A administração pública sob vigia

A administração pública sob vigia

O promotor do Gaeco, Leonardo Romanelli, avalia o andamento da Sevandija e dos processos que surgiram a partir das investigações da operação que envolve a administração pública de Ribeirão Preto

A Sevandija chega ao 14º mês desde que foi deflagrada, em 1º de setembro de 2016. Muitas situações já foram esclarecidas durante esse processo, mas outras tantas interrogações ainda estão no horizonte da apuração dos crimes que teriam sido cometidos na administração municipal de Ribeirão Preto. As audiências de testemunhas e os depoimentos dos réus têm transcorrido a pleno vapor e, de certa maneira, bastante tensos e turbulentos. Junto com a Polícia Federal, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo atuou nas investigações e fez a denúncia sobre os crimes apurados. O promotor do Gaeco, Leonardo Romanelli, foi ouvido pela Revide, acompanhado pelos também promotores do órgão Frederico Mellone de Camargo e Walter Alcausa Lopes, que não escondem o esforço dispendido na coleta de informações reunidas nos três processos surgidos a partir das investigações:  os casos envolvendo os honorários advocatícios, o apadrinhamento na Atmosphera Empreendimentos e Construções e o contrato fraudulento no Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto (Daerp). A soma de páginas de dados colhidos passa de dezenas de milhares. 

Revide: O depoimento de Dárcy Vera está marcado para o próximo dia 5 de dezembro. O que a promotoria quer que a ex-prefeita explique?
Leonardo:
Não cabe e nem é possível adiantar atos e debate de provas que têm lugar no processo. De qualquer forma, deve ser de interesse da própria defesa da ex-prefeita explicar seu envolvimento com os fatos e com os demais acusados, como seria natural em qualquer processo criminal.

Há, ainda, o caso das fraudes na aquisição e na manutenção de catracas nas escolas. O que falta para que seja aberta esta denúncia?
Hoje, o Gaeco centra seus esforços no desfecho dos três processos abertos: Coderp-Atmosphera, Daerp-Aegea e honorários advocatícios. Cada um tem mais de 10 mil páginas e vários réus presos. Não apenas o caso das catracas, mas vários outros decorrentes apenas desta operação, merecem atenção especial e individualizada. Esperamos responder à sociedade de Ribeirão Preto, de maneira satisfatória, nos próximos meses. Tudo sem prejudicar outras apurações com réus presos, como a Antígona, a Ventríloquo e a Coiotes, deflagradas este ano. Temos muito trabalho a fazer e, para isso, contamos com os ribeirãopretanos para trazer informações sobre crimes, esquemas fraudulentos e o destino de dinheiro público criminosamente desviado.

Romanelli: “esse contexto é assombroso, um verdadeiro acinte, considerada a ruína econômica pela qual o país e a cidade passavam”As defesas chegaram a pedir uma perícia judicial para apontar o valor que, de fato, teria sido desviado, já que o levantamento realizado pelo Gaeco, segundo advogados, é parcial. Qual é o valor real?
Nós estimamos os valores para baixo, mas acreditamos que sejam superiores, sobretudo no caso Coderp. Quando Marcel Zanin Bombardi elaborou essa denúncia, baseou-se nos contratos que pegou. Nós já tínhamos acesso de outra forma, avaliando parte dos contratos entre a Coderp e a Atmosphera, mas não todos. O próprio Marcelo Plastino, enquanto estava fazendo a delação premiada, nos avisou que o valor estimado pelo Gaeco —aproximadamente R$ 203 milhões —, devia ser acrescido de, pelo menos, R$ 100 milhões. Só que não vamos parar o nosso trabalho, hoje, para encontrar mais R$ 100 milhões. Independente se for R$ 200 ou R$ 300 milhões, não vai mudar.

Nas últimas audiências, os advogados de defesa dos réus da Sevandija questionaram o acordo de delação realizado com Paulo Roberto Abreu Júnior, ex-sócio de Plastino na Atmosphera, e Alexandra Ferreira Martins, ex-namorada de Plastino. Quais novidades essas colaborações trouxeram para a investigação?
As defesas dos réus, todos muito bem representados por algumas das melhores bancas de advocacia do país, inclusive que atuam na Lava Jato, estão dentro de seu papel: tentam confrontar cada documento, laudo, depoimento e informação produzidos pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. É parte natural do embate processual, ainda mais quando se deparam com depoimentos robustos e sólidos, os quais não apenas confirmam as práticas ilícitas, como atiram luzes sobre outros fatos relevantes.  Entre tantas informações essenciais que apenas eles poderiam apresentar, salientamos, por exemplo, que a Atmosphera recebeu, durante anos, lucro líquido, descontados custos, impostos e gastos pessoais, de R$ 700 mil a R$ 900 mil, por mês, independentemente do número de terceirizados contratados. Esse contexto é assombroso, um verdadeiro acinte, considerada a ruína econômica pela qual o país e a cidade passavam, ainda mais em face dos serviços prestados: simples contratação de pessoas, previamente indicadas por políticos, sem a necessidade de processo seletivo ou exame de currículo.

O ex-presidente da Câmara dos Vereadores, Walter Gomes, e o ex-vereador Saulo Rodrigues admitiram que faziam indicações.
As indicações todo mundo faz, mas, em relação às informações colhidas nas delações, eu dei destaque em apenas uma delas, apresentando dados que só eles poderiam trazer. Na falta do Marcelo Plastino, apenas a Alexandra e o Paulo poderiam dar essas informações. Eles tinham o domínio completo desses fatos, total conhecimento a respeito da Atmosphera internamente. Além disso, eles trouxeram mais um fato: esses contratos eram pagos mensalmente, independentemente, do número de terceirizados efetivamente contratados. A Atmosphera tinha um acordo com a Coderp de contratar um número “x” de postos. Todavia, não era todo mês que aquele número estava preenchido. Alguns meses, tinham 400 ou 500 contratados; outros meses, 600 funcionários. O fato é que a Coderp, independentemente do serviço prestado, pagava para a Atmosphera o valor cheio no contrato. Isso é um acinte contratual, contra a democracia e contra os nossos tributos. É uma suspeita muito concretizada de que uma parte importante daquilo era pago em propina. A Alexandra pagava todas as contas da empresa e da família Plastino, inclusive o dinheiro que o empresário dava para o filho. Descontado tudo isso, ainda sobrava esse valor absurdo e, a partir desse valor, ela fazia os saques em dinheiro. Aí vem a pergunta: por que ela fazia esses saques em dinheiro? As despesas deles já estavam cobertas. O Marcelo Plastino fazia tudo no cartão, como revelam os extratos. Para onde iam esses R$ 100 mil por mês? Isso está respondido, inicialmente, nas notas de R$ 2 e, depois, nas planilhas que ele deixou.

Existe a possibilidade da planilha da propina paga por Maria Zuely Librandi ter sido plantada no escritório de Sandro Rovani, como ele mencionou em depoimento?
É uma versão fantasiosa, até porque uma parte está em caligrafia. Esse documento foi encontrado dentro do escritório dele, e outra parte, quase que idêntica, foi localizada dentro da casa de Maria Zuely, quando nós estouramos a Operação Mamãe Noel. Então, ele vai ter que explicar porque estava plantado em dois locais.

Qual a sua avaliação sobre os habeas corpus concedidos pela Justiça a alguns investigados na Sevandija?
Obviamente, vai contra o nosso intuito. Defendemos isso publicamente e no processo. Nós recorremos das solturas iniciais, pedimos a prisão inicial de vereadores que não foram presos e invocamos para que esses vereadores fossem presos. Consideramos que a prisão preventiva é necessária em razão da gravidade dos crimes e pelo fato de não ter sido encontrado e bloqueado patrimônio suficiente pelo que foi desviado. Tudo isso aponta que são necessárias as medidas cautelares de prisões, sob pena de nós, moradores de Ribeirão Preto, não vermos mais a cor desse dinheiro. Uma das formas, senão a principal, é mantendo essas prisões. Por outro lado, é um direito das defesas. Temos que respeitar as decisões e buscar elementos e provas para justificar a maneira mais adequada por esse caminho.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, escreveu em seu despacho para soltura de Maria Lúcia Pandolfo que ela integrava um “núcleo operacional” no esquema Coderp-Atmosphera. O Gaeco, durante as investigações, fez esse tipo de separação?
Não, nós trabalhávamos com núcleo empresarial e político. Não dessa forma secundária, como o ministro colocou. Nós procuramos sempre centrar nossos esforços contra pessoas que têm participação muito direta nos fatos e não sobre personagens secundários. Eles existem e poderiam ser processados, mas entendemos que não figuram na ação penal.

Qual o papel da ex-prefeita Dárcy Vera nos crimes investigados pela Sevandija? A população anseia em saber o que pode acontecer com ela no fim das investigações.
A nossa imputação é muito séria e concreta: Dárcy Vera é um dos pilares do núcleo dos honorários, por razões óbvias. Ela era destinatária de grande parte dos quase R$ 70 milhões que se combinou de desviar. Foram efetivamente empalmados R$ 45 milhões, dos quais ela teria ficado com uma parcela expressiva. Essa é a imputação, até aqui, contra a ex-prefeita, não havendo impedimento para que possam existir outras acusações contra ela. O que nós não encontramos é a participação dela no caso do Daerp. Aprofundamos as provas e chegamos ao nível máximo, que seriam os donos da empresa e o superintendente do Daerp. Nada indicou que ela tivesse participação direta. Em nenhum momento, fomos irresponsáveis de dizer isso. Está nos autos. Na dúvida, ela é inocente. Em relação ao anseio popular da condenação dela, é natural, talvez, pelo grande período de tempo que ela administrou a cidade. O resultado dessas duas administrações é visível a olho nu: enquanto pouco era feito pela cidade, muito era feito em seu próprio benefício. Existe, sim, uma desproporção, entre o que ela deixou de fazer enquanto administradora e o que ela fez como integrante de uma associação criminosa.

O único que responde pelos três processos da Sevandija é o ex-superintendente do Daerp, Marco Antonio dos Santos. Ele era a peça central do esquema?
A Alexandra disse, em seu depoimento, que o Marcelo Plastino chamava o Marco Antonio de “dono da Prefeitura”. Isso acaba sendo natural, já que ele tinha pé em quase todas as áreas: era secretário de Administração, superintendente da Coderp e do Daerp, órgãos em que passavam alguns dos principais contratos da Prefeitura, então, acaba sendo natural que ele figure nos três pontos passivos. O Marco Antonio tinha, de fato, muito poder, como foi mostrado, inclusive na Secretaria da Fazenda.

As denúncias feitas pelo Gaeco envolvem políticos, pessoas poderosas, e aconteceram próximas das eleições. Vocês, promotores, chegaram a sofrer algum tipo de ameaça? Houve alguma tentativa de entrave durante a operação?
Não, nunca sofremos ameaças nem percebemos obstáculos, sejam eles vindos de fora ou de dentro da nossa instituição. Muito pelo contrário, sempre atuamos de maneira livre e com absoluto apoio e estímulo da Procuradoria-Geral de Justiça, certificada de todo andamento da operação. Sempre atuamos em Ribeirão Preto sem sofrer absolutamente nada.

Seu nome ficou bastante conhecido na Operação Alba Branca, realizada no mesmo ano da Sevandija, duas ações muito importantes, sendo que a segunda se tornou um marco na história do município. A sua vida mudou depois disso?
Espero que Ribeirão Preto melhore, mas, na minha vida, o único aspecto que mudou foi o volume de trabalho. Com ele, vem a cobrança, a exigência, a necessidade de autopreservação, de autovigilância, e o policiamento para me resguardar de qualquer incidente. Mesmo neste ponto, a participação do doutor Édson Souza, delegado da Polícia Federal, que tem uma formação em comunicação social, ajudou muito. Conseguimos mostrar que esse não é o trabalho de um promotor de justiça, seja o Leonardo, o Marcel, o Walter ou o Frederico, mas do Ministério Público, do Gaeco. Marcel estava no começo, não está hoje, mas o trabalho continua absolutamente da mesma maneira, com o mesmo rigor e os mesmos acertos.

Qual a sua opinião sobre o trabalho da imprensa? 
A atenção da imprensa é essencial em processos que envolvem desvios e crimes cometidos por pessoas eleitas pela população. É a forma mais livre e democrática que o destinatário final do trabalho, o eleitor, tem de saber o que aconteceu com seu voto. A imprensa local tem sido capaz em representar muito bem esses anseios e princípios, refletindo a esperança geral por uma sociedade mais justa e cujos administradores se pautem, realmente, pelo interesse público.

Walter Alcausa Lopes, Leonardo Romanelli e Frederico Mellone de Camargo fizeram a denúncia da Sevandija e atuam nas investigações

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, questionou o vazamento de informações para os jornalistas, assim como o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que defendeu o sigilo das informações. Como vocês lidam com isso? É necessário ter esse resguardo das informações?

Em algumas operações, o sigilo é necessário até certo momento, senão, pode ser que nem haja operação. Na Sevandija, diante do absoluto interesse público, quando nós fizemos o pedido da operação, para que houvesse os mandados de busca, pedimos o sigilo da prova, resguardada dos dados particulares dos acusados, mas para que tudo fosse exibido através da imprensa, para que a população saiba o que os nossos eleitos vêm fazendo em nosso nome. Isso foi pedido e acolhido pela Justiça, desde o primeiro momento. A imprensa tem tido livre acesso à Sevandija, desde então. O mesmo foi feito em parte da prova da operação Coiote, por exemplo. Os envolvidos vinham realizando um golpe que arranhava a imagem da Justiça, utilizando o nome do Gaeco. Pedimos para que fossem conhecidas aquelas informações e, assim, chegassem novos dados. Eles vieram, inclusive, de parte de familiares de investigados na Sevandija, que foram procurados pelos investigados na Coiote. Só foi possível saber que eles eram achacados por essas pessoas porque a imprensa pode publicar e divulgar. 

A Sevandija tem evoluído de maneira satisfatória?
A Sevandija teve muitos reflexos. Na Câmara, foram tomadas várias iniciativas e aconteceram mudanças importantes. No Daerp, foram realizadas apurações que confirmaram as suspeitas da Sevandija. Na própria Prefeitura, foram implantados projetos de controle da administração e fiscalização interna. Essas atitudes, de alguma forma, refletem ao menos o espírito que nós manifestamos através da Sevandija: um maior controle, sobretudo da população. 




Texto: Leonardo Santos
Fotos: Amanda Bueno

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