Doação que vale Ouro

Doação que vale Ouro

Estima-se que um litro de leite materno possa nutrir até dez recém-nascidos. Atualmente, existem mais de 200 unidades de bancos de leite humano no país

Uma gestação normal, apesar de algumas turbulências no meio do caminho: foi o que aconteceu com a nutricionista Flávia e o administrador de empresas Fabrício de Freitas, pais de Sofia, hoje com três anos e meio. Os 16 anos que passaram juntos, segundo Fabrício, foram muito bem planejados: namoraram durante cinco anos, casaram e decidiram conhecer o mundo. “Viajamos por muitos países, entre eles, China, França e México”, relembra. Era, então, o momento de ter filhos. Devido ao diagnóstico de endometriose, foi preciso recorrer à fertilização in vitro. A segunda tentativa foi bem-sucedida e Flávia engravidou de Sofia. 

Com 37 semanas, Sofia chegou ao mundo. Começava, então, uma nova fase na vida do casal que, um mês antes do nascimento, descobriu a Síndrome de Down e uma obstrução no intestino, obrigando Sofia, com dois dias de vida, a passar por uma cirurgia. Após uma semana de internação, durante a visita hospitalar, Flávia sofreu um infarto, ficou internada uma semana, mas não resistiu. Sem a esposa ao lado, Fabricio estava sozinho para cuidar da filha. 
Para alimentar Sofia, Fabrício mobilizou diversas mães de Ribeirão Preto e região pelas redes sociais
A necessidade de seguir em frente e a responsabilidade de alimentar a filha foram os motivos que levaram o administrador de empresas a realizar uma campanha de doação de leite via redes sociais. Dia a dia, o Banco de Leite de Ribeirão Preto foi abastecido: à época, em poucos dias, a postagem atingiu mais de 1,8 mil compartilhamentos e mais  de 50 mulheres contribuíram com a doação do leite para alimentar Sofia. 

A história triste foi transformada em superação pelo amor que Fabrício sente por Sofia. “Sei que tudo o que houve foi porque Deus tinha um propósito muito maior em nossas vidas. Sofia é a prova de todo amor que eu e Flávia vivemos juntos e, hoje, ela olha por nós lá do céu”, comenta, emocionado. Para ele, a rede de doações que a campanha moveu serviu não só para alimentar Sofia e tantas outras crianças que necessitavam do leite na época, mas para mostrar que a vida é um sopro e que são as boas atitudes com o próximo que realmente fazem a diferença. 

O pai, então, aprendeu a dar banho, trocar fralda e alimentar a pequena. Com a ajuda das mães que doaram o leite, dos avós que estão presentes até hoje e de uma rede de apoio pessoal e profissional, pai e filha conduzem uma história pautada na superação dos desafios, do respeito às diferenças e, acima de tudo, no amor entre eles, a maior força para suprir a ausência de Flávia.  “Foi preciso entender que Flávia me deu Sofia para não ficar sozinho. Se hoje somos eu e ela é porque nosso amor rendeu um fruto muito especial que me ajudou a passar pelos obstáculos e a retomar minha vida”, conclui Fabrício. 

A empresária Kátia Helen Costa, de 33 anos, foi uma das mães que doaram leite para Sofia. À época, Victor Hugo, seu primeiro filho, estava com três meses e, tocada pela história, decidiu doar. “Tinha acabado de ter meu primeiro filho. Vendo a necessidade da Sofia, descobri a importância da doação. Além disso, o leite acumulado, muitas vezes, pode causar mastite e incômodo na mulher. Quando em excesso, ele pode ser até jogado fora, sendo que é capaz de salvar muitas vidas”, expressa. 
Grávida pela segunda vez, Kátia pretende ser doadora de leite novamente
Grávida novamente, no quinto mês de gestação, Kátia não tem dúvidas: pretende ser doadora outra vez. Para ela, em alguns casos, a falta de informação faz com que as mães deixem de doar. “Muitas mães pensam que doar pode fazer o leite secar, mas, pelo contrário, estimula ainda mais a produção. É um puro ato de amor que pode salvar muitas vidas”, completa. Além de ter tido a oportunidade de ajudar na alimentação de Sofia, ela tem acompanhado — pela internet e pela amizade que surgiu com Fabrício — o desenvolvimento da menina e fica feliz em saber que fez parte dessa conquista. 

