Passando a Educação a limpo

Passando a Educação a limpo

Os desafios para a consolidação de uma Educação transformadora estão na avaliação da proposta educacional brasileira feita por Noeli Rivas

Professora doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP), Noeli Prestes Padilha Rivas, atua no departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) e, desde setembro de 2017, coordena do Grupo de Apoio Pedagógico de Ribeirão Preto (GAPRP). Com mais de 30 anos dedicados ao estudo e ao ensino na área de Educação, compartilha parte do seu conhecimento na entrevista a seguir, onde comenta as perspectivas para a educação no Brasil.

Revide: Qual é a sua avaliação sobre a Educação no Brasil?
Noeli: O Brasil tem desenvolvimento tardio no que se refere à educação escolar, seja no âmbito da Educação Básica e suas modalidades, seja no âmbito da educação superior. O que significa educação como direito? Significa formação, humanização, desenvolvimento humano, acesso e apropriação da produção humana, saberes, conhecimentos, culturas, valores, identidades, enfim, sistemas de símbolos que expressam o desenvolvimento da humanidade em todos os aspectos. Conseguimos cobertura quase total no Ensino Fundamental (acesso das crianças de seis a 14 anos à escola), mas persistem assimetrias nas outras etapas da Educação Básica, principalmente, na Educação Infantil. Quanto ao Ensino Superior, a situação de acesso e qualidade ainda é preocupante, tendo em vista a política de financiamento, a insuficiente expansão das universidades públicas e a expansão descontrolada de cursos de graduação em EAD, sem a devida qualidade. Outros paradoxos dizem respeito à precarização das condições de trabalho do professor em todos os níveis e modalidades, bem como aos inúmeros documentos oficiais de políticas e diretrizes para a educação escolar discutidos, elaborados e aprovados, mas, muitas vezes, não materializados, tais como o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014).

Para Noeli, é preciso romper com o nivelamento por baixo e o esvaziamento das aspirações teóricas e intelectuais, relacionados à profissão docenteQual o maior desafio da Educação na atualidade?
Um dos maiores desafios da educação tem a ver com o movimento de internacionalização de políticas públicas para países emergentes ou em desenvolvimento, no contexto da globalização. As políticas são definidas e recomendadas por agências internacionais multilaterais, que atuam em diversos campos (monetário, comercial, financeiro e creditício). Tais recomendações incluem formas de regulação das políticas em decorrência de acordos de cooperação, principalmente, nas áreas da saúde e da educação. Não podemos deixar de considerar a internacionalização e a globalização como movimentos mundiais, mas, por outro lado, significam a modelação de sistemas e de instituições educacionais conforme suas expectativas supranacionais, definidas pelos organismos internacionais ligados às grandes potências econômicas mundiais. Estes organismos, com base em uma agenda globalmente estruturada para a educação, reproduzem documentos de políticas educacionais nacionais, como diretrizes, programas, projetos de lei, etc. Vivemos na América Latina e, como tal, temos uma cultura de resistência. Sabemos onde estão nossas idiossincrasias, portanto, considerando nossa história, temos condições de construir uma agenda de políticas públicas que nos ajude a superar a situação atual, a qual passa por um projeto de sociedade que inclui classes majoritárias da população brasileira, por financiamento da educação e por vontade política do poder público.

Qual sua avaliação sobre a Educação em Ribeirão Preto?
A cidade tem importância econômica, cultural e potencialidade em vários campos, porém, como a maioria dos municípios brasileiros, sofre revezes com a descontinuidade das políticas públicas. No que concerne ao ensino municipal, há possibilidades de reconstituir uma educação de qualidade (qualidade é um termo polissêmico, que abrange financiamento, carreira, gestão democrática, condições de trabalho, etc.), partindo de diagnósticos e ações que, há mais de 20 anos, são evidenciados. Por exemplo, há alguns anos comunidade educacional se mobilizou em torno da elaboração do Plano Municipal de Educação. Foi um movimento legítimo, que extrapolou os muros da escola, envolvendo a sociedade civil, identificando problemas e propondo soluções. A carreira do professor municipal sempre foi expressiva na região, mas corre riscos de precarização. Temos que considerar o professor e seus gestores como artífices do processo ensino e de aprendizagem. Penso que Ribeirão Preto oferece boa capacidade instalada para a educação profissional e superior, bem como se constitui em amplo campo de pesquisas, nas diversas áreas do conhecimento.

