Histórias reescritas

Histórias reescritas

Não fosse pela Educação — um trampolim para a transformação de suas vidas —, os destinos traçados na maternidade para Laura Martins, Carla Magalini e João Gandini certamente levariam a outros lugares

São poucos os instrumentos capazes de operar significativa transformação na vida de um ser humano. A Educação, sem dúvida, está entre os mais poderosos. Aliada à disciplina e à determinação, pode levar muito longe qualquer pessoa, sendo uma importante ferramenta contra a miséria e uma das maiores violências: a falta de perspectiva para o futuro.
Há milhares de histórias que comprovam a afirmação. São casos sempre emocionantes, instigantes e inspiradores, que fazem refletir sobre as infinitas possibilidades a que está submetido o ser humano, assim como determina a física quântica, principalmente, diante do impulso da vontade, que cria oportunidades.

Apenas para citar algumas, as narrativas a seguir — de João Gandini, Laura Martins e Carla Magalini — falam por si mesmas sobre a importância do estímulo e do investimento na formação de uma pessoa. São histórias de vida de superação, por meio da Educação, que ilustram a necessidade urgente do país de olhar com mais atenção para a construção do seu saber, pilar fundamental para a qualidade de ser.

Menino juiz

João Gandini: de menino da roça a juiz, com muita dedicação ao estudoAos 61 anos, 27 deles dedicados ao ofício de juiz de Direito, João Gandini não pode parar. Atuando como advogado, depois da aposentadoria, o menino nascido em Adolfo, interior de São Paulo, que há nele e que nunca desistiu dos seus sonhos continua muito vivo e persistente. Se lá atrás, a infância pobre, mas feliz, e a limitação da zona rural não o impediram de decidir, aos sete anos, que seria juiz, mesmo sem saber ao certo nada sobre a profissão, não seria agora, depois de tantas conquistas, que o menino Gandini entregaria os pontos.

Se, hoje, quando olha para trás, há tanto a se orgulhar e agradecer, o ex-juiz sabe que isso se deve, em grande parte, à Educação, não recebida, mas conquistada. “Não consigo me ver sem a educação que tive, sem os livros que li. Não saberia, de verdade, viver de outro modo”, confessa. 

Sem a participação dos pais na educação formal, pois eram analfabetos que trabalhavam como lavradores, Gandini começou cedo a trabalhar na roça, depois na cidade, onde vendeu banana, sorvete, catou papelão e foi feirante. Só com a mudança da família para Araçatuba e depois em São Paulo, após os 11 anos, passou a ter acesso a livros, seus grandes aliados. “Sempre gostei muito de ler, li tudo o que pude e passei também a escrever, sobretudo poesia. Estudei em escolas públicas, do grupo escolar ao mestrado, e meus colegas de escola primária diziam que eu nunca seria juiz, por ser muito pobre, morar na roça e ser filho de pais analfabetos. A Educação foi o caminho que encontrei para chegar aonde queria”, conta membro da Academia Ribeirãopretana de Letras que já escreveu 16 livros.

Como sabia das dificuldades e que a Educação, para ele, seria a chave do sucesso, estudou sistematicamente sempre, até mesmo porque, sendo muito pobre, não teria condições de pagar uma faculdade ou fazer cursinho. Foi assim que passou no vestibular da Universidade de São Paulo e ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a mais conceituada do Brasil. Também assim entrou por concurso na Caixa Econômica Federal, onde trabalhou no Departamento Jurídico durante toda a graduação. Ainda assim, dedicando-se ao estudo persistente, ingressou na Magistratura logo após a formatura, no primeiro concurso prestado, sendo aprovado entre os primeiros lugares.

“Persegui de tal forma meus objetivos que, se pudesse voltar no tempo, não mudaria absolutamente nada, faria tudo como fiz, exatamente. Minha vida foi impactada pela formação moral e ética que recebi dos meus pais e pela Educação, pois foi nos livros que me refugiei para chegar aonde estou”, revela o ex-juiz.

Para Gandini, a Educação é o maior investimento que se pode fazer em um ser humano, porque somente ela e a cultura podem, de fato, mudar as pessoas. “Infelizmente, o Brasil está muito atrasado nessas áreas. Nossas escolas, de um modo geral, não proporcionam a educação que seria capaz de mudar o país”, avalia. Sobretudo a população mais pobre está sendo negligenciada, em sua opinião. “Sem uma forte educação, conquistada a duras penas, eu não teria saído da roça, não teria sido juiz, poeta, escritor, professor de graduação e de pós-graduação. Muito possivelmente, não seria tão feliz”, conclui.

Tal mãe, tais filhos

Laura Martins escreveu a obra da sua vida pautada pela paixão à odontologiaFilha de um representante comercial e uma dona de casa, a cirurgiã dentista Laura Moura Martins não recebeu dos pais o exemplo do investimento em uma formação, mas também não faltou a ela o estímulo para se dedicar aos estudos com este fim. “Seu futuro e seus sonhos dependem disso”, diziam os pais. Foi a partir deste apoio que a estudante do "Otoniel Mota" ingressou na Universidade de Uberaba (UNIUBE) e, com muita determinação, começou a trabalhar para ajudar a se manter fora de casa. “Na época, aos 19 anos, comecei a dar aulas de química orgânica, no período noturno de uma escola particular de ensino médio. Os alunos trabalhavam durante o dia e o meu desafio era mantê-los envolvidos com a aula. Foi uma experiência marcante”, relembra. 

