Segurança reprovada

Segurança reprovada

Cerca de 90% das escolas municipais de Ribeirão Preto não possui alvará do Corpo de Bombeiros. Problemas de segurança nas unidades causaram a morte de um aluno em 2018

É muito difícil alguém se sentir confortável em um prédio sem o alvará do Corpo de Bombeiros. Não é raro eventos serem cancelados e imóveis particulares serem fechados porque a documentação não está em dia. Contudo, em Ribeirão Preto, a história é diferente. Atualmente, somente 11 das 109 escolas municipais possuem o Certificado de Licença do Corpo de Bombeiros (CLCB) ou o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). Ou seja, 90% das escolas municipais, potencialmente, podem oferecer riscos aos alunos. Vale lembrar que a educação municipal é a responsável pelos alunos mais jovens. A faixa atendida pela Prefeitura é de crianças da pré-escola até alunos dos últimos anos do Ensino Fundamental: desde bebês até adolescentes de 14 anos. Segundo dados do Censo Escolar de 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), são cerca de 44 mil alunos na rede municipal de ensino em Ribeirão Preto.

A falta de segurança nas escolas de Ribeirão Preto já foi alvo de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) na Câmara dos Vereadores, discussões acaloradas entre professores e Prefeitura, e, infelizmente, causou a morte do estudante Lucas da Costa Souza, em novembro de 2018. O problema, segundo o depoimento da secretária da Educação, Luciana Andrade Rodrigues, durante a CPI da Educação, é uma “herança” indesejada das últimas administrações municipais. Em junho de 2018, a Revide publicou uma matéria alertando que, na ocasião, apenas sete escolas do município possuíam os laudos em dia. Em aproximadamente sete meses, a Secretaria da Educação conseguiu providenciar outros quatro laudos.
Lucas pode ter morrido em decorrência de um choque elétrico na CEMEI Professor Eduardo Romualdo de Souza
Atualmente, seis unidades escolares estão em processo final de obtenção do AVCB. Outras 26 possuem estudo de adequação e estão em fase de projeto preliminar para regularização do laudo. A Secretaria da Educação responsabilizou a insuficiência de investimentos nas escolas como um dos principais motivos para a falta dos laudos. “Embora tenhamos realizado um grande esforço para a regularização das escolas e tenhamos obtido avanços significativos, o fato de não ter investimentos nesse sentido, nos últimos anos, acaba por prejudicar resultados mais rápidos”, reforça Luciana. Com a aprovação do orçamento para a pasta da Educação em 2019, serão investidos R$ 3, 7 milhões em manutenção hidráulica e elétrica nas escolas, além de R$ 9 milhões para manutenção geral.

Por meio de nota, o Executivo alegou que o problema não deriva apenas da falta de investimentos desde a última gestão, mas de problemas mais antigos. Escolas como a Dr. Jaime Monteiro de Barros e a Dr. Domingos Angerami, que passaram a ser geridas pelo município a partir dos anos 2000, por exemplo, não receberam investimentos para adequação e o AVCB. “Ainda que haja aumento de orçamento a partir de 2016, o fato é que nos anos anteriores esse tipo de investimento não foi considerado para a maioria das escolas, seja na obtenção ou na renovação do documento”, respondeu a pasta. Ainda de acordo com a Secretaria da Educação, para 2019, foram incluídos, na Lei Orçamentária Anual, investimentos que superam em quase três vezes o orçamento do ano anterior para que se possa realizar as manutenções para a obtenção do AVCB.
As gravações da câmera de segurança mostram que o estudante tentou escalar a grade e caiu na grama em seguida
Em conversa anterior com a reportagem, o promotor Naul Luiz Felca, do Grupo de Atuação Especial em Educação (Geduc), do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), informou que a Justiça já tem em mãos o levantamento feito pela Prefeitura a respeito das escolas com e sem o alvará do Corpo de Bombeiro. “Nós (MPSP) temos um inquérito instaurado que está acompanhando esta situação. Aguardamos os desdobramentos de uma reunião que tivemos com a Administração Pública, na qual o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) realizou um levantamento dessas unidades escolares e nós estamos, agora, esperando por uma nova reunião”, afirmou o promotor. Segundo Felca, serão realizados novos encontros com membros do Ministério Público, da administração pública e do Corpo de Bombeiros e para ouvir as versões de todas as partes.

Caso Lucas

No dia 30 de novembro de 2018, último dia de aula, Lucas da Costa Souza foi visto pelas câmeras de segurança da Escola Municipal Eduardo Romualdo de Souza, na Vila Virgínia, brincando com amigos no pátio. Lucas então corre para outra área da escola, tenta escalar uma grade e cai na grama em seguida. É possível ver, logo depois, a pressa dos professores pedindo por ajuda e a chegada dos socorristas.  Segundo peritos, Lucas pode ter morrido em decorrência de um choque elétrico.

Os primeiros a investigarem o local, no dia da tragédia, foram os polícias militares, que constataram, por meio de perícia, a presença de fios desencapados próximos da grade que o garoto escalou. A informação consta no boletim de ocorrência registrado no dia. Com o andamento do caso, uma série de depoimentos e documentos deu mais embasamento para a teoria de que ele tenha sofrido um choque. Em janeiro de 2019, um professor da mesma escola acusou a direção de ter alterado o local um dia após o incidente. Ao Ministério Público, o professor relatou que eletricistas foram chamados pela escola para arrumar fios que estavam desencapados e expostos.

Também em janeiro, um laudo do Instituto Médico Legal (IML) ficou pronto. “Com base na presença dos fios energizados na laje superior do corredor, nos resultados positivos para a condução de corrente elétrica no rufo metálico e no piso molhado, é possível inferir que havia risco de choque elétrico na laje superior do corredor localizado na porção direita do CEMEI Professor Eduardo Romualdo de Souza”, consta no laudo. O documento também atesta que os fios próximos à calha da escola estavam em curto-circuito. Além disso, os legistas informaram que não havia sinais de pancada no corpo do garoto. Ou seja, é possível afirmar que a causa da morte não foi a queda da grade.

O advogado Leonardo Afonso Pontes, que defende a família do garoto, explica que apesar de seguir também a tese de que Lucas possa ter morrido por conta de uma descarga elétrica, esta não é a principal linha de argumentação. O advogado enumera uma série de erros cometidos pela escola e, por conseguinte, a Prefeitura, como uma “soma de falhas” que podem ter levado à morte do estudante. “Quando você confia um filho seu a uma instituição de ensino, espera pelo cuidado com a integridade dele”, comenta o advogado. A defesa leva em consideração uma prerrogativa da constituição que trata da responsabilidade objetiva. Isso significa que o município não precisa agir com culpa para ser civilmente responsabilizado. “Decorre do ato da administração pública por si só as consequências negativas da má gestão”, explica o advogado.

Pontes cita, também, que o AVCB da escola estava vencido e que a fiação elétrica já havia sido alvo de reclamações por parte da diretora. A versão do advogado foi confirmada durante uma das audiências da CPI da Educação, na qual a diretora da escola Romualdo de Souza depôs. Segundo documentos entregues aos vereadores, existem reclamações da responsável pela unidade de ensino, que datam de 2017, a respeito da fiação do local. Com isso, o processo, segundo a defesa, contém “provas robustas” de que a escola estava em condições precárias de segurança.

Além de toda a questão estrutural, o advogado aponta para a falta de funcionários no momento do acidente. “A quantidade de alunos exigia ao menos quatro inspetores, mas só havia um no momento do incidente”, indica. A colocação de Pontes também tem respaldo em depoimentos da CPI da Educação.  Segundo Luciana Andrade, as escolas do município trabalham prevendo uma quantidade de cerca de 30% de faltas no quadro de funcionários. Em um mês, são cerca de oito mil horas não trabalhadas. A declaração da responsável pela Educação enfureceu o Sindicato dos Servidores e professores que alegaram que a Prefeitura está “jogando a culpa” pela morte do ano aluno nos servidores.
Para a secretária da educação, Luciana Andrade Rodrigues, a insuficiência de investimentos nas escolas é um dos principais motivos para a falta dos laudos
CPI da Educação 

Tendo como ponto de partida a morte do estudante, a Câmara dos Vereadores de Ribeirão Preto criou uma CPI para avaliar a segurança de todas as escolas municipais da cidade. Durante uma das audiências, a secretária Luciana Andrade Rodrigues declarou que a escola Eduardo Romualdo recebeu uma nota satisfatória nos testes de segurança propostos pela Prefeitura. Luciana explicou que foi realizado, com base em um controle encaminhado pelas escolas, um relatório com as unidades com maior risco na cidade. As escolas recebiam uma nota de 0 a 25, sendo 0 muito segura e 25 como perigosa. Neste ranking, a Eduardo Romualdo aparece com a nota 6, ou seja, considerada uma escola “segura”. As duas piores seriam a EMEF Nelson Machado, que já foi reformada, e a EMEF Jaime Monteiro de Barros, que está em obras. 

Como justificativa, a secretária explicou que o controle é de responsabilidade dos diretores. “Um dos desafios, quando assumimos a Secretaria da Educação, é sermos responsáveis pelo que o outro fala. Essa foi a informação respondida pela escola. É desse checklist inicial que damos a ordem para uma equipe ir a campo vistoriar. É como uma casa: se você vê um fio desencapado, vai lá e resolve”, declara a secretária. 
O vereador Isaac Antunes (PR), presidente da CPI da Educação, diz que cabe à Secretaria promover uma real apuração da situação
Segundo a pasta, o controle realizado pelos diretores serviu de embasamento para que os técnicos da Divisão de Medicina do Trabalho classificassem quais escolas seriam vistoriados primeiro. Esse documento levava em consideração várias questões relacionadas à segurança, não apenas estrutura física das escolas. A reportagem da Revide solicitou o documento com a lista de todas as escolas que oferecem riscos e também questionou se existe algum tipo de auditoria dos dados apresentados pelos diretores, mas não obteve resposta. Para o vereador Isaac Antunes (PR), presidente da CPI da Educação, a Prefeitura está transferindo a responsabilidade aos diretores. “É importante frisar que os diretores não possuem conhecimento técnico necessário para analisar as condições de infraestrutura das escolas, cabendo à Secretaria da Educação promover uma real apuração da situação”, finaliza o vereador. 

Texto: Paulo Apolinário.

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