Inteligência para dar e vender

Inteligência para dar e vender

Cada vez mais presente no cotidiano, a Inteligência Artificial apresenta soluções inovadoras, capazes de detectar problemas pontuais e facilitar a rotina dos indivíduos

Imagine estar em um mundo dominado por veículos sem motoristas, armas autônomas capazes de atacar o alvo sem intervenção humana, robôs inteligentes que substituem os homens em guerras, computadores que tomam decisões se baseando naquilo que é melhor para cada um ou até mesmo a fabricação de namoradas-robôs para homens solitários. Esse universo parecia estar inserido apenas em filmes de ficção científica. Embora a realidade de dominação ainda pareça distante, algumas dessas ideias já estão sendo executadas. Porém, não é apenas nesses conceitos, aos olhos de muitos considerados como surreais, que a Inteligência Artificial (IA) está presente. Esses sistemas estão cada vez mais recorrentes no cotidiano, às vezes, chegando de maneira tão sutil que nem se nota. 

Com capacidade para processar bilhões de informações e transformá-las em dados estruturados, a ferramenta revolucionou a área da saúde, com programas de diagnósticos médicos. Aplicação em jogos, programas de computador, reconhecimento de voz e previsão de comportamentos por demandas de produtos são algumas das infinitas aplicabilidades da IA. O conceito foi desenvolvido na década de 1950 e se refere ao ramo da ciência da computação que se propõe a criar mecanismos que simulem as competências humanas de raciocinar, perceber, tomar decisões e, mais precisamente, a capacidade de ser inteligente. Para relembrar o poder dessas máquinas, o AlphaGo, IA do Google, venceu o desafio de GO duas vezes contra o melhor jogador do mundo da modalidade de jogo de tabuleiro. Acredita-se que o game, que requer estratégia e intuição humana, originou-se na China há mais de 2.500 anos.

Segundo André de Carvalho, especialista em Inteligência Artificial, há inúmeras vantagens desse campo no dia a dia. Receber recomendações de filmes ou séries preferidas, ferramentas de e-mails que identificam o que é spam, um banco que analisa se alguém está tentando realizar uma compra fraudulenta com cartão de crédito ou até mesmo saber que cursos ou empregos se adequam melhor ao perfil de cada um são alguns exemplos. Em contrapartida, o profissional explica que a IA pode ser usada para evitar ou cometer fraudes. “O fogo prepara uma alimentação saborosa, molda uma peça metálica no melhor formato para seu uso, mas também pode destruir florestas e matar pessoas. A roda faz com que cheguemos mais rápido aos lugares e atropela indivíduos. Para reduzir ou evitar perigos, é preciso que seu desenvolvimento e uso sejam regulamentados, para garantir transparência e privacidade”, reforça André. 

“Acredito que estamos distantes de uma inteligência geral superior a nossa”, observa o especialista André

Essas tecnologias também garantem ensino e saúde personalizados. O professor da Universidade Federal de São Carlos destaca que, na área da educação, é possível desenvolver formas de aprendizado que se encaixem melhor ao perfil do aluno, acompanhando seu ritmo e interesse, identificando as deficiências e as corrigindo. No setor da saúde, elas permitem o melhor diagnóstico, combinando o maior número de informações e, consequentemente, a identificação de algum problema mais cedo, o que aumenta as chances de sucesso de um tratamento. Quando questionado se a Inteligência Artificial pode alcançar a singularidade e se tornar superior aos seres humanos, André é enfático. “Não só pode, como em várias atividades ela já é superior, como em jogo de xadrez e em aplicações financeiras que dão mais retorno. Acredito, no entanto, que estamos distantes de uma inteligência geral superior a nossa”, finaliza o especialista.

Diminuição de cirurgias desnecessárias

A tecnologia desenvolvida por pesquisadores da startup Onkos Diagnósticos Moleculares, incubada no Supera Parque de Inovação e Tecnologia de Ribeirão Preto, utiliza algoritmos de Inteligência Artificial para analisar assinaturas genéticas no diagnóstico de tumores. Um dos produtos com o desenvolvimento finalizado é o mir-THYpe, voltado a pacientes com nódulos indeterminados de tireoide. O exame segue a mesma lógica de desenvolvimento de outro projeto da empresa, que visa a detectar de forma mais precisa a agressividade do câncer de próstata. 

