O perigo mora (ao lado) dentro de casa

O perigo mora (ao lado) dentro de casa

Vítimas relatam terem sido agredidas pelos parceiros e contam como foi possível dar a volta por cima

Quando viu um anúncio pela rede social do Facebook “Procura-se namorada para andar de mãos dadas no shopping”, a administradora de empresas Cristina*, de 41 anos, não hesitou em enviar uma mensagem para o pretendente, de quem era amiga virtual. Dias depois, ele respondeu que não morava em Ribeirão Preto, mas que viria à cidade para que os dois se encontrassem. O compromisso foi marcado e, desde o momento em que se encontrou pela primeira vez com o futuro companheiro, a vida de Cristina não foi mais a mesma: teve início um ciclo de violência doméstica.

Com encontros frequentes, Cristina descobriu, em outubro de 2018, que o companheiro fazia uso de cocaína, prática que passou a ser recorrente. Ela descobriu, ainda, que o pretendente mantinha relacionamentos com mulheres em diferentes lugares, além de estar envolvido em casos de agressão contra a mãe e ter passado por várias internações em clínicas de reabilitação. “Em janeiro, ele me segurou com força e me bateu. Até pouco tempo meus braços estavam roxos, porque ele me puxou, batendo no peito. Só o jeito que falou comigo, já demonstrou que estava fora do normal, disse que eu não prestava para nada”, conta.

A história de Cristina não é uma estatística isolada no país. Segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 o Brasil teve 221.238 registros de casos como o vivenciado por ela — o equivalente a 606 por dia. São ocorrências de lesão corporal dolosa enquadradas na Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica. O número de mulheres vítimas de homicídios no mesmo ano foi de 4.539, apresentando um crescimento de 6,1% em relação a 2016 — desse total, 1.133 foram registrados como feminicídios (crime de ódio baseado no gênero). O relatório ainda mostrou que foram 61.032 casos de estupro, representando aumento de 10,1% em relação ao ano anterior.
 
Em Ribeirão Preto, dados do Anexo da Violência Contra Mulher evidenciam 6.222 processos em andamento. Em janeiro, foram distribuídas 185 medidas protetivas e há 172 novos inquéritos. A média de audiências mensais no anexo gira em torno de 60.

Cristina é uma das mulheres que registrou boletim de ocorrência, solicitando a medida de proteção e orienta: procurar ajuda e respaldo judicial é imprescindível. “Vá até à delegacia, registre o que está acontecendo, nunca se sinta sozinha, há uma rede de apoio para amparar. Sofrer calada não é a melhor escolha. Espero que meu agressor receba ajuda de profissionais competentes e que não engane outras mulheres. Agora, vida que segue. Fui enganada, só resta pegar meus caquinhos e reconstruir a vida”, afirma. Hoje, a administradora se envolve com causas de violência doméstica e ajuda vítimas que enfrentam problemas semelhantes, além de prestar assistência a mulheres encarceradas.
“O Naem realiza um atendimento humanizado”, ressalta Laura
Apoios

O Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher (Naem), em Ribeirão Preto, funciona como uma rede protetiva. Bimestralmente, reuniões são realizadas para estimular o diálogo entre os serviços oferecidos no município, com o intuito de melhorar a qualidade, a humanização e a articulação do atendimento. O núcleo recebe apoio da Secretaria Municipal da Cultura e, durante o ano, promove atividades externas para orientar a sociedade acerca da violência contra mulher. O Naem trabalha em parceria com o Anexo de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a Delegacia de Defesa da Mulher, realizando acompanhamento constante. Interage, também, com a área da saúde, oferecendo atendimento in loco, e com a Guarda Municipal, acionando, quando necessária, a Patrulha Maria da Penha. “Atendemos mulheres com ou sem medida protetiva e boletim de ocorrência. Realizamos atendimento a elas, mesmo que não tenham rompido vínculos com o parceiro. Sendo assim, atuamos em conjunto com a equipe do Serviço de Reeducação do Autor de Violência de Gênero (Seravig), para maior compreensão da dinâmica familiar e relação entre as partes, objetivando desenvolver relações mais saudáveis e não violentas”, destaca Laura Aguiar, coordenadora e Psicóloga do núcleo.

