Na escola para a vida

Na escola para a vida

Segundo a psicopedagoga Edna Marturano, a educação tem um vínculo profundo com o desenvolvimento da sociedade brasileira

Disseminar a cultura dos valores humanos é um grande desafio para a educação no século XXI, principalmente, por se tratar de um fato que, mesmo com o avanço em diversas áreas, continua sendo ignorado por muitos indivíduos. Por isso, é importante ter um olhar cuidadoso para o outro através de uma perspectiva coletiva para mudar a chave da educação brasileira, considerada um dos pilares para um desenvolvimento humano integral. 

Atuando em projetos para uma educação mais humana, Edna Maria Marturano entende que a escola, sendo um espaço de convivência e socialização, seja um cenário capaz de desenvolver inúmeras ações que contribuem para a formação integral do aluno. Formada em psicologia, especialista em psicopedagogia, a professora titular aposentada da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), da USP comenta que fomentar a cultura dos valores humanos na educação escolar significa utilizar pedagogicamente conteúdos relacionados ao exercício de direitos e de deveres, bem como valores relacionados a respeito e a prática dos direitos humanos. 

Com experiência nas áreas de Psicologia do Desenvolvimento e Tratamento e Prevenção Psicológica, Edna atua, principalmente, com os seguintes temas: fatores de risco e proteção ao desenvolvimento da criança; prevenção de problemas de comportamento em diferentes contextos; apoio psicopedagógico nas dificuldades de aprendizagem, e família e desempenho escolar. A professora revela, na entrevista a seguir, o desejo de compartilhar uma nova forma de alfabetizar, com base em valores humanos, para que, assim, a criança alcance um nível de autonomia moral que a capacite a manter um comportamento estável, independente das pressões externas, e seja capaz de se posicionar ativamente contra toda violação daquilo que foi moralmente estabelecido.

A professora participou recentemente do VI Seminário Internacional de Habilidades SociaisRevide: Qual foi o ponto de partida para que você passasse a defender a ideia da alfabetização em valores humanos?
Edna:
Quando coordenava a clínica de Psicologia do HCRP, a maior demanda por atendimento psicológico era para crianças de 6 a 12 anos com dificuldade no aprendizado. Muitas delas tinham problemas nos relacionamentos, que dificultavam a adaptação ao ambiente escolar. Esse foi o ponto de partida do interesse pelo tema. O primeiro projeto não tratava de valores, mas focalizava habilidades de solução de problemas interpessoais, trabalhadas em grupo, por meio de atividades lúdicas apoiadas em diversas formas de representação, inclusive, a linguagem oral e a escrita. Era um trabalho clínico que fez com que crianças melhorassem suas habilidades escolares e seu comportamento. O trabalho com valores humanos veio a seguir.

Você é coautora do livro “Alfabetização em valores humanos: um método para ensino de habilidades sociais”. Como iniciou esse projeto e qual o intuito de fomentar essa forma de educar?
O trabalho na escola começou quando a professora Dâmaris, minha parceira nesse trabalho, apresentou-me a outra face da moeda: a escalada de conflitos na sala de aula que as crianças não conseguiam resolver, a ponto de interferirem com as atividades de ensino e de aprendizagem. Dâmaris lecionava para crianças que estavam iniciando o ensino fundamental. A ideia de trabalhar valores com alunos assim tão jovens surgiu depois da aplicação do programa de habilidades para solução de problemas interpessoais em uma turma da 1ª série. Percebemos que, depois do programa, as crianças se tornavam mais reflexivas, porém, não necessariamente mais cooperativas e pró-sociais. Refletindo sobre as anotações feitas durante a aplicação do programa, concluímos que os estudantes tinham aprendido a pensar em soluções, mas talvez não estivessem suficientemente sensibilizados para mudar de comportamento — tinham o “saber”, mas não o “querer”. Abrimos, então, nossa perspectiva para incluir um módulo de sensibilização aos valores humanos, basicamente, por meio de dois dispositivos: atividades envolvendo contos infantis, fábulas e parábolas, em que as crianças discutem, questionam, dramatizam, representam e imaginam sobre os textos narrados ou lidos pela professora, e resgate dessas vivências nos momentos de conflitos reais na turma, por meio de diálogos. Difícil e desafiador, mas possível e com excelente resultado, como demonstrou a professora Dâmaris na prática: as crianças reduziram drasticamente as altercações, melhoraram a atenção às tarefas, tornaram-se mais solidárias umas com as outras e ficaram menos suscetíveis às situações de tensão na escola. Por isso, queremos compartilhar essa forma de educar: porque ela promove a boa convivência na sala de aula, preservando a natural harmonia entre as quatro facetas do aprender, apontadas por Delors como os pilares da educação: aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser.