Segundo Marcos Tadeu Santos, fundador da Onkos e biólogo molecular, a ideia é desenvolver produtos que diminuam as incertezas diagnósticas em oncologia. “A tomada de decisão sobre o melhor manejo e tratamento de um paciente oncológico está sempre nas mãos de um médico e alguns pontos importantes desta tomada de decisões ainda dependem de técnicas diagnósticas subjetivas. Sabendo das limitações dessas técnicas, normalmente, opta-se por pecar pelo excesso”, argumenta o profissional. 

Marcos explica que, com a nova tecnologia, tem-se um potencial para reduzir 81% das cirurgias desnecessárias

Marcos salienta que há casos em que o paciente passa por cirurgias desnecessárias. “Nós diminuímos a subjetividade de alguns destes processos, que geralmente, são dependentes da experiência pessoal do médico que analisa a amostra. Nossos sistemas de classificação por assinaturas genéticas são treinados para resolver problemas específicos e assim, às vezes, tem uma capacidade de processamento maior e com menos interferências externas do que a do ser humano”, ressalta o profissional, garantindo que a intenção não é substituir o médico. “São ferramentas de apoio, para situações específicas, que sempre necessitarão da interpretação de um médico no contexto dos demais exames de cada paciente”, reforça.

A punção aspirativa por agulha fina (PAAF) é, atualmente, o exame referência na avaliação de nódulos de tireoide. Comumente chamado de “biópsia” da tireoide, ela analisa células retiradas dos nódulos tireoidianos para que um médico classifique este nódulo em maligno ou benigno. Porém, cerca de 20% dos nódulos são classificados como indeterminados, sem que seja possível classificá-lo como benigno ou maligno. “Estes casos possuem baixo risco de ser câncer, quase 70% são benignos, mas visto que não há como saber, ainda são tratados com cirurgia de remoção parcial ou total da tireoide”, explica Marcos. A estimativa, segundo o profissional, é de 40 mil cirurgias desnecessárias de tireoide por ano, só no Brasil. Além do prejuízo aos pacientes, o sistema de saúde pode ter um gasto desnecessário que pode chegar a R$ 500 milhões. O exame mir-THYpe classifica nódulos de tireoide indeterminados em benigno ou maligno a partir da análise de uma assinatura genética por moléculas chamadas microRNAs. 

Marcos lembra que apenas a Onkos e outras três empresas nos Estados Unidos utilizam tecnologias similares para este problema em todo o mundo. Um estudo clínico com mais de 15 universidades e hospitais do Brasil, Argentina, México e Peru está em andamento e deve aperfeiçoar a capacidade do algoritmo classificar essas amostras. 

Soluções educacionais

É inegável que, na área da educação, a Inteligência Artificial pode transformar a realidade pedagógica de professores e alunos. O relatório Intelligence Unleashed, desenvolvido pelo grupo britânico Person, evidencia que ferramentas de IA na nessa área têm avançado muito. Uma iniciativa da Educacross vem ganhando cada vez mais espaço no mercado. Também incubada no Centro de Negócios do Supera Parque de Inovação e Tecnologia em Ribeirão Preto, a startup desenvolve soluções educacionais inovadoras na Educação Infantil e no Ensino Fundamental.

Reginaldo Gotardo, doutor em IA e fundador da empresa, explica que a ideia é detectar padrões de engajamento por parte do aluno e estimular que ele percorra o melhor caminho cognitivo. O aprendizado de matemática, para muitos, não é uma tarefa fácil, uma vez que é preciso raciocínio lógico e dedutivo. Pensando nessa problemática, a startup usa games e algoritmos para melhorar o aproveitamento dos alunos. Na plataforma criada, é possível mensurar perseverança, performance e o tempo gasto em uma tarefa. “As pessoas não têm boas experiências no aprendizado de matemática. Os jogos vêm para ludificar o processo e colocar mecânicas que permitam maior engajamento”, explica Reginaldo. 

