Longe da Califórnia
Todos os seis netos de Maria Nilvia brincam nas ruas e vielas da “Favela do SBT” à espera de um futuro melhor

Longe da Califórnia

Apesar de ser uma das 30 cidades mais ricas do País, Ribeirão Preto enfrenta sérios problemas de desigualdade social; o título “Califórnia brasileira” ainda está longe de ser realidade

Em Ribeirão Preto, cerca de 34 mil pessoas possuem uma renda menor que R$ 179 por mês, o equivalente a R$ 6 por dia. Para efeito de comparação, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera extremamente pobres as pessoas que vivem com menos de US$ 1,90 ao dia — no câmbio atual, é o equivalente a R$ 7,79 diários. Se não fossem os programas sociais, hoje, 22 mil pessoas estariam abaixo da linha da pobreza extrema na cidade. Dessa população, 4,8 mil são crianças de até seis anos. Ainda assim, Ribeirão Preto figura entre os 30 maiores no ranking de Produto Interno Bruto (PIB) do País, todavia, na lista da renda per capita, o município não aparece nem entre os 100 melhores. Com um faturamento per capita de R$ 44 mil por ano, a cidade não alcança nem 15% da renda dos moradores de Paulínia, a primeira do ranking. Como resultado, grande parte população periférica de Ribeirão Preto está muito distante de usufruir dos privilégios de quem mora no lado oposto dessa moeda, na conhecida "Califórnia Brasileira". 
Maria Nilvia tenta cuidar de duas netas com o que recebe do benefício do Bolsa Família
Uma das milhares de pessoas que vivem com a sombra da pobreza rondando a família há décadas é Maria Nilvia, de 57 anos. A dona de casa trabalhou boa parte da vida como faxineira para famílias de classe média e alta em Ribeirão Preto. Apesar do esmero na profissão, não teve a carteira registrada em nenhum dos empregos. “As patroas sempre faziam um acordo, um contrato, mas não assinavam”, relembra. Atualmente, dedica o tempo a cuidar do casal de netos que mora com ela na comunidade que ficou conhecida como “Favela do SBT”. Além deles, outros quatro netos, que também moram na comunidade, passam grande parte do tempo na casa da avó. E, se já não fosse complicado o suficiente, recentemente Maria viu a situação ficar ainda mais delicada em casa, quando uma das filhas se tornou usuária de drogas. Sem emprego, a única fonte de renda da filha são os R$ 170 que recebe do Bolsa Família. Se não fosse pelo salário do marido, que trabalha como pedreiro, a família mal teria dinheiro para comer. “Não dá para criar dois filhos com o Bolsa Família”, afirma. Não obstante, por mais dura que seja a realidade da família de Maria, a situação financeira deles ainda é menos crítica do que a de moradores de outras comunidades em Ribeirão Preto. A casa de alvenaria construída com a ajuda de parentes é um reflexo da lenta e gradual melhoria do bairro. Desde 2007, a “Favela do SBT”, que, oficialmente, não tem esse nome e está dividida entre a Vila Monte Alegre e o Alto do Ipiranga, passa por um processo de regularização dos imóveis. Além dessa, Ribeirão Preto possui outras 95 favelas. 

