ficado no passado, posto às miudezas da pouca significância própria da pouca idade, de alguma forma, deixou uma marca à qual não estava prestando atenção... À qual, inclusive, venho fazendo questão de driblar, de não olhar, de esconder de mim mesma...

Acho que as miudezas todas da gente merecem valor.

Passou a quinta... Chegou a sexta-feira e, ainda dentro dessa mesma semana esquisita, uma terceira situação veio reforçar a necessidade de olhar melhor para minhas memórias, minhas reminiscências infantis e juvenis...

Ver frustrada a expectativa da visita de uma pessoa muito querida, dessas com as quais nos identificamos demais, por quem nutrimos um amor todo especial, me abalou mais profundamente do que eu esperava e desejava.

Em outro momento, por certo, seria algo corriqueiro. Apenas mais um desses desencontros comuns da vida moderna e corrida que todos vivemos.

Nesta sexta-feira, no entanto, me vi — uma adulta de quase 40 anos —sentindo-se como uma criança de seis, ressentida porque a amiguinha do colégio faltou ao aniversário. Emburrada, bicuda e pirracenta. 

Uma mistura amargosa de infantilidade e necessidade de sentir isso plenamente se apoderou do meu fim de semana, tornando o sábado e o domingo nublados, sem sol, dentro de mim, mas pela manhã, na segunda-feira, assim como toda criança inocente que preza mais brincar do que brigar, já estava de volta ao jogo.

Surpreendentemente – como a vida sempre é -, ao relatar minha sensação de abandono para essa amiga, ela iluminou tudo ao meu redor com sua sabedoria pontual, pedindo para refletir sobre a oportunidade de encerrar com amor esse ciclo.

Pude ver, claramente, a criança e a adolescente tímida e retraída que sempre fui, sentindo sempre muito medo da rejeição...

E como num ‘passe de mágica’, de repente, uma situação foi se encaixando à outra, ganhando sentido e pude compreender, desde as profundezas de mim, que tudo está intrinsecamente conectado, mostrando-me, escancaradamente, através das memórias que trago consciente e inconscientemente, que há uma origem e um propósito... Sempre.

Ainda com o dedão latejando sua dorzinha insistente, veio à tona a memória de criança, da menina de sete ou oito anos apenas, que se queimou no ferro de passar roupas e ganhou uma bolha enorme no pulso. Veio a sensação desgostosa de uma dor não associada propriamente à queimadura, mas ao que aconteceu depois... A dor da menininha sentada na carteira de madeira antiga, na escola, que teve a bolha no braço apertada pela brutalidade com que a professora segurou-lhe o braço para alguma bronca e que se viu em enorme enrascada dali por diante, por quase toda uma vida...

Ainda que não nitidamente, lembro-me claramente do sussurrar de uma coleguinha para que eu contasse aos meus pais que a professora havia me machucado. Ainda vagamente, em meio à névoa do tempo, me vejo sentada diante da diretora, de sua grande mesa de madeira e do meu pai, me olhando com seus olhos de fogo inquiridor, querendo que eu vomitasse a Verdade. 

Lembro claramente - e essa é a memória mais dolorida do que a queimadura -, de estar novamente sentada na carteira de madeira, na sala de aula, com a velha professora andando pra lá e para cá, dizendo para todos os coleguinhas que ela quase havia sido presa por minha causa e questionando todos aqueles pequenos serezinhos se haviam visto ela me agredindo. Recordo vagamente dos pequenos olhares de horror apontados para mim e da sentença de mentirosa que rapidamente me deram. Lembro, tão claro como o Sol, embora não possa precisar quem era, de virar para a coleguinha da carteira ao lado, que havia incentivado a delação, procurando o apoio de uma testemunha, dizendo que ela tinha visto e dito para que eu contasse aos meus pais, mas só encontrando ali mais um olhar de reprovação, mais uma testemunha de acusação.

Hoje em dia, mulher feita, mãe de uma menininha de sete anos, já não consigo precisar mais exatamente a verdade... Não posso ‘jurar de pés juntos’ que tudo tenha se passado exatamente como a minha cabecinha de criança recorda. Não posso afirmar que a professora mal humorada, que logo em seguida trocou nossa turma por ‘uma tal’ aposentadoria, não tivesse lá no seu íntimo com as suas razões.

Eu, que a cada dia nesse processo Juan de La Luz, compreendo melhor como a verdade pode ser uma grande ilusão, só sinto doer, essa dorzinha latejante e insistente, feito queimadura, que marca profundamente... A dor da rejeição. Essa dor que me acompanha, desde então, alimentada pelo medo da traição dos amigos, pelo receio do julgamento alheio, pela falta de confiança em mim mesma e na minha capacidade de discernir entre o certo e o errado, pelo medo de errar e ter que conviver com essa marca, assim como a dessa queimadura que até hoje posso ver em meu pulso, ainda que quase imperceptível....

Veio, assim, esta nova queimadura no fogão, totalmente displicente, latejar essa memória profunda a partir do meu dedão.

Vem me dizer, quem sabe, para sobrepor à essa memória uma outra qualquer mais feliz. 

Instalando-se, estrategicamente, justamente no dedão da escrita, para estar sempre à vista, vem tornar-se uma nova marca, a da transcendência de um sentimento tão triste, que me mantém em um lugar tão solitário, quando eu, em mim mesma, sou um ser tão abundante de amor para ofertar para toda a humanidade. Assim como qualquer criança, antes de ser maltratada.

Uma semana depois, praticamente, em que estas pequenas situações foram se apresentando, uma a uma, alcanço, graças à sensibilidade aflorada pelo processo de imersões quânticas e pela guia amorosa de mestre Juan -  que nos ensina a agradecer por cada momento e por cada ser que se coloca diante de nós, como instrumento para nos ensinar sobre nós mesmos -, a dimensão do quanto venho maltratando meu ser, há muito tempo, por um sentimento de culpa infantil... Por uma necessidade de aprovação, muito bem utilizada pelo ego, articulada para me manter prisioneira da vitimização, para me prostrar em desarmonia com o próprio amor que existe em mim e que sou capaz, desde menina, de não conter, de expandir...

Agradeço, assim, humildemente, por esta bendita queimadurazinha, que será sempre uma lembrança feliz, de um momento feliz de profunda autoanálise. E que estará ainda, pelo tempo suficiente, como uma pequena marca, sempre à vista, para me auxiliar na tarefa de transcender esta emoção, esta memória, todas as vezes que uma situação se apresentar disparando dentro de mim esse ‘gatilho’ sensorial da rejeição.

Como um amuleto da sorte...

Está é a minha queimadura do Amor.

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