Além da Medicina
Paulo lembra que, diante de seu jaleco temático, por exemplo, as crianças se encantam e as consultas terminam com grande alegria

Além da Medicina

O pediatra Paulo Martins acredita que uma relação de afeto entre médico e paciente gera confiança, credibilidade e esperança, elementos essenciais para um atendimento médico satisfatório

Há quem acredite que o avanço tecnológico vem criando um distanciamento entre as pessoas em todos os campos, do particular ao profissional — inclusive, dentro de clínicas e de hospitais. No entanto, apesar de equipamentos diagnósticos cada vez mais detalhistas e precisos, um bom acompanhamento na área da saúde depende do estabelecimento de uma relação de confiança entre médico e paciente. O pediatra Paulo Fernando Martins Filho (CRM: 179.173) sabe disso e acredita que um tratamento humanizado dentro dos hospitais pode garantir maior eficácia nos tratamentos.

Natural de Campina Grande, na Paraíba, o médico veio para o interior de São Paulo para compor o corpo clínico do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HC). Foi nas dependências da instituição de saúde que o pediatra protagonizou um vídeo que “viralizou” na internet. Nas imagens, aparece tocando e cantando nos corredores do HC, tornando o dia a dia dos pacientes e dos profissionais da saúde um pouco mais leve. 

Desde o início da carreira, o jovem médico utilizava não apenas o jaleco para seguir para o trabalho, mas também desenhos infantis, teatros, músicas e brincadeiras lúdicas. Para Paulo, a Medicina não se restringe aos cuidados com o corpo e suas estruturas. A profissão dá boas oportunidades para quem deseja dar bons exemplos e influenciar pessoas de maneira especial. 

Na entrevista a seguir, o pediatra relata alguns atendimentos e ressalta que a empatia e a confiança são chaves para uma consulta bem-sucedida — o que não depende apenas da competência do profissional, mas, sim, da disposição para ouvir a histórias e apostar em tratamentos que implicam na mudança de hábitos.

A humanização do atendimento médico, seja em consultas rotineiras ou diante de situações graves — resulta na melhora do paciente?

Paulo: Os benefícios de um atendimento humanizado podem, sim, refletir positivamente sobre o paciente. A busca por auxílio médico, muitas vezes, está relacionada a razões que excedem a patologia física, evidenciando uma fragilidade em outra esfera revelada por uma enfermidade. Saber acolher, escutar e orientar de maneira digna e humana — leia-se com respeito e amor — é imperioso para que o acompanhamento daquele paciente seja satisfatório. Uma mente sã, bem recepcionada e abraçada, contribui sobremaneira para a recuperação do corpo. Uma relação interpessoal de afeto gera confiança, credibilidade e esperança, essenciais para o restabelecimento da saúde. Atender com amor é mais do que examinar e identificar uma doença — é preciso ter um olhar holístico, completo sobre o paciente. 

Acredita que os hospitais podem ser locais mais agradáveis? 

O ambiente hospitalar é sempre associado a desfechos negativos. Isso porque, de fato, muitas pessoas vivem experiências tristes dentro dele, seja enfrentando um grave problema ou acompanhando pessoas que ama. Por causa disso, os hospitais são facilmente associados a uma sensação de angústia e de desespero. Nós, profissionais da saúde, temos o dever de transformar e remodelar esse pensamento, fazendo um esforço para tornar a internação dos pacientes mais agradável, marcada pela esperança e pela superação. A mudança desse paradigma começa no acolhimento do indivíduo dentro da instituição de saúde e segue até o momento de ir para casa. Acredito que, com pequenas medidas, essa memória relacionada aos hospitais pode ser transformada. Dizer bom dia pela manhã, oferecer um aperto de mão caloroso ou um abraço nos momentos de desânimo, assim como informações claras e precisas de tudo que está acontecendo, são atitudes poderosas nesse sentido. Desviar um pouco o foco da doença propriamente dita, fornecendo um pouco de entretenimento e de relaxamento aos pacientes, seja por meio de atividades lúdicas, música, poesia, entre outras atividades, também pode ser muito útil nesse processo. Quando deixamos um pouco de lado a doença para dar ênfase na recuperação, tudo fica mais agradável.

Um vídeo que mostra você cantando para crianças “viralizou” na internet e emocionou muitas pessoas. De que forma, na prática, atitudes assim podem contribuir?

A música entra em contato direto com nosso sistema límbico cerebral, mesma região das emoções e da afetividade, contribuindo para a produção da endorfina, hormônio do prazer, e serotonina, que possui funções diversas, entre elas, a regulação do sono e do apetite. Com a vivência de situações prazerosas, estimula-se, ainda,  a produção e a liberação de dopamina — que está envolvida no controle dos movimentos, do aprendizado, do humor, das emoções, da cognição e da memória — e da noradrenalina — que influencia o humor, a ansiedade, o sono e o apetite. Essas associações hormonais auxiliam a homeostase, ou o equilíbrio, corporal, contribuindo positivamente para a recuperação do paciente. Por tais razões, atividades musicais, entre outras, podem ser usadas no combate à depressão, ao estresse e à ansiedade, assim como podem ser poderosas aliadas no alívio dos sintomas de doenças como hipertensão, câncer e dores crônicas.

A ciência comprova que existe melhora no estado do paciente?

Um estudo feito na Glasgow Caledonian University, no Reino Unido, sobre o impacto da musicoterapia em pacientes hospitalizados mostrou que o tom, a estrutura e a letra produzem impactos significativos na emoção. Além disso, evidenciou que fatores externos — como onde e quando você ouve o som e quais as associações realizadas — também influenciam positivamente o tratamento. Outro estudo, apresentado na American Society of Hypertension evidenciou que a música pode auxiliar na normalização da pressão arterial e do ritmo cardíaco — o que traria benefícios além do relaxamento, contribuindo para o tratamento de hipertensos e para a prevenção de doenças cardiovasculares. Outra pesquisa realizada pela Cleveland Clinic Foundation, nos Estados Unidos, comprovou, ainda, que ouvir música promove efeitos benéficos no tratamento de dores crônicas, como as causadas pelo câncer.

A música poderia ser utilizada, de maneira sistematizada, dentro de instituições de saúde? 

A musicoterapia já é usada em vários institutos e hospitais pelo mundo como, por exemplo, junto ao Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer. De acordo com os resultados da pesquisa conduzida pela musicoterapeuta Maria Helena Rockenbach, no departamento de Oncologia Pediátrica do Hospital da Criança Conceição e no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a música resultou na melhora de 74,8% no estado geral de crianças adoecidas. Com tantas evidências disponíveis, é mandatório que haja, sim, um projeto para que atividades lúdicas sejam implementadas como via complementar ao tratamento medicamentoso para nossos pacientes. 
 
O estado emocional já é reconhecido como componente importante dos males do corpo?


De acordo com a teoria de Georg Groddeck, pioneiro da Medicina Psicossomática, não existem sintomas ou doenças emocionais, em oposição a sintomas e doenças orgânicos. Para ele, toda enfermidade tem um viés psicológico. Isso porque o ser humano é um só, uma unidade de corpo, mente e emoções. Essa é a essência que nos move ao tentar fornecer tratamentos paralelos aos medicamentosos. Enxergar os acontecimentos de maneira positiva e esperançosa nos fornece uma via alternativa em busca da eficácia e do sucesso terapêutico. É uma prova de que o pensamento positivo é capaz de influenciar diretamente um desfecho favorável. Devemos desvirtuar o paciente da linha de tratamento padrão, para que o pensamento negativo não o leve a um ciclo vicioso de tristeza, culminando, muitas vezes, em um luto persistente, o que resulta em depressão. O corpo e a mente devem seguir um só caminho, de mãos dadas, pois só assim o indivíduo conseguirá acessar mecanismos adicionais para superar as adversidades.