Qual a importância de desenvolver uma forma de alfabetização baseada em valores humanos?
Trata-se de um modo de ação respaldado na atitude consciente do educador. Quais os fundamentos dessa ação? Em primeiro lugar, o reconhecimento da indissociabilidade entre as quatro facetas do aprender já mencionadas. Por exemplo, enquanto desenvolvem as habilidades acadêmicas, as crianças também estão descobrindo meios de lidar umas com as outras e com o professor. Em segundo lugar, a consciência do poder de influência do professor, que é maior quanto mais jovens são os alunos. Aplicando essa noção ao tema do nosso interesse, percebemos que o modo como a professora ou o professor se relacionam com os alunos é uma maneira de ensinar a convivência. Tornar-se consciente do que pode estar ensinando com seu comportamento no dia a dia da sala de aula é uma pré-condição para o professor tomar as rédeas de sua atuação docente. Nossos valores permeiam nossas atitudes. Sobre a importância da educação baseada em valores humanos: de acordo com a proposta, o professor lidera sua turma de alunos como uma comunidade em que a convivência pacífica é construída no dia a dia, à custa do reconhecimento recíproco dos diferentes pontos de vista e negociação das diferenças, na base de muita conversa reflexiva. É um exercício cotidiano de cidadania.

Acredita que há espaço para uma educação que coloque em primeiro plano a questão dos valores, e não do mercado?
Sinceramente, não vejo essa incompatibilidade entre valores e mercado. Você pode ser, ao mesmo tempo, uma pessoa ética e um excelente profissional, com domínio das competências necessárias ao êxito no seu campo de atuação. O grande desafio da educação escolar, hoje, é como formar pessoas com um perfil tão diferenciado.

Como a educação em valores humanos pode contribuir para solucionar questões como o bullyng nas escolas?
O bullying, ou a agressão de maneira geral, entre outros comportamentos antissociais, são direcionados por valores que desprezam o outro e consideram apenas a vontade própria e imediata. Assim, quando você incentiva uma criança a se colocar no lugar da outra, a pensar nas consequências do que está fazendo, a ter autocontrole e encontrar soluções alternativas, a criança diminui acentuadamente a ação irrefletida, passando a agir de maneira menos autocentrada e que seja mais conveniente para todos.

Acredita que ainda falta capacitação profissional para que os professores possam adotar esse método na sala de aula?
Acreditamos nos professores que desejam maximizar seu poder de influência sobre os alunos em uma direção positiva para o desenvolvimento das crianças. Sempre há espaço para aprimoramento.

Como avançar no sentido de tornar mais clara a importância da humanização na educação e o relevante papel da escola na formação humana?
Aproveito sua pergunta para assinalar o crescente reconhecimento de que uma adequada preparação para o mercado de trabalho não prescinde de qualidades de caráter cada vez mais valorizadas pelas organizações, como compromisso, responsabilidade e integridade. Acredito que o avanço nesse sentido é uma necessidade incontornável e que a sociedade deve chegar lá, mais cedo ou mais tarde. A propósito, vivemos coletivamente um momento de crise que, como nunca antes na história, está forçando a reflexão sobre o que de fato importa. Há um longo caminho entre a reflexão e a transformação, mas tudo tem um começo.

Vivemos em uma sociedade altamente competitiva. Na sua opinião, qual a melhor forma de instruir os jovens?
A imprensa vem divulgando resultados de um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), realizado no ano passado, indicando que 65% das crianças de hoje trabalharão em profissões que nem mesmo ainda existem. Como formar indivíduos preparados para enfrentar esse mercado? O debate está aberto. As soluções propostas passam por itens como a promoção da criatividade, o desenvolvimento de habilidades de solução de problemas, a educação do caráter, o “aprender a aprender” e a capacitação do professor em todas essas habilidades. Minha experiência pessoal se circunscreve à educação básica. Nesse nível, até pelas características evolutivas do educando, não podemos abrir mão da educação do indivíduo em sua integralidade.

Como lidar com os diferentes universos sociais e culturais numa época em que o individualismo é tão valorizado?
Fica menos complicado com o exercício de reflexão sobre as situações e os acontecimentos, em uma perspectiva de valores que transcendem a materialidade e o imediatismo. A percepção da impermanência ajuda a diminuir a importância daquilo que não é essencial. Quando você não está tão envolvida, é mais fácil compreender as diferentes visões de mundo e se resignar, caso a sua possibilidade de intervir seja mais restrita do que você desejaria.

Como a escola pode contribuir para a formação de cidadãos?
As crianças vão para a escola cada vez mais cedo. Com a universalização do acesso à educação infantil, a partir dos quatro anos de idade, os pequenos brasileiros gastarão na escola, em contato com educadores e companheiros da mesma idade, pelo menos a quarta parte do tempo que passam acordados — isso, em fase de acelerado desenvolvimento psicobiológico. Não seria, então, a escola a comunidade ideal para o exercício de habilidades que servem como blocos de construção da cidadania, como autocontrole, reconhecimento do ponto de vista do outro, trabalho em equipe e negociação de interesses conflitantes? 

Edna é co-autora de diversos livros sobre a importância de uma educação mais humana nas escolas

Texto: Pâmela Silva
Fotos: Julio Sian

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