Complexidade

O caso de Maria traz à tona a complexidade do problema da pobreza não só em Ribeirão Preto, mas em todo o País. Não se trata apenas do valor renda mensal, a dificuldade irradia-se sobre a falta de emprego com carteira assinada, de comida na mesa, de moradia, de educação, auxílio hospitalar e até de distribuição no abastecimento. Segundo moradores ouvidos pela reportagem, a falta de água na região do Monte Alegre, principalmente na favela, faz com que os habitantes se desloquem até uma praça, na Rua Itapetininga, para buscar água em baldes. Questionado, o Daerp não enviou uma resposta até o fechamento desta edição. 
“O Bolsa Família gera condições de crescimento econômico”, avalia o economista Alberto Borges Matias
Segundo o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA/USP) Alberto Borges Matias, o poder público deve avaliar que a estrutura da cidade não serve apenas para os moradores atuais, mas, também, aos que migram para a cidade. Seja de uma cidade da região ou de outros Estados, quando uma pessoa chega a Ribeirão Preto na intenção de conseguir uma oportunidade e uma vida melhor, ela deve encontrar meios para prosperar. “A cidade tem uma das maiores taxas de crescimento populacional do Estado, atraindo, também, a pobreza, seduzida por essa pujança. Isso gera aumento de desigualdade e, em consequência, a necessidade de programas de Desenvolvimento Social”, comenta. 
A presidente da Associação de Moradores do Monte Alegre, Marlene Godoy, conta com doações da sociedade civil para manter de pé os projetos sociais
Outra consequência da pobreza é a dificuldade em prover atividades culturais e educativas pela Associação de Moradores do Monte Alegre, que contempla a comunidade “Favela do SBT”. De acordo com a presidente da Associação, Marilene Godoy Martins da Silva, a falta de recursos e a necessidade quase integral de doações dificulta a criação de um cronograma de atividades. Além disso, a criminalidade ainda atrapalha o desenvolvimento da comunidade. 

A moradora explica que os primeiros barracos começaram a surgir entre os anos 70 e 80 e logo em seguida veio a criminalidade. Segundo relato de moradores que não quiseram se identificar, o tráfico ainda está presente nas ruas e seduz os jovens com a oferta de dinheiro fácil. Os roubos e furtos também são frequentes na região. “Tínhamos dez computadores aqui para oferecer aulas de informática. Agora temos só um, todos os outros foram roubados”, lamenta Marilene. As aulas de informática, Educação de Jovens e Adultos (EJA), de cabeleireiro e a biblioteca ainda em construção, por exemplo, são apenas algumas das opções oferecidas — quando há doações e parcerias — pela Associação. Segundo a presidente, além da quadra do bairro, que está em estado precário, essas são as únicas opções que os jovens da comunidade possuem. Atualmente, com o avanço do processo de regularização dos imóveis — cerca de 70% da casas já estão em vias de receber a documentação da Prefeitura — o bairro tenta apagar o estigma e o peso do título “favela” que acompanhou os moradores por muitos anos. 
“Precisamos entender qual é a realidade em Ribeirão Preto para depois criar uma pauta específica para a cidade” explica Adriana Silva, diretora do Instituto Ribeirão 2030
Adriana Silva, diretora geral do Instituto Ribeirão 2030, argumenta que o problema da desigualdade social não pode ser visto de uma maneira unilateral. "O grande desafio é fazer uma política integrada", aponta. Por isso, o Ribeirão 2030 propõe uma adaptação dos Objetivos de Desenvolvimento da ONU. Ao todo, a Organização indica 17 metas que devem ser alcançadas em escala global até o ano de 2030, sendo a primeira delas a erradicação da pobreza. "Precisamos entender qual é a realidade em Ribeirão Preto para depois criar uma pauta específica para a cidade. Com isso, poderemos definir ideias, propostas, metas e estratégias locais", explica Adriana. Os dados recolhidos pelo Instituto serão apresentados para a população em junho de 2020. Para a historiada Sandra Molina, os objetivos da ONU só serão alcançados em escala local quando houver uma conscientização dos governos e da população. Do contrário, essas políticas continuarão soando muito distantes da realidade local. “"Há de se conscientizar o cidadão que ele é co-criador da política local. Não dá para se fazer uma gestão pública eficiente sem a participação do cidadão. Mas, infelizmente, ele está tão alheio tentando vender o almoço para pagar a janta, que acha que isso não é importante. E é aí que ele se engana", explica Sandra. 

Assistência social

A capital brasileira onde a cesta básica é comercializada pelo menor preço é Salvador — lá o valor é de R$ 382,35. Em São Paulo, custa R$ 509,11. Os preços fazem parte da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, feita mensalmente pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em 18 cidades. Já em Ribeirão Preto, as cestas mais simples, com 24 produtos, podem ser encontradas no comércio custando por volta de R$ 150, enquanto as maiores podem custar até R$ 440. Paralelamente, o valor médio repassado para famílias carentes por meio do Bolsa Família, em Ribeirão Preto, segundo dados do Ministério da Cidadania, é de R$ 171,27. 

Ainda de acordo com o Governo Federal, com base em um levantamento realizado em abril de 2019, cerca de 9,6 mil famílias recebem o Bolsa Família na cidade, o que representa 4,1% da população. Contudo, a cobertura no município é de 65,2%, considerada abaixo da média pelo Ministério. Isso significa que aproximadamente 5,4 mil famílias que deveriam receber o auxílio não o recebem. Para o governo, o foco da gestão municipal deve ser na realização de ações de busca ativa para localizar famílias que estão no perfil do programa e ainda não foram cadastradas. “A gestão também deve atentar para a manutenção da atualização cadastral dos beneficiários, para evitar que as famílias que ainda precisam do benefício tenham o pagamento interrompido”, adverte.

Por outro lado, a Secretaria Municipal da Assistência Social alega que, em 2017, a cobertura do programa era de 36% no município e que a atual gestão foi a responsável por atingir o os 65,23%. “Trabalhamos muito para chegar a esse resultado. A Prefeitura contratou funcionários, por meio de concurso público, e também realizamos contrato com uma empresa para investir na realização de Cadastro Único”, explica o Executivo.

Com efeito, quem sofre os reflexos dos anos de descaso com a assistência social no município é a população mais carente. Segundo Marilene Godoy, a descentralização do atendimento de assistência social causou transtornos para alguns moradores. Ela explica que o CRAS mais próximo da comunidade fica na Rua Rio Grande do Norte, a aproximadamente 2,5 km. “Até 2009, tínhamos uma assistente social aqui para o bairro. Desde que ela se aposentou, nunca mais tivemos ninguém”. Maria, que tem de cuidar dos dois netos, reclama que não consegue ir até o CRAS buscar as caixas de leite oferecidas pela Prefeitura. “Não tem jeito, é pesado e fica muito longe”, lamenta a dona de casa que precisa usar o dinheiro do Bolsa Família para comprar o leite. 
“O cidadão é co-criador da política local. Não dá para se fazer uma gestão pública eficiente sem a participação do cidadão”, afirma a historiadora Sandra Molina
Para o professor Alberto Matias, programas como o Bolsa Família não devem ser taxados como “distribuidores de renda”. Segundo o doutor em economia, apenas distribuir renda indiscriminadamente não retira as famílias da pobreza. Ao contrário: finca os cidadãos na pobreza para sempre. Matias explica que, ao exigir requisitos mínimos da família que recebe o auxílio, como matrícula e bom rendimento escolar dos filhos e carteira de vacinação atualizada, o programa gera condições para que a família saia da pobreza. “Dessa forma, o Bolsa Família gera condições de crescimento econômico”, argumenta. Em contrapartida, Sandra Molina pondera que os requisitos exigidos ainda não são os ideais. Para a historiadora, seria necessário vincular a capacitação da mãe ao benefício. Com isso, além de garantir os estudos e o acompanhamento médico dos filhos, a mãe também seria incentivada a se empoderar e participar de maneira ativa do mercado de trabalho. “Do ponto de vista da erradicação da fome, o Bolsa Família é um ótimo programa, mas ele deve empoderar as pessoas para que elas não retornem mais para a pobreza”, explica. Tanto Sandra, quanto Alberto acreditam que muitos dados, como a escolaridade das crianças, é subnotificado. “Tem famílias que coagem as professoras a colocarem notas positivas nos boletins, apenas para não perderem o auxílio”, revela Alberto. “Por isso, deve-se exigir uma capacitação da mãe. Afinal, se ela não tem uma educação adequada, como vai exigir isso do filho?”, conclui Sandra.  

Texto: Paulo Apolinário || Fotos: Luan Porto.

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