Nem todas as manifestações sobre sua postura dentro do hospital são positivas. Como você lida com as críticas? 

Quando penso que os principais beneficiados das inovações que eu busco dentro do meu trabalho são os pacientes, nada mais importa. No começo, é claro, tive que lidar com certo desânimo, mas cada consulta vestindo jalecos temáticos, por exemplo, que encantam os pequenos, renovavam minha energia. Geralmente, os pais pedem para tirar fotos e as consultas terminam com grande alegria. Por isso, só me resta sorrir e acreditar que esse é o caminho. A satisfação de quem pede auxílio é o que mais importa para mim. 
 
Essas brincadeiras são uma maneira de amenizar o sofrimento das crianças enfermas e de seus familiares? 

Elas são uma forma de tirar a doença do centro da atenção de quem sofre. Gosto de mostrar às pessoas que o sorriso e a alegria existem dentro delas, independente da fase dura que enfrentam. A criança, muitas vezes, não tem noção da gravidade da enfermidade que precisa combater, o que é muito mágico, pois raramente a veremos sofrer por um provável desfecho negativo. Para ela, o problema se resume aos exames, às consultas e aos demais procedimentos realizados com frequência. Os pequenos nos mostram, diariamente, que o melhor a se fazer é tentar não se importar, ou seja, desvirtuar completamente o foco do motivo da internação. Ao fazer isso, conseguimos levar paz aos corações.
 O vídeo com o médico cantando viralizou nas redes sociais
Já houve situações que o levaram a “improvisar” para garantir um atendimento humanizado ao paciente? 

Era a primeira consulta do dia. Entrou uma paciente de sete anos. A sala estava fria, não conseguia encontrar o controle do ar condicionado, que deve ter passado a noite ligado. Tímida, a garotinha me deseja bom dia e exclama “que sala gelada, tio”. Sereno, confirmo e sugiro: “que tal aproveitarmos o frio para brincarmos de Frozen nesta consulta?”. Com um sorriso de orelha a orelha,  ela concorda e rebate: “você vai ser o Olaf”! Curioso, pergunto o porquê. Sem titubear, ela solta: “tem o nariz parecido, fala diferente e parece bobo”. Achei engraçado, mas fiquei pensando por que nunca posso ser o príncipe? A consulta fluiu com naturalidade e, diante dos meus questionamentos, sou chamado de “tio Olaf”. Ela pergunta de onde vim e, quando respondo que nasci na Paraíba, ela respondeu: “muito quente lá, né?” Digo que nem tanto. Aos nos despedirmos, ela me abraça e sussurra: “Não vai para a Paraíba porque você pode derreter e preciso que você esteja aqui na próxima consulta”, e foi embora. Com um sorriso bobo, pensei em como as crianças são capazes de alegrar as nossas vidas diante de qualquer situação.

O que o levou a cantar para a paciente que é mostrada no vídeo que fez sucesso na internet? Costuma fazer isso com frequência? 

