Dos coronéis aos sevandijas

Dos coronéis aos sevandijas

Analisando os 161 anos de Ribeirão Preto, o professor Rafael Cardoso diz que há uma relação entre o passado político da cidade e o desmantelamento do grupo que até recentemente comandava o município

Joaquim da Cunha Diniz Junqueira e Francisco Schmidt, o rei do café, foram dois coronéis que controlaram com mão de ferro, por muitos anos, a política local. Para o professor e mestre em história, Rafael Cardoso que Rafael: o coronelismo que predominou na história política da cidade não traz benefício social.coordena o curso de pós-graduação em História, Cultura e Sociedade do Centro Universitário Barão de Mauá, essa característica marcante do passado da cidade guarda relação com um longo e recente período da política local em que alguns grupos se apropriaram dos órgãos públicos para atender interesses particulares. Essas forças políticas, tal qual ocorreu no passado, estabeleceram uma relação paternalista e mercantilista com os eleitores da cidade, cirando uma dependência política que se perpetuou por gerações. Rafael já foi professor contratado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Na graduação da Mauá,  leciona a disciplina História de Ribeirão Preto e faz pesquisas sobre o tema, visita  museus de empresas e estuda a história das famílias ribeirãopretanas. O professor caminha para a publicação do sexto livro sobre a história do município. Nas comemorações dos 161 anos de Ribeirão Preto, na entrevista a seguir, Rafael Cardoso analisou os principais fatos políticos, econômicos e culturais da cidade fundada em 19 de junho de 1856. 

Olhando para a história de 161 anos de Ribeirão Preto, o que, aos olhos de um pesquisador, existe de mais interessante? 
De tudo o que já estudei, avalio que Ribeirão Preto é uma cidade que bem representa a realidade brasileira. Se o Brasil, hoje, discute a Lava-Jato, Ribeirão Preto teve Operação Sevandija, deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público no dia 1º de setembro de 2016. Além dos mesmos reflexos da crise econômica, Ribeirão Preto também se parece muito com o Brasil sob o ponto de vista cultural. Pouca gente sabe, mas o município foi fundado por mineiros. no começo do Século XIX, que vieram para cá, fugindo do ocaso aurífero com o esgotamento das minas. Até 1880, Ribeirão Preto era um conjunto de casinhas, fazendas, um povoado simples, rústico, mesmo que desde 1856 já existisse a formação de um povoado. Entretanto, não havia a menor intenção de se fazer aqui uma grande cidade. A pujança econômica só veio com as primeiras mudas de café na década de 1870 e com a ferrovia em 1883. Pela estrada de ferro, chegaram os franceses, os portugueses, os italianos e os espanhóis. Na sua história, Ribeirão Preto tem 30 ou 40 anos de pura mineiridade, por isso, é uma cidade muito católica, mas que possui as questões étnicas e as raciais associadas ao racismo e ao preconceito. O machismo da cidade tem a ver com essa cultura mineira. Os historiadores estão revendo essas influências. 
 
Sempre quando se analisa a história, há uma discussão sobre passagens da historiografia oficial que precisam ser revistas. Tem algo que precisa ser reavaliado e contestado na história da cidade?
Geralmente, quando eu vou às escolas públicas municipais, as professoras ficam chocadas com alguns resultados de nossas pesquisas. Alunos e professores estudam a bandeira e costumam cantar o hino de Ribeirão Preto nas solenidades. Tanto o hino quanto a bandeira são construções históricas. O hino diz que “Ribeirão Preto é terra do café, orgulho de São Paulo e do Brasil.” Na bandeira, tem o brasão com dois ramos do café e uma águia. São coronéis dizendo a si mesmos que eles mandam em Ribeirão Preto, desconsiderando todos os outros grupos, seja do ponto de vista do gênero, da etnia ou das classes sociais. Portanto, muitos sujeitos históricos foram silenciados na história da cidade, sendo que Ribeirão Preto não nasceu com o café. É preciso registrar que a cidade surgiu com a doação de terras por fazendeiros preocupados em com a legitimação de suas terras.
 
Por que os fazendeiros da época poderiam perder as terras?

Em 1850, havia a lei de terras no Brasil. Você não poderia ser dono de terra a não ser mediante a compra. Dom Pedro II percebeu que era uma questão de tempo e a escravidão acabaria. Os imigrantes chegariam e poderiam tomar terras devolutas, construiriam cercas e se apropriariam dessas áreas. O Império com medo de perder as terras decretou que agora não haveria mais a posse, só a compra. Por aqui, existiam pessoas que tinham fazendas, mas que não eram legalizadas. A doação de uma pequena parte para a Igreja Católica foi a forma que esses proprietários encontraram para legalizar as propriedades. Quando a Igreja aceitava a doação significava que toda a área do entorno era sua. Isso comprova que esse espírito empreendedor dos primeiros mineiros era, na verdade, o uso da religião para legitimar interesses. 
 
Que analogia pode ser feita entre os primeiros coronéis do café, que comandavam a cidade no começo do Século XIX com mão de ferro, e os políticos que foram presos e afastados da política, recentemente, pela Operação Sevandija?
Com base nas informações que recebemos pela mídia, alguns vereadores, até bem pouco tempo, controlavam áreas da cidade e da administração pública municipal como se fossem verdadeiros feudos, semelhantes aos que eram controlados pelos coronéis do café no começo do século passado. Esses políticos e empresários agiam como se fossem proprietários dos espaços públicos. Os moradores da cidade enviavam cartas, acessavam os vereadores para atender um desejo particular, pedindo, por exemplo, a intermediação para conhecer alguém famoso ou ajuda para comprar um vestido de noiva. Isso demonstra que ao longo do tempo a população viu o coronelismo de uma maneira equivocada, sem a preocupação de vigiar e fiscalizar os representantes. O resultado foi esse que vimos com o desfecho da Operação Sevandija. Os moradores da cidade ainda não conseguiram se desvencilhar completamente desse vínculo político equivocado, dessas algemas mentais, da troca de favores, do toma lá da cá. Por isso, não tem a consciência da sua condição e não vivenciam a cidadania plena. Em Buenos Aires, por qualquer motivo, as pessoas vão à rua bater panelas. Por aqui, salvo em ocasiões específicas, os protestos são raros. 
 
O episódio da Sevandija pode ser um marco para uma mudança cultural e política, o fim desse coronelismo político dos tempos modernos?
Sou otimista com base em meus estudos. Não espero que Ribeirão Preto se transforme e deixe de ser “mineira” e que altere a sua configuração cultural. A cidade não mudará nesse sentido nos próximos anos, seguirá a histórica tendência de cristalização e não de ruptura. No entanto, há de se reconhecer as necessidades do presente e a vergonha desse passado recente. Temos que preservar a memória e entender que o coronelismo que predominou na história política da cidade não traz benefício social. Apenas uma parte leva vantagem e isso não é compatível com as necessidades de uma cidade que está no Século XXI. Precisamos olhar para o passado e reconhecer que fomos coronelistas, mas, agora, temos que nos reinventar, entregar ao público o que pertence ao público. Essa consciência precisa ser estendida a todos também do ponto de vista da responsabilidade. Não é só o vereador que não pode ser coronelista. A população também precisa entender que ela não pode acessar o vereador só para resolver os seus problemas particulares. Essa mudança passa pela educação formal e informal. 
 
Há uma sensação de que os políticos de antigamente eram menos corruptos e menos interesseiros do que os
Rafael: o coronelismo que predominou na história política da cidade não traz benefício social.atuais. Isso é verdadeiro?
Muito pelo contrário, os fatos recentes apenas tornaram público o que sempre soubemos no privado. No caso de Ribeirão Preto, no começo do século XX, com base na documentação que encontramos, fica claro que grupos de pessoas se associam para tomar o poder público com o objetivo de sustentar os interesses privados. Essa forma de  controle político se manteve durante décadas. 
 
Qual a importância que os imigrantes tiveram na formação de Ribeirão Preto?

De acordo com a pesquisadora Rosana Cintra, em 1905, a cidade tinha 59 mil habitantes, 19 mil eram brasileiros ou 32%. Cerca de 25 mil eram italianos e o restante  estava fragmentado entre espanhóis, austríacos, alemães, portugueses e outras etnias. Era comum ouvir pessoas falando italiano pela cidade, embora esses imigrantes se concentrassem nas fazendas do interior e no núcleo colonial denominado Antônio Prado, que hoje se entende como o bairro dos Campos Elíseos. Embora, na época, formassem colônias, a miscigenação que ocorreu explica a origem dos sobrenomes italianos de tantas famílias ribeirãopretanas. 
 
No decorrer dessa história de 161 anos, como foram tratadas as minorias?
As mulheres são objeto de estudo das minhas pesquisas. Elas foram vítimas de um silêncio imposto e de um machismo patriarcal. Elas sofreram muito com esses preconceitos a exemplo do que ocorreu no Brasil e no mundo. No começo, a mulher ribeirãopretana teve esse perfil “mineiro” num ambiente de introdução da França, da  cultura da Belle Époque e do café. Ela passa a ser aquela que percebe que pode viver a modernidade, a urbanização, a moda e o espaço público no contexto do Século XX, mas também precisa lembrar da pureza, da virgindade e da moral cristã. Esse embate entre o velho e o novo torna a mulher ribeirãopretana muito interessante, ela tem o mundo nas mãos e uma algema nos pés.   
 
Em linhas gerais, do ponto de vista histórico, qual é o perfil do ribeirãopretano?
É um cidadão mineiro, católico não praticante, que coloca o santinho na porta de casa; de homens brancos que mesmo quando não são brancos se “branqueiam” para poderem se socializar com mais facilidade. Possuem uma tendência machista e preconceituosa, mas pelo espírito mineiro não revelam isso prontamente. O mineiro come pão de queijo e resolve as diferenças com um cafezinho que por sinal acabou se tornando o símbolo de um processo de corrupção. 

Do ponto de vista histórico, como podem ser avaliadas as denominações que Ribeirão Preto recebeu no decorrer da sua história como “a pequena Paris”, “Califórnia Brasileira”, “Capital da Cultura” e mais recentemente “Capital do Agronegócio”?
Toda a cidade precisa de uma entidade e essa representação não é construída pelos moradores. Quem forja essa identidade é a elite e os grupos dominantes. No começo do XX, Ribeirão Preto foi chamada de “ A Pequena Paris” porque a cidade foi afrancesada na cultura e no espaço físico, nas ruas e nas praças. Francisco Cassoulet, que criou o primeiro cabaré na cidade e importou bailarinas francesas, caiu nas graças da elite ribeirãopretana. O Theatro Pedro II e a arquitetura também evidenciam esse toque francês que a elite deu à cidade. Na década de 1980, a denominação mudou para a “Califórnia Brasileira”. Paris não era mais a principal referência financeira e cultural do mundo. Se Ribeirão Preto quer se apresentar para o país e para o mundo como uma cidade rica, a Califórnia americana e os Estados Unidos se encaixam melhor nessa nova realidade. Sempre há um movimento em busca do que a elite considera o melhor para a cidade. Creio que a denominação de “Capital da Cultura” ganhou força a partir dos anos 2000, com o projeto de instalação de bibliotecas e o surgimento da Feira do Livro, que ganhou projeção nacional. A denominação de “Capital do Agronegócio” está vinculada à vinda da Agrishow. Agora, Ribeirão Preto se apresenta como a capital das cervejarias artesanais e, num futuro próximo, será também o centro da Região Metropolitana.  Em princípio, além da economia com o DDD, não vejo grandes vantagens para a cidade com a Região Metropolitana. Além da economia das ligações telefônicas do DDD 016, Ribeirão Preto poderá acessar recursos de um fundo financeiro que poderá a minimizar os problemas gerados pela demanda regional, principalmente na área da saúde. Todos esses nomes só fazem efeito se tiverem impactos concretos na vida urbana. A cidade precisa consolidar um polo de turismo, por exemplo. Entendo que Ribeirão Preto é de fato a “Capital do Agronegócio” só na Agrishow. Passado o período da Feira isso acaba. O agronegócio não tem outro evento para movimentar a cidade. Precisa ter algo mais além da realização da Feira. 

Texto: Murilo Pinheiro  
Fotos: Ibraim Leão

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