Olhar multifatorial para a dor

Olhar multifatorial para a dor

Entender todas as fases, os mecanismos e as implicações dessa patologia, segundo o neurocientista Renato Leonardo de Freitas, constitui um dos maiores desafios da Medicina atual

Em sua função vital para o corpo humano, a dor envolve receptores sensoriais (nociceptores) e o sistema nervoso central para transmitir mensagens ao cérebro. Esse complexo mecanismo tem fundamental importância na indicação que algo está errado e pode ajudar o médico na investigação de uma doença. Em suas mais complexas faces e fases, a dor pode ser aguda ou crônica e, em cada uma das etapas, tem um ponto importante de controle e de recuperação.

“Aproximadamente entre 60 e 70 milhões de brasileiros sofrem de dor crônica”, estima RenatoCom causas multifatoriais, essa patologia atinge de 30% a 40% da população brasileira e pode prejudicar a qualidade de vida e a capacidade funcional do indivíduo, de acordo com dados da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED). Causas mecânicas, traumas, impactos, torções, alimentação, intoxicações, patologias e outros tantos fatores podem contribuir para a origem da dor e devem ser compreendidas, se houverem. Todos os pontos de identificação, controle, recuperação e implicações são motivos de intenso estudo do neurocientista Renato Leonardo de Freitas.

Coordenador do Centro Multiusuário de Neuroeletrofisiologia e do Laboratório de Dor &e Emoções da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP-USP), Renato aponta que o sucesso do tratamento depende quase exclusivamente do bom diagnóstico médico. Reconhecer os mecanismos de ocorrências e adotar novos hábitos e comportamentos, assim como conhecer as novas medicações e técnicas de controle contribuem, segundo Renato, para  o fim da dor. 

O neurocientista aponta alguns raciocínios clínicos adotados com base nas ciências de saúde. Este será o tema central da segunda edição do “Simpósio Medicina da Dor: da ciência básica à clínica”,  que acontecerá nos dias 23 e 24 de novembro, no Stream Palace Hotel, em Ribeirão Preto.

Revide: A dor crônica acomete parcela significativa da população brasileira. Saberia quantas pessoas, no país, sofrem com o problema?
Renato:
Estima-se que até 30% da população mundial sofra de dor crônica. De fato, pacientes com este tipo de dor utilizam os serviços de saúde cinco vezes mais do que o restante da população. No Brasil, não há um estudo epidemiológico que englobe todas as regiões do país. De modo geral, estima-se que a dor crônica acometa entre 60 e 70 milhões de brasileiros. Alguns estudos, realizados em determinadas capitais brasileiras, como, em São Paulo e Salvador, relatam que 28,1% e 41,4%, da população dessas cidades, respectivamente, passa pela dor crônica. Esses relatos refletem o problema do país, mas certamente devem existir particularidades.

Em relação à intensidade, como a dor se divide?
Basicamente, em aguda e crônica. A primeira começa de repente e perdura por até alguns dias, estando geralmente relacionada a afecções traumáticas, infecciosas ou inflamatórias. Quando o agente indutor é identificado e removido, a dor cessa. Neste contexto, corresponde a um sintoma muito importante para o diagnóstico de várias doenças, sendo a principal causa de procura de cuidados de saúde pela população em geral. A dor aguda possui caráter adaptativo, sendo útil em muitas circunstâncias, contudo, deve ser combatida de forma a não se perpetuar e a não se tornar uma dor crônica. 

A dor pode ser provocada pela própria intervenção dos profissionais de saúde?
Sem dúvida, isso pode ocorrer até durante os procedimentos diagnósticos ou nas terapêuticas cirúrgicas, a chamada dor aguda pós-operatória. Neste caso, o controle é fundamental não só por razões éticas, mas para evitar o sofrimento desnecessário do paciente, além de reduzir o risco de complicações pós-operatórias, como as infecções respiratórias ou as tromboses venosas dos membros inferiores. Estas medidas podem reduzir o tempo de internação dos doentes. O mesmo se aplica à dor associada ao trabalho de parto.

A dor crônica tem causas bem definidas também?
Esta, geralmente, classifica-se como uma dor persistente ou recorrente, que acontece durante, pelo menos, de três a seis meses. Muitas vezes, a dor persiste para além da cura da lesão que a originou ou existe sem um ferimento aparente. A dor crônica não oferece qualquer vantagem para o doente, pelo contrário, além do sofrimento que causa, tem repercussões na saúde física e mental do indivíduo, levando-o, por exemplo, a alterações do sistema imunitário, com consequente diminuição das defesas do organismo e aumento da susceptibilidade a infecções. Normalmente, não há respostas neurovegetativas associadas ao sintoma, mas, ansiedade, depressão e fadiga intensa são respostas frequentes neste tipo de dor. Desta forma, pode prejudicar a qualidade de vida e a capacidade funcional do indivíduo.