Segundo Reginaldo, ter profissionais automatizados ou personalizados gera feedbacks constantes

Ainda é um grande desafio levar a ferramenta para o ensino público, em virtude das licitações. “A falta de transparência de contratação, por exemplo, é um entrave. A burocracia ainda não permite implantar esse modelo. Precisamos entender melhor como o setor público funciona”, observa o especialista. De acordo com Érica Stamato, diretora executiva da Educacross, é imprescindível que a criança acredite na capacidade de resolver desafios para aprender matemática. “Os jogos complementam o aprendizado. Não dá para colocar a criança jogando e tirar o professor de cena, pois ele é o mobilizador do conhecimento”, ressalta. 

“Os jogos complementam o aprendizado”, elucida a diretora executiva da Educacross, Érica Stamato

A startup também criou a TATI, Inteligência Artificial que tem o objetivo de organizar a vida escolar do aluno e estimular melhores resultados na escola, bem como em vestibulares. A solução  acompanha o aluno 24 horas por dia e auxilia, por exemplo, a estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), além de melhorar o desempenho em determinada matéria, com plano de estudo organizado.

Rodas de discussão

Na Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), os alunos podem estar mais próximos de estudos que envolvem Inteligência Artificial. Guiados por um professor especialista em IA, o grupo, criado há um ano e meio, discute os diferentes algoritmos, definidos como uma sequência lógica, finita e definida de instruções que devem ser seguidas para resolução de um problema ou execução de uma tarefa. 

Acadêmicos de diferentes áreas podem participar das rodas de discussão. “Tivemos a necessidade de criar o grupo para aproximar o aluno da inovação tecnológica em Inteligência Artificial e o uso dos mais diferentes algoritmos relacionados aos temas Machine Learning e Deep Learning. A formação de recursos humanos em IA para atender ao mercado atingiu uma complexidade de informações e de algoritmos, o que torna fundamental colocar os alunos em contato com essa tecnologia. Neste período, trabalhamos os conceitos e aplicações em diferentes setores. Na próxima fase, são desenvolvidos projetos em IA”, completa o físico e professor de Inteligência Artificial Milton Faria Júnior. 

O físico Milton sentiu a necessidade de criar um grupo para aproximar o aluno da inovação tecnológica em IA

De acordo o docente, a estimativa para 2030 é que os projetos ligados a essa área movimentem U$ 13 trilhões. “Aprender sobre IA é um diferencial, embora aqui no Brasil os trabalhos estejam engatinhando. Podemos levar conhecimento para segmentos escassos. Gosto da área de saúde, pois ajudar pessoas é o que me encanta”, afirma Alecio Nunes, um dos integrantes do grupo. O colega de estudos Bruno Campos comenta que os cursos oferecidos na instituição fornecem base teórica e os conhecimentos podem ser aplicados em diferentes locais. Para isso, contam com profissionais capacitados que sempre estão abertos ao diálogo.

Bruno Campos e Alecio Nunes

Curso gratuito 


A Data H, startup com foco em IA, criou o Instituto de Inteligência Artificial Aplicada em Ribeirão Preto, voltada para formar profissionais que atuam nesse mercado. “Não queríamos esperar o sistema educacional acordar, por isso, decidimos criar o instituto. Pegamos o aluno e trabalhamos as lacunas que ele precisa desenvolver”, comenta Evandro Barros, fundador da Data H. O instituto, criado há cerca de um ano, oferece vestibular àqueles que querem trabalhar na área de IA, com cursos gratuitos. Para os que almejam uma oportunidade, há uma boa concorrência: foram 180 inscritos para seis vagas. O curso é aberto para todas as áreas. Os interessados devem acessar o site www.i2a2.com.br

A empresa ainda trabalha com um projeto de veículo autônomo, que circulará dentro de grandes plantas industriais. Os testes serão feitos no Canadá, porque no Brasil não há regulamentação do uso desse tipo de carro. “A criação de bolhas sociais e das ‘fake news’ faz parte do lado negativo da IA. Não saberemos distinguir o que é real. Outro problema decorrente do mau uso desses sistemas é a criação de vídeos falsos com pessoas reais. Haverá uma grande evolução. Em contrapartida, teremos impactos sociais gigantes, como na área da saúde, com tratamentos a baixo custo. Lembrando que o problema não está na IA e sim na velocidade das coisas”, afirma Evandro.

“O problema não está na IA e sim na velocidade das coisas”, afirma Evandro

Que mundo é esse?

Na China, um engenheiro especialista em Inteligência Artificial se casou com uma mulher-robô construída por ele mesmo. O casamento teve a participação de amigos e familiares do noivo. A cerimônia, no entanto, não tem valor legal, uma vez que núpcias entre humanos e androides não são legalizadas no país. Na ocasião, havia banquete, presentes e véu vermelho sobre o rosto da noiva.

Elon Musk, milionário fundador da Tesla, empresa especializada em carros elétricos, disse que a Inteligência Artificial pode causar a Terceira Guerra Mundial. Ele declarou, no Twitter, que a corrida para o desenvolvimento de tecnologia pode acarretar tensão entre países e um mero descuido daria início a um conflito. 

O físico britânico Stephen Hawking, falecido em 2018 e um dos cientistas mais proeminentes do mundo, também chegou a afirmar que a IA poderia significar o fim da raça humana. Segundo ele, a Inteligência Artificial tem se mostrado útil na atualidade, mas o grande medo do cientista era de que máquinas fossem criadas equivalentes ou superiores aos humanos. 

Elon Musk e Stephen Hawking

Capital da IA

Tornar Ribeirão Preto a capital brasileira de Inteligência Artificial é tarefa para cerca de 30 integrantes de um movimento que se originou por meio de um grupo de Whatsapp, criado no fim do ano passado. Evandro é um dos responsáveis pela mobilização do grupo. A ideia do projeto é convidar pessoas, mesmo que de áreas distintas, para discutir formas de como chamar atenção de empresas e, consequentemente, tornar-se referência em IA. “O grupo já está formado e atuando em frentes distintas. Há pessoas trabalhando para construir um ecossistema forte. Temos a participação do Cezar Taurion ajudando nesta coordenação. Ele é um dos grandes nomes da transformação digital no Brasil”, ressalta Evandro. 

Paulo Mazzoncini, docente da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e do Departamento de Clínica Médica na área de diagnóstico por imagem, esteve presente na primeira reunião do grupo e analisa a iniciativa com olhar positivo, pois acredita que muitos problemas da área da saúde podem ser resolvidos com ferramentas de IA. “A tecnologia evoluiu e, hoje, tem uma perspectiva mais aplicada do que tinha há 20 anos. Ficava muito em laboratório e dependia muito mais do conhecimento do pessoal de exatas. Hoje, a parte computacional está mais amigável e isso faz com que a aplicabilidade comece a aparecer de forma mais efetiva. Assim, o usuário final, o médico, começa a ver que existe algo que pode ajudar”, complementa.

Segundo Paulo, é preciso inserir esses estudos de IA na formação médica

Já o estudo “Artificial Intelligence and Life in 2030” é o primeiro projeto AI100, que tem como intuito fomentar o debate social e fornecer orientações para o desenvolvimento ético de softwares, sensores e máquinas inteligentes. O estudioso Peter Stone, cientista da Universidade do Texas e um dos membros da pesquisa, evidencia que a IA se tornará mais comum e útil dentro de 14 anos, o que levará à melhora da economia e à qualidade de vida. O relatório ainda aponta que, na área da segurança e segurança pública, cidades já começaram a implantar tecnologias de IA e que, até 2030, a famosa cidade norte-americana dependerá muito dessas ferramentas. 

Câmeras de vigilância que apontam para um possível crime, drones e aplicativos de policiamento preditivo são algumas formas de combater a violência. Trechos do estudo enfatizam que a IA pode permitir um policiamento mais direcionado, usado apenas quando necessário, e também pode ajudar a remover parte do viés inerente à tomada de decisão humana. Casos de êxito da IA estão na detecção de crimes do colarinho branco, como fraudes de cartão de crédito. Ela se fará imprescindível também à polícia em momentos de gerenciamento de cenas de crime ou evento de busca e resgate. 




Texto: Bruna Romão.
Fotos: Ibraim Leão e Júlio Sian.

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