A enfermaria de Oncologia estava lotada naquela semana. Boa parte dos pacientes era formada por por adolescentes entre 12 e 16 anos. Diferente das crianças mais novas, garotos e garotas dessa idade têm maior percepção da gravidade das enfermidades que enfrentam e, portanto, estão mais sujeitos a pensamentos negativos. Aquilo aconteceu na segunda semana de março deste ano, quando eu estava visitando o quarto 723 e encontrei uma das crianças perdida em pensamentos, olhando vagamente para a janela. Perguntei se ela gostava de música e se gostaria que eu trouxesse um instrumento para tocarmos juntos. Prontamente, ela me respondeu que sim. Falei que traria no dia seguinte e que ela separasse três musicas para cantarmos. No dia seguinte, carreguei o ukulele comigo para o hospital — o instrumento é pequeno e mais fácil de ser transportado. Naquele dia, a rotina da enfermaria estava intensa, com muitas avaliações, prescrições e condutas a serem tomadas. A tarde, quando tudo estava mais tranquilo, decidi pegar meu ukulele e criar um momento de descontração. Fui de leito em leito pedindo para que escolhessem uma música para tocarmos. Teve de tudo, do reggae ao rock, do axé ao sertanejo. No último quarto, estava uma criança bastante debilitada, restrita ao leito, sem conseguir andar. Tocamos e cantamos três músicas. Quando nos despedimos, ganhei um abraço apertado e um obrigado que jamais vou me esquecer. Em minha passagem por todos os quartos, notei uma movimentação especial do lado de fora. Vi que havia uma criança me acompanhando em todos os leitos e, ao sair do último, não teve jeito. Bem em frente à porta estava a Sophia. Sorridente, feliz, esperando a vez dela de cantar. O pai me interpelou: ‘está acompanhando o senhor desde o começo, acho que chegou a hora dela’. Fiquei um pouco com receio, pois não me recordava no momento de nenhuma musica infantil. A família me tranquilizou, ‘pode tocar Marília Mendonça que ela adora!’. Pensei na música e toquei. Nos primeiros acordes, observei que algo mágico se desenhava. Como uma bailarina, ensaiou passos doces e suaves entre o suporte do soro e suas conexões. Ria, acenava, encantava. Naquele momento não havia dor, não havia medo, não havia receio, apenas vida em toda a sua essência. Aqueles minutos ficaram eternizados, um exemplo divino de como as crianças são capazes de encarar as adversidades com leveza e beleza. As lágrimas eram de felicidade e de esperança por dias melhores. Quando terminei a música, o clima era outro. Todos pareciam estar ludibriados com aquela cena, encantados com o espetáculo da pequena Sophia. No quarto 723, uma de nossas crianças não estava conseguindo andar por conta da doença, mas, escutando a movimentação na porta do seu quarto, pediu para que sua mãe fosse ver do que se tratava e gravasse para que ela também pudesse ver. Foi assim que a cena foi captada pelas câmeras e divulgada aos quatro cantos por conta das redes sociais. 
 
O que você sentiu quando viu a reação da garotinha? 

É difícil descrever tudo que passou pela minha cabeça naquele momento. Ver aquela criança, vítima de uma doença grave e fazendo quimioterapia, dançando como se nada mais estivesse acontecendo, como se apenas ela e a música fossem o centro do universo, foi mágico. Naquela hora, o tempo parou e senti que todos estavam captando a essência da dança, fazendo emanar esperança em cada passo dado. Impossível esquecer. Eu, que acreditava estar curando, estava sendo curado. 
 
Com tanta repercussão, entre críticas e elogios, pretende continuar atuando nessa linha? 


Sim! Desde a minha graduação, na Universidade Federal de Campina Grande, tento levar aos meus pacientes uma via alternativa de diversão, seja por meio da fantasia, da encenação, da poesia e da música. Quando a mente segue plena, o corpo encontra forças para superar toda e qualquer adversidade. Parar não é uma opção. Enquanto existir, levarei muito mais do que remédios, exames e informações técnicas a quem me procura. 
 
O oncologista pediátrico americano Patch Adams é conhecido por inspirar profissionais a desenvolver uma medicina mais humanizada. Ele também é uma inspiração para o seu trabalho? 

Patch Adams é um grande exemplo de como o amor modifica vidas. Transformou uma história pessoal trágica, de muitas perdas familiares e de depressão, em combustível para mudar a vida das pessoas por meio de uma assistência médica recheada de alegria e de amor. Mesmo diante de tantas críticas, manteve-se fiel à sua filosofia de vida e conseguiu, por meio de seu instituto filantrópico, ajudar milhares de pessoas prestando um atendimento digno e gratuito. Deve, sim, ser um modelo de referência na formação de novos profissionais de saúde.

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