Quais os principais desafios para colocar em prática a proposta da Unesco de uma Educação no Terceiro Milênio?
Enquanto organismo internacional que atua no âmbito das políticas sociais, especialmente da educação, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) promoveu, em 1988, o debate “Educação para o Terceiro Milênio”. O relatório elaborado por Jacques Delors serviu de base para milhares propostas educativas ao redor do planeta, criando estratégias para o período 2011-2020 e orientando a educação em torno de quatro pilares do conhecimento. O primeiro, “aprender a conhecer”, diz respeito à aquisição de instrumentos de compreensão do conhecimento. “Aprender a fazer” situa-se no campo das estratégias, na ação que o sujeito deve ter. “Aprender a viver” tem a ver com a participação e a cooperação com os outros em todas as atividades humanas. Por último, “aprender a ser” representa via essencial que integra as três precedentes. Estes saberes possuem múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta, porém, estão inseridos num quadro de referência e de ferramentas para medir as habilidades e as competências da força de trabalho de um país. Há estreita vinculação neste documento entre educação e mercado de trabalho. Digo que tais pilares tangenciam a educação, enquanto proposta de humanização, ressaltam o individualismo, a competição e focalizam nas aprendizagens, o direito do sujeito. Para além das aprendizagens, há outros direitos a considerar.

Como avalia a inserção dos recursos tecnológicos na escola e a capacitação docente para a revolução tecnológica?
A tecnologia faz parte da vida moderna e, nesse sentido, não há contestação quanto ao seu uso. Por outro lado, os recursos tecnológicos devem se constituir em ferramentas para suportar o processo de ensino e aprendizagem. Questiono como os sistemas de ensino público estão equipando suas escolas, como estão sendo organizados os laboratórios, se há internet para todos, além de professores e técnicos da área. Pesquisas apontam que essas ferramentas estimulam e mobilizam os estudantes, porém, não há vontade política por parte do poder público ou, quando há, é insuficiente para atender a demanda. Nenhum professor quer se sentir fora deste contexto, mas são necessários consistentes programas de capacitação nas escolas para ensinar novas ferramentas e estratégias.

Quais as competências do professor na construção de uma nova Educação no país?
No Brasil, a profissão docente tem sido definida a partir de critérios essencialmente técnicos, nos quais o nivelamento por baixo, o esvaziamento das aspirações teóricas e intelectuais, os controles da profissão se constituem em definidores de programas de formação inicial e continuada, bem como em medidas de uma política educativa esvaziada de reflexões teóricas e epistemológicas associadas às práticas educativas. Romper com esta concepção de docência significa buscar alternativas. Saliento as ideias do educador António Nóvoa. Primeiro, assumir a práxis pedagógica, centrada na aprendizagem dos estudantes e no estudo de casos concretos; segundo, que os professores mais experientes tenham papel central na formação dos mais jovens, ou seja, a aquisição de uma cultura profissional; terceiro que haja valorização da capacidade de relação e de comunicação que contribui com a prática pedagógica; quarto, que o trabalho em equipe e o exercício coletivo da profissão sejam considerados nos projetos educativos de escola; por último, que professores e demais trabalhadores da educação estejam no cerne de discussão das políticas educacionais.

