Nos bastidores dos vinhos

Nos bastidores dos vinhos

Protagonista de diversas ocasiões, o vinho é o personagem central do bate-papo entre Marco Antônio Tegano e André Luiz Alves Ligeiro, que conversam sobre os inúmeros encantos da bebida

Para André, o principal aspecto do vinho é a partilha, não apenas do líquido, mas do momento, da amizade e da convivência que ele proporcionaHá cerca de 11 anos, o Procurador da Fazenda Nacional, André Luiz Alves Ligeiro, se encantou com o mundo dos vinhos. Desde então, passou a encarar a bebida como uma ferramenta para descobrir outras culturas, aprimorar conhecimentos e explorar os sentidos. Além de apreciar a bebida frequentemente, André passou a estudar em livros e sites especializados, além de participar esporadicamente de degustações promovidas por importadoras e lojas especializadas.

Foi justamente por causa de uma confraria que André conheceu o sommelier Marco Antônio Tegano. Os dois sabem que a bebida enriquece muito mais as criações gastronômicas – seja como acompanhamento ou como ingrediente. O vinho está intimamente ligado, também, à cultura e à história, assim como à própria capacidade humana de se relacionar com o outro. Os amantes de vinhos que se tornaram amigos também compartilham o gosto por viagens, cada vez mais pautadas pelas curiosidades vinícolas. Desde 2008, André passou a incluir em suas viagens de lazer algumas visitas a regiões produtoras e vinícolas pelo mundo. Esteve em países como Chile, Argentina, França e Itália. Marco, que esteve nos principais produtores da América do Sul, possui também um profundo conhecimento sobre vinhos brasileiros.

Na entrevista a seguir, a dupla revela que o vinho aguça os gostos extremos do ser humano, realçando sentidos como olfato e paladar, além de trazer à tona sentimentos antes desconhecidos.

Marco: Como nasceu seu interesse pelo vinho?
André:
O meu interesse pelo vinho começou há 11 anos. O primeiro contato foi em supermercados, onde costumava adquirir os rótulos que consumia, que foram gerando mais curiosidade. Passei a querer entender um pouco mais do assunto para conseguir apurar minha percepção das diferenças entre os vinhos, saber por que um vinho era mais famoso que o outro ou considerado de melhor qualidade. Ao mesmo tempo, comecei a pesquisar o tema em livros e a participar de confrarias. À medida que eu buscava informações sobre vinhos, apreciava cada vez mais. Assim me tornei um consumidor assíduo.
 
Marco: Automaticamente, o vinho nos remete a harmonizações. Como você vê essa ligação?
André:
Não é um preocupação que mantive nesses últimos anos, pois, geralmente, quando saio para degustar um vinho, vou a lugares onde a cozinha é reconhecida, comandada por chefs dedicados. Assim, a harmonização acontece quase naturalmente. Quando faço uma reserva em um restaurante, é bem provável que eu já saiba quais os pratos e rótulos que gostaria de experimentar. Obviamente, essa facilidade não surgiu de uma hora para outra, mas resultou de um processo de aprendizado. Sem dúvida, a harmonização é importante, principalmente quando estamos diante de um grande vinho ou de um grande prato. A atuação do sommelier é imprescindível e os apreciadores não devem exitar de consultar um desses ótimos profissionais que atuam nos restaurantes. Sempre é possível obter do sommelier a indicação de um vinho apropriado e que seja adequado ao “bolso” do consumidor.
 
Marco: Como as confrarias auxiliam aqueles que querem conhecer mais sobre os vinhos?
André:
As confrarias são sempre uma oportunidade para a troca de ideias e de experiências. Foi em um desses encontros que meu desejo por saber mais sobre vinhos foi despertado. Comecei a buscar em livros e em visitas a vinícolas as informações que queria. Hoje divido as descobertas com os colegas de confraria.
 
Marco: As viagens são uma forma de aprimorar o conhecimento sobre os vinhos. Nelas, podemos ver a diferença entre as uvas, a geografia e outros detalhes. Como foram algumas de suas experiências em viagens?
André:
Na verdade, quando avaliamos nosso conhecimento sobre vinhos, adquirimos ensinamentos sobre outras áreas, como história e geografia, muito diferente de quando consultamos um livro. A viagem às regiões produtoras nos proporciona o contato com o lugar, a história daquela família que vem produzindo determinado vinho por várias gerações, da vinícola. Sempre, em uma viagem de férias, eu defino os lugares ou países a visitar e, então, tento incluir nesse roteiro a passagem por regiões produtoras e visitas a vinícolas. Por exemplo, a minha última viagem foi para a Hungria, mais precisamente, para a região de Tokaj, que eu já tinha ouvido falar muito. Antes do embarque, pesquisei muito sobre o local, mas, ainda assim, fiquei surpreso ao chegar lá. Ao vivo, entendi o relevo da região, a influência sobre a produção da uva, assim como o clima e como ele interfere nesse processo. Mesmo que a visita não ocorra na época exata da colheita, foi possível captar certas informações de solo, de relevo e de temperatura que só conseguimos visitando o lugar. Além disso, temos a liberdade de escolher viagens especificamente voltadas para o vinho — eu, particularmente, optei por visitar um determinado país e abrir espaço para conhecer mais de perto a produção de um vinho.
 
“O vinho é muito mais do que uma simples bebida; ele carrega uma história em sua composição”, acredita AndréMarco: Você visitou a Borgonha, na França, conhecida por produzir apenas duas uvas: a tinta Pinot Noir e a branca Chardonnay. O que observou de seu terroir — que significa toda a influência que clima, solo, relevo e outros elementos têm sobre o vinho?
André:
Em uma viagem pela França, aproveitei para visitar a Borgonha. Eu mesmo organizei a viagem, entrei em contato com as vinícolas e, com a ajuda de uma operadora de turismo, escolhemos os hotéis. Aluguei um carro em Nice, no sul da França, e fui dirigindo até chegar a Paris. Um dos lugares que me hospedei foi Dijon, onde conheci a rota dos vinhedos e aproveitei a lindíssima paisagem. Durante o trajeto, avistei inúmeras parreiras e vivi uma experiência única: estar nas fronteiras de um determinado terroir, conhecendo um produto e, depois de andar poucos metros, ver tudo diferente. Parecia estar no mesmo lugar, mas para fins de apuração do terroir, estava em outro tipo de vinhedo, que nutria outra qualificação. Nessa viagem percebi também a topografia, a amplitude e a inclinação do terreno. Tudo isso influencia tanto a viagem quanto o conhecimento sobre vinhos.
 
Marco: Nós, brasileiros, começamos a aprender a degustar vinhos com os países da América do Sul, principalmente, Chile e Argentina, que são os mais consumidos no Brasil até hoje. Você já teve a oportunidade de visitar nossos vizinhos? Qual a sua visão sobre os vinhos desses lugares?
André:
Comecei viajando para vinícolas do Chile. Conheço o Vale de Aconcágua e o Vale do Maipo, regiões famosas e fáceis de visitar. Foi um passeio de um dia, com almoço em Santa Cruz e duas vinícolas no roteiro, a Viu Manent e MontGras. A língua ajuda muito nessas visitas, que costuma ser bem detalhada. Esses países estão a poucas horas de viagem, têm importantes regiões produtoras e vinhos de grande qualidade. Dois anos depois, fui para Mendonza, na Argentina, onde foi ainda mais fácil visitar vinícolas, que estão bem próximas da cidade. Além da facilidade do idioma, é uma cidade de fácil locomoção, com inúmeros passeios. Estive em quatro vinícolas pela empresa de turismo e em outras três por minha conta, que agendei nos intervalos entre os passeios.

Marco: Quais vinhos mais te encantaram nos passeios que já fez?
André:
Não costumo eleger vinhos preferidos. Isso para não nutrir preconceitos. Bebo vinho nacional, vindos do Novo Mundo — como Chile, Argentina, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia —, assim como consumo rótulos do Velho Mundo, como Itália, França, Espanha e Portugal. Grande parte das sugestões de vinhos que poderia fazer está intimamente ligada às minhas viagens, ao estado de espírito que cheguei naquele lugar, à paisagem que vi. Então, considerando o aspecto humano da bebida e o reconhecimento da determinada região, posso dizer que alguns vinhos me marcaram bastante, como os franceses Château Haut-Brion. A Borgonha me apresentou o Domaine Michel Lafarge, um vinho biodinâmico na origem. Do Novo Mundo, elegeria um rótulo da Viu Manent, no Vale de Aconcágua, no Chile. Sempre ressalto que, em algumas ocasiões, apreciei vinhos do mesmo patamar de qualidade em degustações, porém, a bebida mais marcante vai depender do momento em que ela foi degustada.

Marco: Relacionando o aspecto humano ao seu conhecimento sobre vinhos, quais foram as viagens mais marcantes?
André:
Quando visitei a região de Bordeaux, tive a oportunidade de visitar o Château Lynch-Bages e o Château Haut-Brion — este segundo me marcou muito, pois fui à Bordeaux fora da estação da colheita, então, tive o privilégio de fazer um tour privado. Assim, a recepcionista do Château teve todo o tempo do mundo para me explicar a história, o terroir, as fases pelas quais o local passou, o replantio das uvas, um pouco da natureza, entre outros aspectos. Na Borgonha, onde tive a oportunidade de provar o vinho Domaine Michel Lafarge, fiz questão de ir até a adega, que fica no subsolo do lugar, onde o vinho é engarrafado. Na ocasião, quem me atendeu foi a esposa do produtor, que apresentou a adega com aproximadamente a idade da época em que a Borgonha era um Ducado, ou seja, eu estava pisando num chão do século XV. Essas foram degustações marcantes não apenas pelos vinhos, mas, principalmente, pela oportunidade de provar em um lugar histórico.

A jornalista Pâmela Silva acompanhou o bate-papo entre os apreciadores da bebidaMarco: No dia a dia, que estilo de vinho nunca falta na sua adega?
André:
Cerca de 80% de vinhos da minha adega são tintos. Estou tentando comprar a maior parte do Velho Mundo, de países como Itália, França e Espanha, pois acredito que ele seja um desafio para o conhecedor.

Marco: A qualidade dos espumantes brasileiros tem sido cada vez mais reconhecida. Como os avalia? Já teve a oportunidade de degustar algum rótulo?
André:
Tenho alguns espumantes nacionais em casa e já experimentei. Embora ainda não tenha tido a oportunidade de visitar uma região produtora, posso dizer que são de altíssima qualidade. Em viagens que fiz à França, pude degustar espumantes franceses em lojas e restaurantes. Na comparação com nosso país, acredito que o Brasil avançou muito na qualidade — inclusive, já encontrei vinhos e espumantes brasileiros em lojas da Europa.

Marco: Para você, a degustação também é um momento de confraternização?
André:
Acho que o principal aspecto do vinho é a partilha, não apenas do líquido, mas do momento, da amizade, da convivência. Inclusive nas viagens, sempre tento encaixar uma oportunidade para conhecer os produtores, prestar atenção em quem vai cuidar do vinho produzido e as pessoas que o consomem. Ao analisar dessa forma, percebe-se que o vinho passa por várias mãos antes de chegar à mesa do consumidor.
 
Marco: Que dicas daria para quem começa a caminhar neste universo e quer se aprofundar?
André:
Beber o vinho com moderação, mas regularmente; não se preocupar no primeiro momento em apreciar os rótulos mais caros, pois temos sempre uma faixa de preço de entrada. No começo, o leigo não precisa apreciar os vinhos de alta gama, porque, antes, terá que adaptar o paladar. Ler sobre a região e o produtor é uma boa sugestão, todavia, tendo a convicção de não focar apenas no estudo, para evitar se tornar um “enochato”. É importante ter em mente que vale a pena aproveitar os vinhos para trocar experiências com as pessoas, curtir o momento e não ficar tão preocupado com a harmonização, até porque, logo, o iniciante verá que a harmonização nunca é exata como a de um sommelier, que é profissional. A intuição tem muito valor.

Marco: O que mais o interesse pelos vinhos trouxe a você?
André:
Em decorrência do meu interesse pelo vinho, surgiu também a atração por estudar outros idiomas, o que uso até na minha profissão. A partir do nível de conhecimento que obtive do idioma italiano, lendo sobre vinhos, por exemplo, pude fazer um curso jurídico em Roma. Então, uma questão leva a outra. Hoje, tenho um bom nível de conhecimento em francês e italiano, além de um pouco de alemão e o inglês, que eu já conhecia. História e geografia também passaram a fazer parte do meu repertório. Não precisamos focar nossa atenção exclusivamente nos livros para aprender sobre vinhos, mas, no meu caso, que já gosto de estudar, isso aconteceu automaticamente.

Marco: Na terra do chope, tem espaço para o vinho?
André:
Sem dúvida, principalmente, para o vinho branco e o espumante, por causa do nosso clima. Visitando a Áustria, onde não consegui conhecer algumas vinícolas que desejava, vivi uma experiência fantástica tomando um vinho em pleno verão europeu, que é relativamente parecido com o nosso. Cheguei a um restaurante em Viena, pedi um vinho branco da casta Grüner Veltliner, uva que até então eu desconhecia, com baixo teor alcóolico, e provei uma bebida extremamente refrescante, totalmente apropriada para o clima daqui, desde que servida na temperatura correta. Mesmo que um vinho seja tinto, ele tem espaço por aqui — graças ao ar condicionado (risos). 

Vinho além da gastronomia

“O relato do André das viagens que ele já fez me mostrou que o vinho vai além do líquido que se encontra em nossas taças, mas remente à história de um povo, uma cultura que vem passando por gerações. Ao abrir uma garrafa de vinho, descobrimos um mundo inteiro. O vinho é muito mais do que uvas: sua maior alquimia é o universo que o vê nascer. É isso que torna o vinho único.” Marco Antônio Tegano, sommelier.

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