A nova ordem mundial

A nova ordem mundial

Em entrevista concedida à jornalista Elivanete Barbi, a historiadora Sandra Molina traz à luz os fatos que culminaram no desequilíbrio entre Oriente e Ocidente

Diariamente, as pessoas se assombram diante dos noticiários, incapazes de compreender com clareza os fatos que eclodem da nova ordem mundial: a violência, com contornos medievais, que surge no Oriente, os atentados terroristas que deixam em alerta todas as nações e o desalento de milhares de refugiados de guerra que batem às portas da Europa, em busca da sobrevivência. 

Para lançar uma luz sobre as complexas e obscuras relações políticas, econômicas e de poder que envolvem as grandes potências e as nações do Oriente, a jornalista Elivanete Zuppolini Barbi entrevistou a historiadora Sandra Rita Molina, professora universitária e conselheira do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC). Conduzida pelas questões, Sandra traça uma trajetória histórica, que remonta ao século XVIII, para explicar como se desenvolveram essas conexões perversas que culminaram no desequilíbrio mundial que se tornou mais evidente no século XXI, com o fortalecimento e as ações contundentes dos grupos extremistas. 

Elivanete: O que está acontecendo no mundo? O que houve em Paris?
Sandra:
Os acontecimentos de Paris são frutos de um processo de descomprometimento, de descaso e de não olhar para o outro lado por parte das grandes potências mundiais. É a crônica de uma morte anunciada. A Europa está vivendo um processo de pressão radicalizado, a partir de 2014 e, em especial, de 2015, por essa migração em massa dos refugiados de guerra. Como as potências mundiais se recusaram ver o que acontecia do outro lado do mar, era óbvio que esse desdobramento, em algum momento, chegaria à Europa. 

Elivanete: A senhora remete a atual conjuntura ao neocolonialismo europeu no Oriente Médio e na África, no final do século XIX e início do XX. Explique essa relação.
Sandra:
Grande parte dessas nações, que vivem a guerra civil e faz com que essa quantidade imensa de pessoas abandonem  seus lares em busca da sobrevivência, passou, no século XIX, pelo neocolonialismo ou imperialismo. Movidos pelas necessidades da Revolução Industrial, no século XVIII, e ao longo do século XIX, países europeus, em especial, França e Inglaterra, e mais tarde, a Itália e a Alemanha, dirigiram-se à África, ao Oriente Médio e à Ásia para conquistar mão de obra barata, mercado consumidor e produtor de matéria-prima. Esses territórios se tornaram colônias comerciais, que se mantiveram assim até o final da 2ª Guerra Mundial. Houve, então, um processo de descolonização, pois as metrópoles passaram a se preocupar em resolver os problemas econômicos causados pela guerra, seguido de um processo de independência da maioria desses países, como Argélia, Marrocos, Síria e Iraque. Ao se tornarem independentes, muitos não tinham condições de se estruturar, acabaram sendo aceitos pelo sistema internacional, devido ao cenário de Guerra Fria existente, e foram colocados como satélites, debaixo das asas dos norte-americanos ou dos soviéticos.

Elivanete: A herança política desses povos também os conduziu a essa nova realidade?
Sandra:
De certa forma, sim, porque países como a Síria e o Egito nunca tiveram uma república participativa plena. Eles têm uma trajetória de autoritarismo, de conservadorismo e acabaram se organizando de forma ditatorial porque essa é a cultura e a história deles. Quando as potências europeias dominaram a África e a Ásia, esqueceram-se de perguntar como era a cultura deles. O Ocidente chegou a esses lugares tentando implantar república e democracia, que não são necessariamente características de tais culturas. Esses países vivenciam um descompasso com o ocidente, mas são financiados pelas potências, por meio da venda de armas, de treinamento de exércitos particulares, o que, por um bom tempo, funcionou. O problema é que, em 2001, com o atentado às Torres Gêmeas, o cenário mudou. O próprio filósofo, Noam Chomsky, comentou que as pessoas falam sobre o ato de terrorismo em Paris, mas não percebem que há um terrorismo muito pior do que este, que é a guerra no Iraque, iniciada após o atentado. 

Elivanete: Esse quadro que acabou de relatar resulta no que você costuma denominar de conexões perversas. Explique melhor esse conceito. 
Sandra:
Como aconteceu no Iraque e na Síria, há um processo de globalização e de fim de guerra fria, a partir da década de 90. A cadeia produtiva internacional mudou completamente, e já não há mais controle de onde vem o que se consome. Estados estruturados, como grande parte dos países da Europa Ocidental, ganham muito dinheiro com essa situação. Os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos tendem a ficar à margem dessa globalização e dessa cadeia produtiva internacionalizada, e suas populações sofrem com isso, acabam se tornando mão de obra barata. A partir de 2001, houve uma movimentação nessa estrutura: os atentados movidos pela Al-Qaeda geraram por parte dos EUA a resposta de, primeiro, invadir o Afeganistão e, depois, o Iraque. O resultado é que o empobrecimento gerado pelo processo da industrialização se acentuou, já que são países com governos ditatoriais, despreocupados com a redistribuição de renda e com a justiça social. Quando uma população empobrecida se envolve em um processo de guerra, acontece a tempestade perfeita do mal. Daí surgiu a série de refugiados. Hoje, falamos de 129 mortos na França, mas milhões já morreram nos ataques no Afeganistão e no Iraque. Desses grupos que sobreviveram, milhares de pessoas se deslocaram internamente e outros grupos se tornaram refugiados de guerra, e estão buscando uma saída na Europa, que é o lugar mais próximo. 

Elivanete: É correto dizer que a situação da Síria é análoga à do Iraque e à do Afeganistão?  
Sandra:
Sim, a Síria passa pela mesma situação. A partir de 2010, houve uma movimentação dos países árabes, a Primavera Árabe. Essa movimentação acontece quando os estados árabes começam a querer mudança, não aguentam mais a desigualdade e o empobrecimento trazidos pelas conexões perversas e pela globalização, associadas aos governos ditatoriais. A Primavera Árabe começou na Tunísia e se espalhou  por todo o Oriente Médio, chegando a territórios, como o sírio, que já viviam essa situação de empobrecimento e desigualdade. Nesses territórios, a população quis tirar o ditador, sem sucesso, e o processo de reivindicação social acabou se transformando em uma guerra civil. Os sírios, então, passaram a buscar a sobrevivência na Europa, gerando uma crise no próprio continente, já que, a partir de 2008, o mundo inteiro entrou em um processo de endividamento. Muitas dessas potências não se sentem capazes de interferir para trazer soluções à Síria e ao Iraque.  Os norte-americanos estão tentando sair de lá desde 2008 e não conseguem. Houve, então, um aumento do número de refugiados que tentam entrar na Europa, que já não está mais preparada para recebê-los: está endividada, passa por uma crise política interna e enfrenta problemas com movimentos de extrema direita que se opõem à chegada de estrangeiros. Uma coisa é receber estrangeiros na época da reconstrução da 2ª Guerra Mundial, quando precisam de mão de obra barata, outra situação é fazê-lo agora, que a mão de obra nacional virou mão de obra barata. Os estrangeiros passaram a ser mal vistos, mas os europeus têm que abrigá-los, pois, se os mandarem embora, sabem que irão morrer. Na França também há um grande número de argelinos e de marroquinos, porque eles foram colônias francesas. Quando eles se tornaram independentes, suas populações começaram a migrar aos poucos, a partir da década de 60. Hoje, há muitos franceses com ascendência marroquina e argelina, que vivem na França, mas são considerados cidadãos de segunda classe por serem muçulmanos, pessoas facilmente cooptadas pelos grupos extremistas.   

Elivanete: Grupos como o Isis, a organização jihadista no Oriente Médio, ou o Boko Haram, na África, são organizações extremamente radicais. Como explicar o surgimento de extremistas desse nível neste momento histórico?
Sandra:
Vivemos um mundo em guerra, e discutir justiça social é uma ação vista de forma muito preconceituosa em algumas realidades. Na Europa há o seguinte descompasso: grupos de extrema direita querem preservar um modelo de vida europeu, o que não é mais possível, e não querem concorrência com os descendentes de migrantes. Na Alemanha, querem que só os trabalhadores alemães, de ascendência alemã de longa data permaneçam ali. Eles pedem políticas conservadoras para impedir a entrada de estrangeiros, mas, em nenhum momento, desejam que as mercadorias deixem de circular —não querem a circulação de gente, mas querem a circulação de dinheiro, que é o que a globalização traz. Isso é muito conveniente. De outro lado, processos de ataques e coalizões no Oriente Médio e na África acabam culminando com o surgimento de grupos extremistas, como a Al Qaeda, criada por Osama Bin Laden no final da Guerra Fria, dentro do Afeganistão. Onde nasceu o Isis? No Iraque, no Afeganistão. De quem é a culpa? Das potências que foram a esses países. Muitos desses grupos radicais nasceram em prisões do Iraque. A diferença do Isis em relação aos demais grupos radicais é que ele tem um projeto político de califado. O grupo nasceu da guerra no Iraque, do vazio de poder que ficou no Iraque e na Síria, mas, ao mesmo tempo, busca uma estética medieval: decapitar, esfolar. Quando afirma que vai montar um califado mundial, domesticar e conquistar a sociedade judaico-cristã, age como alguém que se apropria de um trecho e faz uma leitura equivocada do Alcorão, mesmo sendo o Islamismo uma religião pacifista. Mas, ao mesmo tempo em que remete à Idade Média, o Isis é moderno porque usa táticas atuais, como a internet; faz filmes de publicidade que são baseados na estética de jogos eletrônicos. Quem o Isis tenta cooptar? Os jovens.  Jovens que estão na Síria, no Iraque e viram suas famílias explodirem, sofreram com a guerra. Também os jovens belgas e franceses, que estão migrando para esses grupos radicais porque são vistos como cidadãos de segunda classe ou porque o Isis está transmitindo a eles alguma mensagem que a sociedade em que vivem não envia mais. 

Elivanete: Quem financia o Isis?
Sandra:
Um monte de gente. O grupo é financiado pelos poços de petróleo da região que dominam no Iraque. Para acabar com o Isis é preciso descobrir que países estão comprando esse petróleo e quais estão vendendo as armas para ele. Se a humanidade não está vivendo a Guerra Fria e nenhuma guerra mundial, porque há tantas indústrias de armas? Porque elas dão muito dinheiro. Elas financiam políticos nas grandes potências — boa parte dos congressistas norte-americanos é financiada pelas indústrias de armas ou por interesses das grandes corporações. Se não há guerra, armas se tornam desnecessárias, mas o fechamento dessa indústria armas nunca vai acontecer. O financiamento da Al Qaeda vem, entre outras coisas, do tráfico de heroína, que não é controlado porque mexe com grandes interesses. A tendência do Isis é se fortalecer porque não temos controle sobre ele, que não é só o estrangeiro. Para a mídia europeia, o Isis é fruto da migração síria e do Oriente Médio para a Europa. Então, como explicar um belga liderando um atentado?  Há que se pensar nessa nova forma de sociedade que está sendo criada.

Elivanete: Suas reflexões nos remete à globalização, que permitiu a geração de um capital volátil, sobre o qual não se tem controle; também ao processo neoliberal que visa a um mercado pulsante, mas gera empobrecimento e exclusão; e à deep web, por onde se movimentam esses grupos radicais, circulam informações, inclusive dinheiro, sobre a qual também não se tem controle. Diante desse cenário, quais são as perspectivas?  
Sandra:
O mundo, hoje, está mais complexo e as categorias, antes utilizadas para explicar esse mundo, não são mais viáveis. Na década de 90, o pensador Milton Santos observou que a globalização tem três versões: uma mostra que é possível comprar tudo e ter tudo; outra aponta que isso é possível para aqueles que fazem parte do sistema, quem for marginal a ele sofrerá de fome, desigualdade e miséria; e a terceira versão é o que a globalização pode vir a ser, se for usada para promover a justiça social. Amartya Sen diz que a pobreza não é falta de dinheiro apenas, mas a falta da possibilidade de escolha do que faremos com nossas vidas. Nesses países, não existe essa possibilidade de escolha. O máximo que eles conseguem escolher é: vou atravessar o Mediterrâneo e morrer na travessia ou vou ficar e morrer no meio do combate. Talvez seja o momento de o sistema internacional dos estados refletir que talvez não seja apenas com armas que se resolve essa questão. Talvez seja preciso voltar atrás e reconstruir a sociedade, as instituições à maneira deles, sobre as bases da cultura deles, respeitando sua diversidade para que encontrem um caminho de maior equidade e possibilidade de sobrevivência. Se o homem não pode sonhar com os próximos anos e com o futuro de seus filhos, não há razão para viver. Essa é uma realidade iminente para grandes parte das pessoas que se torna homens-bomba. Uma pesquisa feita na Palestina mostrou que a grande maioria deles que se submeteu a isso tinha acabado de passar por um sério impacto emocional antes de se tornar um homem-bomba: havia perdido a família ou a vida que tinha. É importante que as pessoas parem de olhar esses grupos como se fossem simplesmente loucos. Eles não são loucos. Temos que ter racionalidade para compreender a realidade de onde eles vêm e por que eles se formam. Só assim encontraremos alternativas para drenar a força deles. Não será com bombardeios que conseguiremos isso. Talvez, se o sistema internacional se comprometer realmente com o que está acontecendo, consigamos sair dessas conexões perversas e criar uma realidade mais construtiva para o futuro. 

Elivanete: Para os brasileiros e para a América-Latina, quais são as perspectivas? Como somos afetados por esse cenário? 
Sandra:
Sempre somos afetados. Quando acontece qualquer movimentação no Oriente Médio, a primeira coisa que muda é o preço do petróleo, e isso afeta toda a logística de produção no Brasil, por exemplo.   
Também somos afetados porque começamos a receber imigrantes. A lógica de imigração no Brasil remete ao século XIX, com a chegada dos nossos avós e bisavós. Naquela época, partia-se do princípio de que havia muita terra. Os imigrantes eram brancos, de olhos claros. Chegou há pouco uma leva de imigrantes haitianos que não foram tão bem aceitos em todos os lugares onde estiveram. Esse é um momento de reflexão do Brasil, que tem um discurso formado sobre a própria cordialidade e tolerância, que questiono profundamente. Nossa sociedade precisa repensar seus conceitos porque será inevitável ser tocada por essa movimentação que está ocorrendo. Eventualmente, muitos desses refugiados de guerra virão para cá. Será que, no Brasil, não começarão a radicalizar? Se já há uma dificuldade de equidade social no país entre os próprios brasileiros, quem dirá quando vierem os imigrantes. Talvez seja o momento do país pensar que bases de política quer fazer; se vale à pena continuar com tanta corrupção; até onde essa corrupção vai levar. Se não nos organizarmos internamente, será muito difícil superar os desafios dessa nova ordem mundial. 

Uma perspectiva histórica 

“Mestre pela Unicamp, doutora pela USP, professora titular na Unaerp, pesquisadora do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPICCIC), Sandra Rita Molina é uma historiadora nata. Seu raciocínio vai percorrendo séculos em busca de fatos que eclodem agora, mas começaram lá atrás. A tentativa é amenizar a estupefação e tentar compreender o movimento da humanidade na construção de sua trajetória. ‘Tudo começa em algum lugar lá atrás’, diz Sandra. O recente atentado de Paris, as crianças sírias afogadas no Mediterrâneo, o extremismo dos grupos islâmicos, a possibilidade de ascensão de grupos de extrema direita: todos esses acontecimentos são historicamente explicáveis. A pesquisadora tenta, freneticamente, traçar uma linha histórica que começa no final do século XIX e chega a Paris, em 13 de novembro de 2015. Seus olhos vão e vêm, entre o neocolonialismo no Oriente Médio, a queda do Muro de Berlim, o Boko Haram na Nigéria e as mortes no Bataclã, na França.” Elivanete Zuppolini Barbi, jornalista.

Texto: Carla Mimessi 

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