Por Trás do Veredito

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Júri popular pode determinar o futuro do réu nos tribunais; reportagem acompanhou julgamento de repercussão em Ribeirão Preto e detalha o papel dos jurados

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Texto: Bruna Romão | Fotos: Julio Sian e Luan Porto
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Na manhã de 27 de novembro de 2019, a rotina parecia comum. O sol despontava pouco a pouco, o proprietário de uma barraca de pastéis abria o estabelecimento, assim como o trabalhador de um estacionamento varria a calçada tranquilamente. Era impossível, no entanto, deixar de observar a movimentação de alguns pedestres e a pressa para se chegar ao destino. Uma típica quarta-feira de um júri popular no Fórum Estadual de Ribeirão Preto. Do lado de dentro, o julgamento de um dos processos mais emblemáticos da região: uma mãe acusada de matar o filho. 

O caso de Tatiana Ferreira Lozano Pereira reacendeu um velho debate sobre a forma como um júri popular é formado no Brasil e quais os critérios que são adotados para julgar. Enquanto do lado de fora as pessoas sequer sabiam sobre esse modelo de julgamento vigente, no tribunal, sete pessoas compunham o conselho de sentença, escolhidas para darem o veredito final, após ouvirem os réus, promotor e debates entre defesa e acusação. 

A palavra júri vem do latim jurare, que significa “fazer juramento”, em alusão ao compromisso prestado pelas pessoas que formarão o tribunal popular. Nesse caso, vigora o entendimento de que os jurados decidem sobre a condenação ou absolvição do réu. O juiz, na figura do presidente do júri, externa essa decisão, baseando-se no que foi definido pelos escolhidos.
O ambiente é de tensão, lentamente ocupado pela plateia. As horas passam e cada vez mais parece estar longe do início do segundo dia de julgamento de Tatiana, bem como dos dois jovens acusados de agredirem Itaberli Lozano Rosa antes de ser morto. A demora gera apreensão. Prevista para as 9h, a sessão foi iniciada às 10h10 — mas, para a família do jovem que aguardou por três anos o julgamento, era apenas um pífio tempo de espera. 

Por uma porta lateral, saíram os jurados enfileirados que comporiam o conselho de sentença. Quatro mulheres e três homens seriam responsáveis por condenar ou absolver os réus. Logo em seguida, os acusados saíram de uma das salas que dão acesso ao tribunal, também enfileirados, e se dirigiram aos assentos reservados, postos à frente da defesa. Com semblantes nervosos, escutavam atentos os cumprimentos iniciais direcionados aos profissionais envolvidos no caso, mas bastaram alguns segundos, após fala do promotor Eliseu Berardo Gonçalves, para que todos ficassem de cabeça baixa. 

Começava um júri popular, marcado por picos de citações persuasivas mescladas a discursos raivosos e em alto tom. O clímax do julgamento ficou por conta do debate entre a acusação e a defesa, feita pelo advogado do réu.

Quesitos
A lei estabelece que sejam fixadas perguntas aos jurados. Os quesitos, como são chamados, são lidos pelo juiz. Basicamente, o magistrado quer saber se houve crime, se o autor é réu, se possui agravantes ou atenuantes — ou seja, se o acusado pode ser absolvido por alguma razão. A leitura é feita ao conselho de sentença antes da votação, que pode vir acompanhada de breve explicação. Promotor e advogados, que também ficam na sala secreta, veem os quesitos para saber se estão de acordo. Na mesma sala, cada jurado recebe duas cédulas, uma com sim e outra não. No momento em que passa a primeira urna, eles depositam o voto e, na sequência, descartam o oposto, de forma que não é possível saber o voto individual. A votação é realizada por maioria simples. Com quatro votos pelo sim ou não à condenação, encerra-se a votação e não é possível saber se todos votaram de forma unânime. 
“Quando há um juiz togado, o julgamento tende a ser mais técnico e não presenciamos tanta emoção em um júri”, afirma Daniel Pontes
Às 16h15 daquele dia, os jurados se dirigiram à sala de votação e saíram às 18h25. De acordo com Daniel Pacheco Pontes, professor doutor em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), a votação é feita em cerca de 20 minutos e, depois, há a elaboração da sentença pelo juiz, e os jurados só podem sair do local quando a pena é fixada aos réus. O professor argumenta que nem sempre esse tipo de júri funciona bem: os jurados, por serem leigos e não compreenderem detalhadamente as leis, nem sempre optam pelas melhores decisões, pois há casos em que chegam com opinião formada. “A sociedade é vítima de violência todos os dias. Quando a pessoa é chamada para ser jurada, ela pensa que é a chance de fazer Justiça. Outra questão é o exercício de argumentação oral feito pelo promotor e pelos advogados. Nem todos são bons de aula, assim como temos maus e bons professores. Então, eventualmente, veremos um advogado muito bom e um promotor ruim, por exemplo, e assim, as chances de condenação ficam remotas, porque os jurados podem concordar com o que o advogado disse ou vice-versa. Quando há um juiz togado, o julgamento tende a ser mais técnico e não presenciamos tanta emoção em um júri”, ressalta o docente.

Segundo Hamilton, as redes sociais desempenham papel crucial nos julgamentos
Vontade de condenar

Com cerca de 20 anos na área, atuando, nesse tempo, em 190 júris, o advogado que defendeu Tatiana explica que cada júri popular é distinto do outro, porém, o estado emocional é o mesmo. “Nunca se entra em um júri tranquilo. Já houve os difíceis que ga nhei e os fáceis que perdi”, salienta Hamilton Paulino Pereira Júnior. Ele explica que, hoje, conquistar uma absolvição é tarefa mais complexa do que há 20 anos. “O conselho de sentença já vai ao tribunal com opinião formada de condenação, em virtude da violência que assola o país. As redes sociais influenciam muito nas decisões. Entramos no júri perdendo de sete a zero e temos de trabalhar para reverter esse cenário”, frisa o profissional. Hamilton lembra que, no caso da ré em questão, a internet teve grande influência. Para ele, tentou-se levar o caso no tribunal para o lado da homofobia, assunto que gera bastante repercussão nas redes sociais. Embora não justifique o ato da mãe, o advogado queria apenas demonstrar aos jurados que o assassinato ocorreu em virtude do estado emocional abalado de uma genitora.

O advogado de defesa da família de Itaberli Lozano Rosa reforça que é primordial, em casos como o mencionado, entender a motivação do crime, e isso não ocorreu no julgamento de Tatiana, o que tornou o caso mais complexo. Wagner Severino Simões afirma que houve quem quisesse colocar a culpa do crime na vítima, como se, de alguma forma, merecesse aquele resultado. “O que tentamos demonstrar é que a vítima pode ser a pior possível, que, ainda assim, não poderia ser morta da forma que foi. Quando se faz algo por emoção, não se premedita o crime. É necessário mostrar aos jurados o que a lei diz sobre esse aspecto. Por isso, achamos essencial mostrar ao conselho de sentença algumas fotos do jovem morto e mensagens postadas em rede social antes de morrer. Isso foi fundamental para condenação”, relembra. 
“A existência do juiz não serve, a meu ver, para efetivar o julgamento”, frisa Wagner
Segundo Wagner, a falha principal do sistema é que os jurados não têm acesso ao processo: julgam pelo que ouvem, pelo que é dito pelas testemunhas, mas desconhecem os passos da investigação. No modelo norte-americano, 12 jurados são responsáveis por julgar e, para ele, isso dificulta o processo, pois há julgamentos que não chegam a um consenso. O advogado defende que cinco são suficientes, pois, quando se tem um número maior, fica caro para o Estado manter os procedimentos. “Meu posicionamento é de que todos os crimes deveriam ser julgados por um corpo de jurados. A existência do juiz não serve, a meu ver, para efetivar o julgamento. Quem determina se uma pessoa é culpada ou não são os iguais a ela. O juiz não é semelhante ao réu. Ele tem um conhecimento técnico que, com o passar do tempo, engessa”, conclui o advogado.


Detalhes de um Júri
No Brasil, além de ter juízes julgando casos, há também situações em que o julgamento se dá pelos iguais — em outras palavras, o réu é condenado, ou não, por pessoas comuns da sociedade, que não necessariamente precisam ter curso superior. A lei diz que um júri popular irá julgar apenas casos de crimes dolosos, homicídio, infanticídio, auxílio suicídio e aborto. 

Daniel Pacheco Pontes explica que o conselho de sentença pode ser formado por pessoas que se inscrevem voluntária ou involuntariamente, ou o Tribunal de Justiça também pode recorrer a cadastros dos cidadãos — e há casos em que o próprio RH de uma empresa passa um registro de funcionários. A escolha, segundo o especialista, é anual e, a cada mês, são selecionadas em torno de 25 pessoas. No dia do julgamento, desse total, apenas sete irão compor o conselho. Todos os 25 nomes são jogados em uma urna. Advogados, assim como promotor, podem recusar até três nomes. 

Para participar do conselho de julgadores, é preciso ter idade mínima de 18 anos, não possuir antecedentes criminais, ter idoneidade moral (não ter nenhum processo contra si), ser eleitor e residir na comarca onde pretende atuar como jurado. Os impedimentos para este trabalho são: ser surdo e mudo, cego ou ser pessoa com deficiência mental.

A Origem
Estudos mostram que o Tribunal do Júri nasceu na Inglaterra, quando o Concílio de Latrão, 1215, aboliu as ordálias ou Juízos de Deus, com julgamento nitidamente teocrático, estabelecendo um conselho de jurados. Mas é ao modelo de júri americano que muitos especialistas recorrem para comparar com o brasileiro. 

Os modelos se distanciam no que diz respeito à renúncia. Enquanto nos EUA a pessoa tem a prerrogativa de renunciar ao julgamento aos pares, em contrapartida, no Brasil, essa opção é inexistente, já que se trará de uma ação indelegável e irrenunciável. Nos Estados Unidos, a votação deve ser unânime e o julgamento pelo júri popular vale para todos os crimes e não apenas os dolosos contra a vida, como no Brasil. No modelo americano, os jurados podem se comunicar a fim de chegar a um consenso. “Não saberia dizer até que ponto essa comunicação pode ser favorável. É uma oportunidade para que eles troquem ideias e tirem dúvidas. Isso é válido, mas dentro da lógica norte-americana. Não sei se aqui, por termos tantas leis, isso faria sentido. Até porque, se você deixa as pessoas à vontade, sempre tem um mais falante e persuasivo”, destaca o professor Daniel Pacheco Pontes, que faz questão de observar dois problemas graves de um júri popular: decisões injustas, com penas excessivamente altas ou baixas, bem como erro na classificação do crime, e a demora de julgar casos quando vão a júri popular, que podem levar longos anos para serem sentenciados.


A Hora da Sentença
Durante todos os discursos proferidos no tribunal, jurados ouvem atentamente cada detalhe. Tatiana, segundo consta nos autos do processo, teria atraído o filho para uma emboscada e o matado dentro de casa com três golpes de faca. Os comparsas Victor e Miller teriam o espancado antes da morte. O jovem era homossexual, e essa pode ter sido a motivação do crime. A acusada apenas levantou a cabeça após encerrado o discurso do promotor. Minutos antes de a sentença ser lida, o nervosismo tomava conta da plateia e era possível perceber alguns rumores. Ainda deu tempo de um advogado que compunha a equipe de defesa de Tatiana aumentar ainda mais o clima de tensão final. Ele esbravejava, indignado, que a juíza havia mudado um quesito de última hora sem que pudessem ler. Debates calorosos à parte, todos estavam de pé para ouvir, após três anos de espera, a sentença pronunciada pela juíza Marta Rodrigues Maffeis Moreira, da 1ª Vara do Júri e das Execuções Criminais da Comarca de Ribeirão Preto. A ré foi condenada a 25 anos e oito meses de reclusão por homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver. Victor Roberto da Silva e Miller da Silva Barissa também foram condenados, ambos a 21 anos e oito meses de detenção por participação no crime de Itaberli Lozano Rosa, de 17 anos. Após mais de sete horas de debate, estava encerrado o julgamento sob forte comoção dos familiares dos condenados e da família do jovem que esperava por Justiça. 
Para quem estava do lado de fora do tribunal, entender o funcionamento de um júri se torna uma tarefa complexa. Comum era se deparar com pessoas que sequer sabiam o significado do termo. Queriam condenar os acusados antes mesmo do início do julgamento. Quem ousou responder, disse não concordar com leigos desempenhando a referida função. “É um caso grave. Deveria julgar quem entende mais sobre o assunto, que está acompanhando de perto. Dependendo das provas que são apresentadas, do que vão falar, os jurados podem tender para o lado da religião, julgar de acordo com o que acreditam e não fazer Justiça. Isso me assusta muito”, observa Thais Rezende, 20 anos, recepcionista de um estacionamento próximo ao Fórum Estadual de Ribeirão Preto. 
Para Thais, em casos de crimes graves, não deveria haver júri
Márcia Pieri é uma das que, assim como Thais, não concorda com o júri popular. A presidente do Programa Mãos Estendidas (PME), ONG que também acolhe indivíduos que passaram pelo sistema carcerário, formada em Direito, com experiência de ter participado de julgamentos, acrescenta que é preciso mais conscientização do papel que cada indivíduo vai exercer. “Penso que a população, por falta de educação, não está preparada para desempenhar atividade tão importante. Talvez fosse necessário que elas fizessem cursos ou que se preparassem antes para adquirir, também, uma parte mais técnica. Sem experiência, ela irá julgar apenas por emoção”, frisa Márcia. 
Márcia ressalta de que é preciso ter conscientização do papel que cada agente julgador vai exercer

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