Crescer com essa determinação a brindou com muita satisfação pessoal e profissional. Hoje, aos 60 anos, 37 de carreira, à frente do Instituto  de Odontologia, onde também trabalham os filhos Giovanna e Matheus, e envolvida com o ensino no Centro de Pós-graduação e Pesquisa em Odontologia (Cepreno) — escola fundada por ela que se tornou referência no país na área de Odontologia —, Laura se realiza participando da evolução profissional, científica e pessoal não apenas dos filhos, que acabaram seguindo a carreira odontológica influenciados por seu exemplo, mas também de muitos alunos de todo o Brasil.A cirurgiã dentista não imagina o que teria sido de sua vida sem o estudo

A natural inquietação, aliada ao prazer com as descobertas, associada à certeza de que quanto mais aprendesse, mais perto estaria da realização dos seus sonhos, traçou o desenho da história bem-sucedida da dentista, mostrando que coisas pequeninas, quando combinadas, tornam as grandes possíveis.

Sem condições de imaginar o que teria sido da sua vida sem o estudo, sem aquele “empurrão” dado lá atrás pelos pais, Laura pode, ao menos, vislumbrar o futuro com grande entusiasmo, justamente por estar sempre em busca de novos conhecimentos e encarar a vida como uma escola, onde todos permanecem em constante aprendizagem. “Tudo que sonhei e planejei foi alcançado! Aliás, posso dizer que fui muito além. Dei o melhor de mim em cada etapa da minha formação e, hoje, tenho maturidade suficiente para dizer, com certeza, que faria tudo outra vez. Pela Educação aprendemos a nos preparar para vida,”, define.

Alma lavada 

Para Carla Aparecida Magalini, nada caiu do céu desde o parto, que foi complicado e rendeu a ela o diagnóstico de Paralisia Cerebral (CID G8), com comprometimento dos movimentos do lado direito.

Sua história de motivação e superação impressiona, ainda mais, por ter vencido não apenas a dificuldade motora, mas também emocional. Da infância sem luxo proporcionada pela mãe cabeleireira e pelo pai pedreiro — embora valores nunca tenham faltado — até a retomada dos estudos, em busca da formação em nível superior, Carla viveu nada menos do que 36 anos.

Carla Magalini retomou os estudos aos 36 anos para mudar a sua história Foi após a morte da mãe e um divórcio conturbado, que a operadora de caixa de supermercado que ganhava o suficiente para sua sobrevivência decidiu voltar a estudar. “As grandes perdas da minha vida me impulsionaram a recomeçar. Lembro-me da expressão de felicidade da secretária do colégio, quando fui pegar o histórico escolar para apresentar na Faculdade. Ela me emocionou e renovou meu ânimo, fazendo crer que eu estava no caminho certo”, conta a assistente administrativa.

Carla sonhava em ser secretária, trabalhar em uma grande empresa, comer bem, vestir-se melhor, ter uma qualidade de vida maior, mas o ensino superior era algo distante para ela, que cresceu sem o incentivo familiar. Os pais não admitiam reprovação e notas baixas, mas acreditavam que o segundo grau completo era suficiente e a tornaria pronta para casar. 
Dezoito anos depois, viu nos estudos uma oportunidade de reescrever sua história e, desta vez, contou com todo apoio do pai. Optou pelo ensino à distância, pelo custo e pela praticidade de conciliar com o trabalho e, há cinco anos está formada pelo Centro Universitário UNISEB em Gestão de Recursos Humanos. “Estava com muita vergonha, no primeiro dia de aula, sentindo-me muito velha para estar ali com o caderno em mãos. Fui andando até a sala, pensando em abrir a porta e me sentar ao lado da primeira pessoa que sorrisse para mim. Para minha surpresa, lá no fundo da sala, estava uma amiga com quem eu havia perdido o contato”, relembra.

Orientada por um advogado a se aposentar pela deficiência, Carla não escolheu o caminho mais fácil. Chegou a ir ao INSS e a obter os laudos necessários, mas saiu de lá com outro pensamento. Preferiu cadastrar seu currículo em sites de empregos, agora com o nível superior, e terminou contratada por uma multinacional do ramo agrícola, pois grandes Muitas conquistas vieram para Carla depois da retomada dos estudosempresas buscam pessoas com deficiência (PCDs), muitas vezes, em falta no mercado. 

Segundo Carla, se tivesse ficado conformada com a vida como estava, hoje estaria no mesmo lugar. Seria uma operadora de caixa, sem carro, morando com o pai, sem expectativa de uma vida melhor. Voltar para faculdade foi a primeira porta que abriu, assim que a oportunidade apareceu, por isso, hoje ela tem uma história para contar.

Cursando inglês para melhorar sua colocação profissional e viajar para outros países, a profissional sempre aconselha quem está passando por problemas de relacionamento a vencer o medo e a vergonha e retomar o ensino. “Voltar aos estudos com certeza me definiu. Ajudou meu emocional e me transformou em outra pessoa, mais responsável, sociável e sonhadora. Depois de formada, conquistei meu primeiro carro, fiz minha primeira viagem de avião, conheci a Disney, fiz mergulho com cilindro, enfim, deixei o passado onde ele deve ficar: no passado”, finaliza Carla. 





Texto: Yara Racy
Fotos: Júlio Sian e divulgação

Compartilhar: