A baixada resiste

A baixada resiste

Apesar de estarem em plena revitalização cultural, Centro e Campos Elíseos ainda sofrem com antigos problemas, também presentes no restante da cidade

O educador brasileiro Paulo Freire dizia que era fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que, em dado momento, não exista diferença entre a fala e a prática. Democratizar a cultura e levá-la a quem precisa, transformar por meio da educação e popularizar a arte em todas as suas formas são lemas repetidos tantas vezes e por tantas pessoas que, cada vez mais, parecem estar mais longe da realidade. 

Entretanto, a distância entre o discurso e a prática está cada vez menor em Ribeirão Preto. Nos últimos anos, o município presenciou um movimento de revitalização cultural da área da baixada, no Centro da cidade e nos Campos Elíseos. Levando espaços de fomento à cultura, com preços acessíveis e no coração da cidade, a iniciativa privada mostrou que é possível pôr em prática o que muitos tentaram por meio do poder público.

Não obstante, apesar do avanço cultural naquela região, os problemas com pessoas em situação de rua, drogas e prostituição ainda são desafios a serem enfrentados pela administração Apesar de receber um público jovem, o Memorial da Classe Operária, a UGT, guarda uma história quase centenária de lutas e movimentos sociaispública — tanto para ajudar e dar visibilidade àquelas pessoas marginalizadas, quanto para atrair mais visitantes para a região. O local, visto como uma área decadente por parte da população, carrega uma bagagem cultural e histórica valiosa para Ribeirão Preto.

Atualmente, Armazém Baixada, UGT, Toca do Jack, O Hierofante, A Egregora, A Fábrica de Extintores, Armazém Verde e Galpão 20 levam cultura, música e arte a uma das zonas mais tradicionais da cidade. Em um movimento que começou a ganhar força há cerca de quatro anos, os oito espaços se concentram entre a baixada central e os Campos Elíseos. Cada uma com seu estilo, desde o rock underground da Toca do Jack até a brasilidade do Armazém Baixada, passando pelos debates filosóficos do O Hierofante, cada uma tem sua função e importância no cenário cultural contemporâneo de Ribeirão Preto. 

Um destes espaços, que se tornou referência na cidade, é o Memorial da Classe Operária da União Geral dos Trabalhadores (UGT). O colaborador do Memorial, Vinícius Barros, explica que, apesar de ter se tornado um ponto de encontro de pessoas jovens atualmente, a história do prédio da rua José Bonifácio é antiga.  Na década de 1930, a UGT sediou bailes, apresentações teatrais, reuniões políticas e culturais. “Essa história começou com os militantes anarquistas e comunistas, que buscavam potencializar as pautas políticas por meio da arte”, comenta Barros. Além disso, o prédio era cedido para coletivos negros da época, que sofriam com racismo e falta de opções culturais.

A nova fase do Memorial começou em 2011, a partir do Pontão de Cultura Sibipiruna, uma ação cultural que durou três anos no espaço. “Depois desse legado cultural e material, potencializamos os eventos e as articulações. Hoje, temos um público e uma identidade muito forte como território cultural, histórico e político da cidade”, conta o colaborador. Atualmente, o Memorial é mantido pela Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil (ACEPB) e pela Associação Amigos do Memorial da Classe Operária - UGT (AAMCO-UGT).

Preconceito, descaso e má fama

Apesar do grande avanço que estes espaços trouxeram para a região da baixada, ainda há muito a ser feito por lá. A imagem do local, para parte dos ribeirãopretanos, não é das melhores. Prostituição, pessoas em situação de rua, usuários de drogas e vários relatos de furtos foram alguns dos fatores que tornaram a baixada um lugar abandonado no Centro da cidade.

Para Vinícius Barros, o problema é mais profundo do que uma crítica pontual à baixada. Para o colaborador, a imagem que o ribeirãopretano tem daquela região está relacionada ao preconceito. “Acontece na baixada algo semelhante, mas não igual, ao que acontece nas periferias: um completo abandono do poder público. A exploração sexual, o consumo de drogas, a população de rua e a decadência urbana da baixada são reflexos da ausência de projetos que correspondam com a importância do lugar e das pessoas”, ressalta Barros.

“A exploração sexual, o consumo de drogas, a população de rua e a decadência urbana da baixada são reflexos da ausência de projetos que correspondam com a importância do lugar e das pessoas”, critica Vinicius Barros

Já para Simone Litran, que está à frente do Armazém Verde, nos Campos Elíseos, o movimento ainda não chega a ser uma revitalização da baixada. “Ainda é um esforço e desafio muito grande trazer as pessoas para esta região”, comenta.  Simone completa frisando que o preconceito com a região é uma das maiores dificuldades para atrair o público. “Por aqui não temos o padrão estético urbano que a cidade valoriza. O bairro está muito abandonado, com muitos andarilhos. Acredito que tudo isso contribua para aumentar o preconceito”, conclui Simone afirmando que, infelizmente, ainda não consegue enxergar uma cultura de valorização histórica em Ribeirão Preto.

A secretária da Cultura de Ribeirão Preto, Isabella Pessotti, reconhece o problema. “É uma questão crescente de grandes cidades, sendo um assunto tratado, principalmente, pela Assistência Social. Contudo, entendemos que a cultura tem um papel muito significativo nessa promoção social. Acreditamos que quanto mais as ações de revitalização do Centro avancem — principalmente as provenientes de entes privados e do terceiro setor — mais essa população de rua será incluída”, observa Isabella.

Para a secretária da Cultura, Isabella Pessotti, a cultura tem um papel significativo na promoção social

A secretária também ressalta a importância das ações feitas pelos espaços culturais e coletivos, que fazem não só um trabalho de preservação do patrimônio material, mas também promovem a cultura e a inclusão da população de rua.  

Consolidar e revitalizar

A presidente da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto, Adriana Silva, concorda com a secretária da Cultura. Segundo Adriana, o Centro, os Campos Elíseos, o Ipiranga, a Vila Virgínia e o distrito de Bonfim Paulista estão entre as localidades mais antigas de Ribeirão Preto. Em trabalho realizado entre 2009 e 2011, estes locais foram mapeados e identificados como corredores históricos de cada localidade. “Preservar esses corredores é muito importante para a cidade. Pensar na ocupação desses bairros por projetos culturais é um meio de preservar sem estagnar. Seria muito positivo para o município reconhecer a importância histórica desses bairros e do distrito. A rua José Bonifácio, por exemplo, guarda o mais expressivo conjunto arquitetônico da cidade”, frisa Adriana.

Além da Fundação do Livro e Leitura, Adriana também é vice-presidente do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC). No Instituto, existe um projeto que prevê a criação de redes de cooperação e cadeias produtivas, entre elas, a cultural, para a preservação e a manutenção destes corredores históricos.

“A rua José Bonifácio, por exemplo, guarda o mais expressivo conjunto arquitetônico da cidade”, frisa Adriana Silva

Um dos movimentos que fazem parte dessa sinergia em benefício do cuidado com as áreas históricas é a Cooperativa de Arte e Cultura de Ribeirão Preto, criada recentemente. Segundo Flávio Racy, um dos fomentadores do movimento, a Cooperativa é uma reunião de artistas, agentes e movimentadores da cultura na cidade. “Nós nos juntamos desde o começo do ano para debater o assunto e, recentemente, oficializamos a Cooperativa, que tem como foco a defesa e o fortalecimento da arte e da cultura na cidade”, explica Racy.

O representante da Cooperativa explica que o órgão ainda está em fase inicial, envolvido com documentos e com a burocracia para colocar o projeto em pleno funcionamento. Após esta etapa embrionária, a Cooperativa discutirá, principalmente, políticas públicas voltadas para a cultura na cidade. O local escolhido para o projeto não poderia ser outro. “Temos nosso espaço, a Casa das Artes, que acabou de ser transferida para Flávio Racy faz parte da Cooperativa de Arte e Cultura de Ribeirão Preto que tem como foco a defesa e o fortalecimento da arte e da cultura na cidadeo Centro da cidade. Estamos reformando o espaço e será reaberta na baixada, junto com o Armazém Baixada”, conclui Racy.

Já para o colaborador do Memorial UGT, Vinícius Barros, o que precisa ser feito na baixada é o que precisa ser feito em toda a cidade. Barros ressalta que é necessário um projeto de cidade para os cidadãos, e não para uma classe de empresários que desfrutam do polo econômico que a população construiu e ainda constrói. “A baixada reflete a decadência de regiões para além da zona sul, local escolhido para sediar o desenvolvimento da dita capital do agronegócio. As mazelas que estouram na baixada são motivadas pela exclusão gritante numa cidade com cerca de 90 favelas e milhares de desempregados”, finaliza Barros. 

Mapa cultural da baixada



1-Galpão 20 
R. Marques de Pombal, 20

2-A Egrégora
R. Pompéu de Camargo, 282

3-Toca do Jack
R. Paraíba, 266

4-UGT
Rua José Bonifácio, 59

5-Armazém Baixada
R. Duque de Caxias, 141

6-O Hierofante
R. Goiás, 1420

7-A Fábrica de Extintores
R. Flávio Uchôa, 2151

8-Armazém Verde
R. Pinheiro Machado, 1007

Texto: Paulo Apolinário
Ilustração capa: Alexandre Nascimento
Fotos: Lidia Muradás e Ibraim Leão

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