Alimento essencial 
Fundamental para o crescimento dos bebês, quanto mais o leite materno é retirado, mais é produzido. O alimento que vale ouro é o mais equilibrado e atende a todas as necessidades nutricionais dos recém-nascidos até os seis meses, como preconiza o protocolo da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, contribui para a formação imunológica, previne alergias, obesidade e intolerância ao glúten, e contém uma molécula chamada Pancreatic Secretory Trypsin Inhibitor (PSTI) — em português, inibidor da secreção da tripsina pancreática —, responsável por proteger e reparar o intestino delicado dos recém-nascidos. Para a própria mãe, o fato de amamentar logo no nascimento do bebê ajuda a prevenir hemorragias pós-parto, reduz riscos de câncer e auxilia na perda de peso.
Lilian destaca os benefícios da doação tanto para as mães quanto para os bebês
De acordo com a pediatra de neonatologia Lilian de Castro Dorado Espinheira, membro do corpo clínico do Hospital Electro Bonini – Maternidade Cidinha Bonini, o leite materno tem papel fundamental no tratamento, adaptação e nutrição do  recém-nascido prematuro ou neonatos com algum problema de saúde grave. Devido à fragilidade da internação dos recém-nascidos, segundo a especialista, nem sempre a mãe tem condições de ordenhar o próprio leite, o que pode reduzir a produção láctea materna. 

Toda mãe em boas condições de saúde que apresente os exames sorológicos colhidos durante o pré-natal, como HAI, Sífilis e Hepatite B e C, podem se tornar doadoras de leite. Segundo a especialista, depois da avaliação da mulher, o valor nutricional e os riscos de contaminação do leite são avaliados e, posteriormente, ele é pasteurizado. 

365 dias de doação
Mãe de Enzo, de cinco anos, e de Maya, de um ano, Milena Lopes de Carvalho Feitosa se orgulha de completar um ano de doação. Nas mãos, ela segura o frasco de 200 ml de leite — a doação da semana — e, no rosto, carrega o sorriso de gratidão por contribuir mais uma vez com tantos bebês. 
Doadora há um ano, Milena pretende continuar até a filha completar dois anos
A primeira vez com que Milena jogou o excedente de leite na pia foi essencial para entender o desperdício e pensar em inúmeros bebês que precisam daquele alimento. “A praticidade do Banco de Leite de Ribeirão Preto me motivou a doar. A equipe de profissionais, além da orientação em relação ao manuseio e à esterilização dos frascos, leva e busca os frascos na nossa casa. Isso é muito fácil”, comenta. 

Semanalmente, Milena tem o compromisso da doação. Segundo ela, já virou regra e a  família também se conscientizou da importância dessa atitude: “O Enzo fala para a Maya que a sobra do meu leite é para os bebês do hospital”, conta. A expectativa, para Milena, é manter a rotina ainda por mais um ano, quando Maya completará dois anos, sendo alimentada exclusivamente com o leite materno. Milena já somou 21 litros de leite doados, o que, para ela, é um ato de amor. “Se eu conseguir, continuarei doando enquanto tiver o leite excedente. Meu sentimento é de pura gratidão por contribuir com tantos bebezinhos, afinal, poderia ser a minha filha precisando”, ressalta. 

Exemplo mundial
O Brasil possui a maior e mais complexa Rede de Bancos de Leite Humano (rBLH) do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), e é modelo para a cooperação internacional em mais de 20 países das Américas, Europa e África, estabelecida por meio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC). Atualmente, existem mais de 200 unidades de bancos de leite humano no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Quase 60 delas estão no estado de São Paulo e, destas, 30 estão ligadas a Ribeirão Preto.

O Banco de Leite Humano (BLH) Enfermeira Anália Ribeiro Heck, do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, atende mães e bebês hospitalizados na UTI Neo. Atualmente, a unidade conta com 78 doadoras e, em setembro, coletou e pasteurizou 237 litros de leite humano. Por dia, cerca de 40 crianças são alimentadas na UTI e a quantidade consumida por criança varia de acordo com a idade, conforme explica a diretora técnica de saúde da unidade, Larissa Garcia Alves. 
Para Larissa, a constância nas doações é um desafio diário no Banco de Leite
Além de receber as doações, o Banco de Leite, segundo Larissa, também atua como uma rede de apoio àquelas mulheres com dificuldade de amamentar, orientando sobre os cuidados com as mamas e o posicionamento do bebê para a pega correta do peito, e estimulando o aleitamento materno. Geralmente, o atendimento é feito a 20 mães diariamente — na unidade da Av. Santa Luzia, em Ribeirão Preto —, tanto as que necessitam de orientação sobre a amamentação e doação, quanto as que passam pela relactação (já amamentaram em algum momento da vida e querem voltar a produzir leite para alimentar um bebê). “No HC, existe um posto de coleta, destinado, prioritariamente, aos prematuros extremos internados na unidade, diante de prescrição médica. O Banco de Leite atua também como apoio a essas mães que estão por lá”, explica a diretora. 

Para a efetivação da doação é feito um cadastro da mãe com triagem sorológica e histórico familiar enviado para o médico responsável. O leite também passa pelo controle de qualidade seguindo à risca as condições de armazenagem e monitoramento de temperatura.  “De acordo com a validade, o leite é descongelado, reenvazado, pausterizado e resfriado. Depois de todo esse processo, é realizado o exame microbiológico e liberado após  48 horas para ser consumido pelos bebês, ou seja, o processo vai desde a orientação da mãe até a oferta aos bebês e é totalmente seguro”, explica Larissa. 