Quais são as principais causas? 
São multifatoriais e variam de acordo com a origem, sendo eles predisposição genética, esforço repetitivo, má-postura, idade, peso, sedentarismo, entre outros. A dor crônica de origem neuropática pode começar devido a uma lesão do nervo, como no caso de traumas. Além disso, pacientes que relatam ansiedade e depressão durante a dor crônica mostraram sofrimento mais severo e incapacidade relacionada à dor. Embora os fatores causais não estejam ainda claros, os questionamentos em torno da questão são feitos na direção de identificar se as desordens psiquiátricas causam o desenvolvimento de dor, se pode gerar desordens psiquiátricas ou ser uma co-ocorrência complexa. Algumas evidências indicam que condições psiquiátricas podem levar a um estado de saúde crônico, tal como a dor. 

Em Nápoles (Itália), onde Renato e um grupo de pesquisa possui a colaboração internacional do professor Sabatino Mainone, do Departamento de Medicina Experimental, Seção de Farmacologia L. Donatelli, na segunda Universidade de NápolesAs estruturas cerebrais influenciam neste contexto?
Na realidade, o que de fato sabemos é que aspectos físicos e emocionais da dor engajam-se numa intersecção de estruturas e vias neurais comuns no cérebro. Atualmente, há diversos testes em animais realizados no Laboratório de Dor & Emoções (LDE), na Faculdade de Medicina sendo empregados na investigação das bases neurais, fisiopatológicas e psicofarmacológicas das comorbidades, entre dor crônica com outras desordens psiquiátricas. Nesse trabalho, a constrição crônica do nervo isquiático de roedores é realizada para induzir a dor neuropática crônica. A resposta de alodinia mecânica e da hipersensibilidade ao frio e ao calor são aumentadas, evidenciando estabelecimento da dor neuropática. Adicionalmente, observa-se nesses animais o aumento das respostas comportamentais relacionadas a depressão, ansiedade e pânico. Outra evidência está no declínio da atenção e da memória, identificado após realização de um teste de reconhecimento do objeto. 

Estes testes podem contribuir para indicar novas estratégias de tratamento?
Segundo dados experimentais do LDE ainda não publicados, o córtex pré-frontal medial parece ser recrutado para a elaboração, tornando-se o elo das comorbidades mencionadas acima. De fato, os testes que abordam estudos multidisciplinares eventualmente podem propiciar a elaboração de novas e refinadas estratégias para o tratamento da comorbidade entre dor crônica com outras desordens neurológicas.
            
A dor é motivo de afastamento do trabalho?
Sim, como sabemos, ela é uma sensação desagradável e prejudicial que ocasiona declínio cognitivo, comportamental e emocional. Esta sensação nos faz sentir ou nos torna incapazes de realizar tarefas rotineiras, tais como aquelas que são conduzidas nos trabalhos ou em outras atividades.

Acredita que falta conhecimento com relação ao manejo da dor na equipe de saúde?
A maioria dos pesquisadores da dor crônica estuda como uma experiência sensorial. Eles entendem que, se reduzirmos a dor física, o paciente se sentirá melhor. Todavia, entendemos que devemos olhar tanto a dimensão física quanto a dimensão mental e psicológica no estudo da dor. Este constitui o ponto chave desta questão. Nos últimos anos, as equipes de saúde não têm somente se esmerado nos aspectos sensórios da dor, mas também nos cognitivos, emocionais e comportamentais decorrentes da dor crônica. 

Dor e emoção estão correlacionados no cérebro?
Considerando que os processamentos de dor e de emoção são entrelaçados no cérebro, entendemos que as terapias adjuvantes e comportamentais na realidade endereçam os mesmos mecanismos, tanto na dor quanto nas desordens psicológicas. Devido ao fato de a percepção de dor ser afetada pela cognição e pela emoção, poderíamos encontrar efeitos positivos dessas terapias tanto nos desfechos de dor quanto nos desfechos emocionais. O manejo e o tratamento da dor podem se beneficiar de algo tão simples quanto uma consciência aumentada dos estados emocionais nos pacientes. Monitorar tais emoções pode melhorar a eficácia do tratamento em pacientes sofrendo de dor. 

A dor está presente nas principais doenças?
Sem dúvida. Em 2003, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou um relatório com as dez doenças que mais matam no mundo, abaixo e acima dos 60 anos. São elas: AIDS, doenças cardíacas, cerebrovasculares e hepáticas, tuberculose, acidentes de trânsito, violência, infecções respiratórias, pulmonares e câncer. A questão que surgiu foi: "por que se preocupar com dor em um mundo cheio de doenças que matam?". A resposta da OMS e da Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) foi muito clara: porque a dor está presente em todas elas.

Falta atuação multidisciplinar dos profissionais da saúde focada no manejo da dor? 
Para avaliarmos e mensurarmos a dor, é necessário que haja maior integração entre as pesquisas nas áreas básicas — as que são realizadas principalmente nas Universidades, com as grandes clínicas e hospitais que focam seu trabalho no manejo da dor. Afinal, a dor é mais do que uma sensação e é preciso entendê-la muito bem para o seu eficaz manejo. De fato, aparentemente, todos concordam que a dor constitui uma experiência subjetiva, pessoal e multidimensional que envolve questões psicológicas, comportamentais, afetivas, cognitivas e sensoriais. Por ser um fenômeno multifacetado, a dor é também afetada pela experiência vivida e pela cultura. Assim, medir a intensidade da dor é de suma importância para os pesquisadores e para os clínicos, pois sua mensuração é essencial para a avaliação dos métodos que a controlam. A avaliação/mensuração da dor é um pré-requisito fundamental para o tratamento e a manipulação eficazes. Visto que a dor é uma experiência genuinamente subjetiva, apenas aqueles que a sentem podem determinar sua severidade e também a adequação para o alívio. 

Renato ao lado do filho, Leonardo, e da esposa, Priscila de Medeiros, pesquisadora do grupo e doutoranda no Departamento de Neurociências e Ciência do Comportamento na FMRP-USPComo mudar este quadro?
A dor deve ser considerada “o quinto sinal vital” e seu registro deve ser rotineiro, após temperatura, pulsação, pressão arterial e respiração. Esta é uma imprescindível responsabilidade clínica para minorar, adequadamente, o sofrimento dos pacientes sob cuidados. Uma equipe multiprofissional, considerando médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, etc, tornará esse objetivo, o manejo da dor, mais plausível e eficaz.

O Simpósio Medicina da Dor pretende mudar este parâmetro?
Assim como a dor, o evento que elaboramos também é multifacetado. Digo “multi” porque conta com a colaboração de palestrantes altamente renomados em diversas áreas, desde a pesquisa científica até a clínica. Nesta segunda edição, abordaremos desde dor neonatal, passando pela pesquisa básica e chegaremos até avaliação e mensuração da dor em pacientes com a fibromialgia, enxaqueca, dor neuropática, entre outras. Com o tema “Simpósio Medicina da Dor: da ciência básica à clínica.”, o evento acontecerá no Stream Palace Hotel, nos dias 23 e 24 de novembro, reunindo médicos, professores, pesquisadores e estudantes. Quem tiver interesse em participar, pode fazer a inscrição por meio do e-mail [email protected] ou nos dias do evento. O Simpósio idealizado pelo professor José Aparecido da Silva tem extensa programação de palestras e de aulas, que pode ser acessada na nossa página www.facebook.com/SimposioDor.

Em tempos de recessão, como foi possível oferecer inscrições gratuitas?
Estamos indo na contramão do cenário dos grandes eventos, pois não cobramos dos que desejam participar como ouvintes. Oferecemos dois dias com excelentes palestras gratuitas com temas de relevância em várias áreas médicas. Nesta edição, temos a perspectiva de crescimento e de maior adesão. Estão confirmados profissionais da saúde e pesquisadores de outras localidades, que arcarão com os próprios custos de viagem e estadia. Profissionais de extrema capacidade em Medicina e subáreas, como Dor, Neurociência, Psicologia, Fisioterapia, etc. Isso porque buscamos a parceria de empresas, órgãos representativos de classes e hospitais, por isso, agradeço a parceiros e apoiadores como a Insigth e a Bonther, que atuam na área comercial de produtos e de equipamentos científicos, Centro Médico de Ribeirão Preto, Hospitais São Lucas e Ribeirânia, entre outros. Foi exatamente esta união que tornou possível a realização deste evento.  

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