Mensalmente, cerca de 60 mulheres são atendidas. Porém, de acordo com a coordenadora, uma mesma mulher pode ser assistida no mês pelo núcleo — só no ano de 2018, foram realizadas 1.180 intervenções. Por meio de atendimentos, como visita domiciliar e psicossocial individual e familiar, são procuradas formas de trabalhar com as vítimas e captar recursos internos e externos para quebrar o ciclo de violência constante. “O Naem realiza um atendimento humanizado, por meio de um espaço de uso exclusivo da mulher em situação de violência, reservado, acolhedor. Durante o atendimento, a equipe suspende seus julgamentos e valores e realiza uma escuta empática”, diz a profissional.
Juíza há 20 anos, Carolina vê a medida protetiva como o instrumento mais eficiente dos últimos tempos
Humanização no judiciário

Juíza há cerca de 20 anos, Carolina Moreira Gama, auxiliar responsável pelo Anexo da Violência Doméstica do Fórum de Ribeirão Preto, percebeu que hoje as mulheres se apresentam ao judiciário de forma mais informada, cientes dos direitos, e já pedem por medidas protetivas. A ferramenta é prevista por lei e protege mulheres que sofreram agressão doméstica e familiar, com base na Lei Maria da Penha. A magistrada declara que, possivelmente, o aumento do número desse tipo de violência na cidade evidencie maior confiança nas autoridades. “Quando surgiu o anexo, tínhamos previsão de receber 2 mil processos de varas distintas. Recebemos essa demanda, mas, ao longo de três anos que o anexo existe, já são 6 mil. Nosso trabalho vem sendo bem feito. Claro que precisamos de mais projetos, de iniciativas particulares, é preciso lidar melhor com o tratamento do homem e da mulher, e isso é deficiente em Ribeirão Preto”, salienta.

Carolina vê a medida protetiva como o instrumento mais eficiente dos últimos tempos. Ela orienta que, para funcionar de forma mais efetiva, é necessário acionar uma rede particular de segurança, que incluem vizinhos e colegas de trabalho. As consequências do descumprimento geram prisão sem pagamento de fiança e a pena varia em cada caso. “Tendemos a lidar com violência como algo normal, mas é preciso capacitação e escuta diferenciada. Cerca de 80% dos homens são primários e vivem um problema específico, precisando de ajuda, assim como a mulher. Faltam varas na cidade. O que temos aqui é um anexo da violência doméstica. É importante expandir o trabalho para termos bons resultados”, analisa.
Parte da equipe da Delegacia de Defesa da Mulher junto com a delegada Patrícia
De acordo com Patrícia de Mariani Buldo, delegada da Delegacia de Defesa da Mulher, a existência do serviço especializado representa grande avanço dos últimos tempos. “Não acho que os casos venham aumentando, mas penso que aparecem denúncias que já existiam. Talvez por falta de informação, essas mulheres não procuravam a delegacia. Precisamos entender que a igualdade de gênero não é para prejudicar o outro. Se não buscarmos por isso, nem iremos evoluir enquanto sociedade. Vejo o problema como cultural, mas acredito que essa cultura esteja mudando aos poucos”, completa. 

*O nome da entrevistada é fictício e foi alterado para preservar a identidade da vítima.
Depois de ser agredida pelo ex-marido, e perder quatro dentes, Patrícia conseguiu resgatar o sorriso
Sorrindo de novo

Após um soco na boca, ela perdeu quatro dentes e deixou de sorrir para a vida como antes. Quando decidiu colocar o ponto final em um relacionamento, teve de conviver com a perseguição de um homem que não aceitava ficar longe. Em virtude disso, foi espancada algumas vezes em público e quase morta pelo ex-companheiro. A desempregada Patrícia Cristina Bergo, mãe de quatro filhos, não hesitou em registrar a queixa na delegacia. O agressor, que, segundo ela, possuía histórico de violência doméstica, já cumpria medida protetiva, por conta de uma agressão anterior contra Patrícia. “Quando ele me agrediu pela segunda vez, eu estava conversando com um rapaz em uma lanchonete. Ele me espancou. Onde me encontrava, batia. Seja com com chute, tapa na cara e socos. Quando quebrou meus dentes, eu desmaiei”, relata. A vítima, de 40 anos, teve a chance de sorrir novamente por meio de trabalhos que envolvem a ONG Turma do Bem e o Tribunal de Justiça de São Paulo, com o Projeto Fênix, que oferece reparação estética, ortopédica e odontológica para vítimas de violência doméstica e de gênero.
“Devolvemos a capacidade de sorrir e se relacionar com outras pessoas”, destaca o cirurgião-dentista
O cirurgião-dentista João Otávio Melo, que presta atendimento junto à ONG, teve a primeira paciente indicada pela juíza Carolina Gama. O desafio do profissional foi reconstruir os dentes de Patrícia. “Quando ela chegou, não estava feliz, sorriso tímido. Depois do tratamento, já esboçou alegria. Isso paga mais do que qualquer dinheiro. Trabalhamos na alma da pessoa e devolvemos a capacidade de sorrir e se relacionar com os outros”, observa. Para a vítima, que está desempregada e deseja voltar logo ao mercado de trabalho, ter os dentes de novo é sinônimo de resgate da autoestima perdida há três anos — além de dar adeus aos apelidos que recebia por conta de sua aparência. “Hoje estou muito feliz, tenho a chance de recomeçar e espero que ele fique bem longe de mim. Quero que meus filhos cresçam sabendo que não podem bater em uma mulher. É preciso denunciar, sem medo. A Justiça está por perto e, sem ela, os casos seriam bem piores”, conclui.
Para Márcia, é imprescindível criar uma rede de atendimento para ajudar no combate à violência
A união que faz a força

Depois de sofrer com a violência doméstica, a vítima pode pensar que está sozinha, que ninguém a ouve ou atende. Pode pensar, também, que relatar a agressão sofrida não seja a saída para resolver o problema. Mas há instituições sociais e serviços que se encarregam de prestar atendimento especializado para escutar a mulher, fazendo com que ela compartilhe a experiência com outras companheiras do mesmo grupo e crie mecanismos para lidar melhor com os problemas.

A Associação Programa Mãos Estendidas é uma instituição que oferece apoio gratuito às vítimas, informando, por exemplo, quais são os tipos de violência e os direitos que elas têm na sociedade. Márcia Pieri, presidente da ONG, explica que é preciso combater a naturalização dessa violência e desconstruir o falso conceito de que as mulheres são propriedade dos homens. “Já tivemos mulheres que chegavam a dizer que a violência é normal, porque era comum presenciar isso na família. Esses comportamentos são assim porque não conheceram uma relação saudável. Aqui, damos apoio psicoterápico por cerca de três meses e avaliamos se é necessário elas permanecerem em tratamento. Temos grupos de vivência, onde elas podem potencializar as habilidades e melhorar a autoestima”, acrescenta. A entidade também oferece oficina de corte e costura, pintura em tecido, artesanato livre, inclusão digital, aula de dança e até orientação jurídica para explicar questões como medida protetiva.

Márcia destaca que as atividades em grupo são essenciais. Aos poucos, a vítima começa a ver o problema dela em outras mulheres, o que permite uma troca de experiências e a estimula a ser mais empoderada. “As ações precisam ser integradas com o poder público. Se há assistência social, é preciso ter alguém que atenda na área da saúde, educação... É imprescindível criar uma rede de atendimento para trabalhar com a violência. Às vezes, dá impressão de que enxugamos gelo. É preciso entender que o ser humano demanda por todas essas necessidades”, enfatiza.
Segundo Denise, a sociedade deve participar para que seja resgatada a identidade humana de cada mulher
Atualmente, não há políticas públicas suficientes para oferecer esse suporte. Segundo a psicóloga Denise Ceron, que também trabalha com as vítimas na instituição, a psicologia está intimamente ligada a esses casos. Ela diz que quando a mulher pede socorro após sofrer alguma agressão, a ajuda é para o corpo, contudo o cuidado psicológico nem sempre é dado e há marcas que persistem por toda a vida dela. “É preciso trabalhar o resgate de identidade do ser humano, da mãe, da dona de casa. Que ela se coloque no relacionamento de outra maneira e modifique o ambiente em que vive”. Denise pontua que ter uma rede de apoio na sociedade para amparar as vítimas é primordial 
para o tratamento. 


Texto: Bruna Romão | Fotos: Júlio Sian e Luan Porto.

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