A profissional contabiliza que a quantidade de leite pasteurizado em setembro foi o equivalente à quantidade de leite doado no HC. Segundo ela, alguns bebês ficam internados por meses na unidade e a missão do Banco de Leite é suprir a alimentação durante o período de internação. Em constante campanha para recebimento de leite, a unidade está sempre necessitando de doações, pois depende da quantidade de bebês que nascem no HC. “O maior desafio é manter a constância nas doações, uma vez que, diariamente, perdemos mães doadoras, seja por conta da rotina com seus próprios bebês ou até porque muitas delas retornam ao trabalho dificultando a retirada e armazenamento desse leite”, argumenta. 

A luta pela vida
Desde o dia 21 de setembro, os gêmeos Théo e Arthur travaram uma batalha pela vida. Prematuros extremos, nasceram com 26 semanas de gestação, quando a mãe, Jéssica Januária de Siqueira, de 25 anos, passou mal. Encaminhada ao Hospital das Clínicas, passou por uma cesárea de emergência. Os meninos pesavam 965 gramas quando nasceram, mas Jéssica se orgulha em dizer que já engordaram um pouco, pois são guerreiros. Estavam, na época da entrevista, com pouco mais de um quilo. A mãe recebe os leites doados, mas também é doadora. “Tiro meu leite em casa e doo para o hospital.  Meus filhos recebem, mas eu também fico feliz em poder contribuir mesmo que eles ainda não possam receber o meu leite”, conta. 
“O leite materno vem carregado de amor e sem amor ninguém sobrevive”, frisa Jéssica
A cada dia que vai para casa, Jéssica diz deixar parte do seu coração no hospital. Para ela, uma rotina estressante e cansativa, mas necessária para que a batalha seja vencida. “Ser mãe de primeira viagem é um desafio, de gêmeos é tarefa dobrada e, ainda nas condições que eles nasceram, é uma luta diária”, define, acrescentando que nem todo mundo entende a rotina de quem tem um bebê prematuro, mas que todos os cuidados estão valendo a pena. “Acredito muito neles. Sairão do hospital em breve, eu tenho fé”, emociona-se. Para a mãe, a doação de leite é imprescindível para manter os filhos vivos. “Doar o leite materno é prover a vida, é fazer o muito com pouco. O leite materno vem carregado de amor e sem amor ninguém sobrevive”, resume. 


Você Sabia?
• A produção de leite depende do esvaziamento da mama, por isso, quanto mais a mulher amamenta, mais leite produz.
• Todo o leite doado é analisado, pasteurizado e submetido a rigoroso controle de qualidade antes de ser oferecido à criança.
• O leite descongelado não deve ser congelado novamente.
• Um litro de leite armazenado pode alimentar até dez recém-nascidos por dia. 


Passo a passo
Preparo do frasco
• Reserve um frasco de vidro com tampa plástica, retire o rótulo e lave com água e detergente.
• Ferva o frasco por 15 minutos. 
• Deixe-o secar sobre um pano limpo com a boca do frasco para baixo. Não toque na parte interna do vidro.

Higiene pessoal 
• Usar touca ou lenço para cobrir os cabelos.
• Se puder, use máscara para evitar o risco de contaminar o recipiente.
• Escolha um local higienizado para realizar a ordenha.

Ordenha
• Massageie as mamas fazendo movimentos circulares com as pontas dos dedos.
• Coloque os dedos indicador e médio abaixo da aréola da mama.
• Com os dedos firmes,  empurre-os  em direção ao corpo.
• Aperte o polegar  contra os outros dedos  até sair o leite.
• Coloque o leite no frasco e após a quantidade desejada tampe-o.

Conservação
 • Após fechado, anote na tampa a data, hora e quantidade de leite retirado. 
• Congelar em freezer ou congelador.
* O leite pode ser armazenado congelado por dez dias. Após esse prazo, é necessário descartá-lo.

Benefícios
Para as mães
• Evita o empedramento das mamas.
• Diminui o risco de anemia e hemorragias.
• Reduz a chance de desenvolver câncer de mama, útero e ovário.

Para os bebês 
• Protege contra diarreias e infecções respiratórias.
• Reduz a mortalidade em crianças menores de cinco anos. 
• Reduz o risco de desenvolver doenças na fase adulta como hipertensão e diabetes.

Quem pode doar
• Mães que estão amamentando
• Têm quantidade de leite sobrando
• Não tomam remédios que impeçam a doação 
• Estão com exames e sorologia em dia

Não podem doar
• Fumantes
• Mães que usam bebidas alcoólicas ou outras drogas
• Possuem doenças infecto-contagiosas

Em Ribeirão Preto: 
Banco de Leite Humano (BLH)
Av. Santa Luzia, 387 - Jardim Sumaré, Ribeirão Preto.
Informações: (16) 3610.8686.

Texto: Cristiane Araujo ||  Fotos: Luan Porto 

Compartilhar: