Centenário de caridade

Centenário de caridade

Uma igreja no centro, casas no entorno e bancos de praça espalhados por toda parte, debaixo de árvores que fazem sombra aos experientes moradores, que diariamente se reúnem para um bate-papo

Alguns ficam pensativos, outros leem livros, há quem goste de palavras cruzadas e até mesmo de navegar nas redes sociais. O Lar Padre Euclides, localizado nos Campos Elíseos, foi fundado em 1919, e consiste em uma associação civil, de caráter filantrópico, composta por associados, voluntários, irmãs de caridade e funcionários que se dedicam a dar atenção aos assistidos. 

Cada idoso contribui com cerca de 70% do salário para ajudar com serviços de manutenção do espaço e, assim, pode desfrutar de um ambiente com mais privacidade, como quarto com banheiro, cama, guarda-roupa, televisão, três refeições ao dia e serviço de limpeza. Contudo, quem não pode contribuir também é acolhido. São idosos sem condições psicológicas ou financeiras, que foram abandonados pela família e necessitam de ajuda diária. 

Há 100 anos, o lar oferece moradia, alimentação, atendimento médico e odontológico, medicamentos, entre outros serviços. No dia 5 de janeiro, a instituição completou o centenário de existência e o dia foi celebrado com uma grande missa, além de uma exposição de fotos do lar, que ficará aberta à visitação durante todo este ano. 

A Biblioteca Padre Euclides também expandiu seu acervo em 2019, com a chegada de um livro escrito por um morador da casa, que decidiu, há anos, morar com a mãe, residente também no lar. “O Centenário do Lar Padre Euclides 1919 a 2019”, do autor Nelson Moreira, narra a história da entidade desde seu surgimento e relata, com detalhes, o trabalho desse padre que dedicou parte da vida aos necessitados. “Eu aprendi a ver a necessidade dos outros. Aqui não temos o eu, somos nós. Fazemos para todos. Como é importante ouvir tantas histórias. O mundo está envelhecendo e as pessoas não estão se dando conta”, afirma Ney Martins, presidente do lar. Ele conversou com a Revide sobre o trabalho realizado pela instituição e sua história de solidariedade.

- Quem foi padre Euclides?

A partir das pesquisas feitas, sabemos que padre Euclides, quando idealizou a criação do lar, não imaginou que seria tão grande. Até hoje, seguimos o mesmo estatuto elaborado por ele, apenas adaptamos às leis atuais. À época, entre 1917 e 1918, ele esteve em Ribeirão Preto e se deparou com uma cidade saindo do caos do café — naquele tempo houve uma geada, que acabou com plantações, e teve início o cultivo de açúcar. Os senhores da fazenda retiravam as pessoas mais idosas, que não tinham condições de cuidar do açúcar, e as abandonavam na cidade. O padre, vendo aqueles mendigos todos que ficavam abandonados na rua, sentiu vontade de acolhê-los. Assim surgiu o asilo, que nasceu com o nome de Casa da Mendicância. Nos primeiros anos de existência, eram atendidos cerca de 100 idosos. Hoje, o Lar Padre Euclides tem capacidade para acolher 60 idosos nas “casinhas” e está com 48 acolhidos, entre homens e mulheres.

- Quando você entrou no lar pela primeira vez?

A primeira vez em que entrei no Lar Padre Euclides foi há 22 anos. Por um momento qualquer, passando pela Avenida da Saudade, decidi entrar e, sentado em um banco, conheci uma pessoa e comecei a ler um livro para ela. Desde então, não consegui sair mais. Hoje, estou como presidente voluntário do lar. Não consigo explicar o porquê de eu estar aqui e sempre querendo fazer o melhor. É muito gratificante, eu ganho mais do que ofereço.

- Qual o objetivo da instituição?

Nosso objetivo é acolher os menos privilegiados, que não têm condição de se sustentar ou cuidar, ou não têm família que os acolha. O estatuto do idoso diz que, se ele não tem nenhuma condição ou fonte de renda, deve ser acolhido, e nós os acolhemos aqui. Ele não precisa contribuir com nada. Este é um lar de pobres. Já tivemos procura de pessoas bem sucedidas, até pela boa estrutura do lar, mas não podemos acolhê-los, vai contra o estatuto.

- Quais serviços são oferecidos na entidade?

O lar oferece acolhimento integral, além de moradia, alimentação, roupas. Também possui fisioterapia, serviço de enfermagem, psicólogo, dança, aulas de educação física e pintura.

- Sobre os enfermos, hoje há quantos que estão no lar? Como é feito para garantir remédios aos pacientes?

Há, na enfermaria, 11 idosos que necessitam de cuidados, pois não conseguem ficar nos quartos sozinhos. Em relação às medicações, pegamos no posto de saúde. Quando há alguma substância que não é fornecida pela rede, a instituição compra.

- Há fila de espera na instituição?

Atualmente, não temos lista de espera. O idoso procura o lar e, quando tem o perfil, é acolhido pela entidade. Estamos com vaga de primeiro grau disponível, destinada a idosos que se locomovem bem e não têm distúrbios mentais.

O lar acolhe idosos que não têm condições de se sustentar ou não possuem família- Do que os idosos mais sentem falta?

De uma boa conversa e, acima de tudo, de um abraço de suas famílias. 

- As famílias cumprem a missão de visitar os parentes frequentemente?  

Alguns familiares frequentam a instituição todos os dias e há, até, aqueles que passam meses pelo lar. Em contrapartida, também há casos em que parentes nunca visitam a instituição.

- O que os idosos fazem para ocupar o tempo livre, além das atividades da casa?

Procuramos realizar algumas atividades variadas, para contribuir com o lazer e a diversão de quem está no ar. Sempre levamos os idosos para clubes, praças, bingos e, até mesmo, bailes em outras instituições.

- O poder público garante algum tipo de contribuição?

Além do fornecimento de fraldas geriátricas e alguns medicamentos, recebemos recursos da Prefeitura de Ribeirão Preto e do Estado de São Paulo. São subvenções que equivalem a 13% de nossa despesa mensal. Gastamos cerca de R$ 120 mil mensalmente. Recebemos do governo estadual e municipal em torno de R$ 15 mil todo mês. Para suprir a falta de recursos, realizamos alguns eventos.

- Quais as dificuldades para manter toda a estrutura da instituição?

A maior dificuldade é financeira. Apesar de termos auxílio do poder público, precisamos de mais parceiros. Temos a necessidade de empresas que abracem nossa causa para termos os recursos necessários para a manutenção.

- Ribeirão Preto é uma cidade que os acolheu bem?

A cidade é muito acolhedora. Sempre que passamos por dificuldade, a população de Ribeirão Preto é solidária e abraça o Lar Padre Euclides. Às vezes, chegam tantas doações, que poderíamos até pedir para parar. É bom enfatizar que, nesses casos de um número elevado de doações, não deixamos que nada se perca. Quando há excedente, doamos para outras instituições que precisam.

- Você já deve ter ouvido muitas histórias no lar. Lembra-se de algum episódio marcante?

Um belo dia me deparei com uma senhora chorando. Ela tem 90 anos. Fui perguntar a ela o que tinha acontecido, se sentia dor, se estava com algum machucado. E ela respondeu: “Estou com saudade da minha sobrinha, ela não vem me ver”. Ela não tinha o telefone, talvez pela idade tivesse se esquecido. Me passou o nome e a encontrei por meio de uma rede social. Passei uma mensagem dizendo que era do lar e que havia uma pessoa que queria vê-la, e se não poderia passar para dar um abraço naquela senhora. Até hoje não tive resposta.

- Como foi saber que alguém escrevia um livro sobre os 100 anos de trajetória do lar?

Isso foi muito importante. O Nelson, que escreveu a obra, veio para o lar para cuidar da mãe. Ele é de Ribeirão Preto, mas morava no Rio de Janeiro. Nós o acolhemos aqui e, há cerca de dois anos, ele sentiu vontade de buscar pela história do lar e escrever um livro. Para mim, foi uma emoção muito grande. A publicação acalenta o lar.

Nelson Moreira é autor do livro que narra a história do lar desde 1919- A festa de 100 anos do lar e o lançamento do livro aconteceram em 5 de janeiro. Como foi comemorar essa data marcante para a instituição?

Já vínhamos buscando por isso há cerca de um ano. As irmãs fizeram as camisetas comemorativas, o Nelson fez o livro. Buscamos parceiros e doações. Montamos uma exposição de fotos que ficará à mostra até janeiro de 2020. Foi um dia muito marcante. Em média, havia umas 400 pessoas, muitas de outras cidades, que estavam conhecendo o lar pela primeira vez.

- Como as pessoas podem contribuir com o lar?

Temos associados que contribuem com um pequeno valor, em torno de R$ 100 por ano. Muitos podem pensar que não é suficiente, mas qualquer quantia ajuda. Há pessoas que se sentem constrangidas por doar um litro de leite, por exemplo. Faço questão de dizer que o lar precisa de quem pode doar um litro de leite, bem como de quem pode contribuir com um caminhão de leite. Tratamos todos de forma igual.

- Por que é tão importante ajudar os idosos que estão nessas condições?

Eu aprendi a ver as necessidades dos outros. Aqui não temos o eu, somos nós. Fazemos para todos. É muito importante ouvir tantas histórias. O mundo está envelhecendo e as pessoas não estão se dando conta.

- Você pretende continuar com os trabalhos prestados à instituição?

Enquanto eu tiver forças, vou continuar. Quero encerrar minha vida dentro do Lar Padre Euclides, de tão bem que me sinto aqui. Aos finais de semana, gosto de colocar minha bermuda, camiseta e ficar conversando com um ou com outro, tomando um café. Estarei sempre lutando por eles e dando meu melhor.

Texto: Bruna Romão
Fotos: Ibraim Leão e Júlio Sian

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