Qual é o perfil e como lidar com o aluno da atualidade?
O aluno deve ser mobilizado para o conhecimento. Como transpor esta situação de alunos desmotivados, sem interesse? Este “novo aluno” deve ter a capacidade de análise, de síntese, de trabalhar em grupo, enfim, de transpor a barreira de que o professor ensina e o aluno aprende. Esta equação não tem mais sentido. A profissão docente precisa voltar a ser atraente para os jovens, que cada vez mais se afastam do magistério. A preparação de novos professores pressupõe melhores cursos de Licenciatura, nova concepção do professor como intelectual orgânico, políticas governamentais que realmente estimulem a carreira, melhores condições de trabalho e infraestrutura adequada. O docente, em qualquer etapa da carreira, precisa aderir a “autoformação” constante no que se refere aos saberes do conteúdo específico que ensina, aos saberes pedagógicos e curriculares, além daqueles saberes relacionados ao campo profissional, com a ética e com a cidadania.

Ferramentas tecnológicas estimulam alunos, mas Noeli questiona como sistemas de ensino público estão se equipando Como avalia a Era da Informação e da Tecnologia e seus impactos sobre a Educação?
Estou falando de um Brasil de contrastes. Não dá para homogeneizar, pois a realidade das escolas é diversa. Enquanto convivemos com “oásis tecnológicos”, geralmente em escolas de educação básica particulares, convivemos com contradições, ou seja, cotidianamente, com o quadro-negro e o giz. Temos universidades brasileiras que utilizam alta tecnologia, possuem laboratórios equipadíssimos, com pesquisa de ponta, mas também convivemos com muitos cursos de graduação sem condições mínimas, onde a centralidade ainda está no professor das aulas orais.

Acredita nas mudanças propostas pelo MEC, com o novo Ensino Médio?
A Reforma do Ensino Médio (Medida Provisória  746/2016) é um equívoco, na medida em que desloca a questão estrutural para o currículo. O Governo potencializa a flexibilização do currículo, assinala que o novo modelo permitirá que o estudante escolha a área de conhecimento para aprofundar seus estudos. A nova estrutura terá uma parte comum e obrigatória a todas as escolas (Base Nacional Comum Curricular) e outra parte flexível. Os argumentos desta reforma indicam que os estudantes poderão fazer escolhas à luz das novas demandas profissionais do mercado de trabalho. Apenas os componentes curriculares de Português, Matemática e Inglês devem ser obrigatórios para o fim do ciclo (atualmente são 13 anos), enquanto as disciplinas restantes serão escolhidas pelo aluno ou pela escola entre cinco áreas de ênfase: Linguagens, Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Matemática e Formação técnica e profissional. Por outro lado,   há autonomia dos sistemas de ensino para definir a organização das áreas de conhecimento, competências, habilidades e expectativas de aprendizagem definidas na BNCC. 

Quais são as falhas?
O Governo desconsiderou a pesquisa que tem sido feita no Brasil sobre a temática; o documento apresenta fragilidades quanto ao aprofundamento teórico, bem como na explicitação das experiências internacionais (por exemplo, as pesquisas sobre a reforma na Inglaterra e no Chile não têm sido exitosas). De acordo com o sociólogo inglês Michael Young, os alunos provenientes da classe trabalhadora devem ter acesso ao conhecimento poderoso, pois é somente na instituição escolar que tem acesso ao conhecimento sistematizado. É provável que os alunos saiam do Ensino Médio com uma visão ainda mais fragmentada e reduzida do “conhecimento geral” que advém das várias disciplinas, tão necessário em todas as carreiras — um ano e meio é insuficiente para todas as disciplinas, mesmo com o aumento da carga horária. Não há nenhuma garantia de que as áreas oferecidas em diferentes escolas atenderão a critérios de necessidade regional — até porque a ideia é possibilitar a livre escolha — uma contradição. Outro equívoco diz respeito à contratação de docentes de “notório saber”, contribuindo ainda mais com a precarização do trabalho docente. Vale lembrar que atualmente as faculdades apenas certificam disciplinas com o mecanismo do “notório saber”, nunca um curso completo de graduação. Então, como será a utilização desse mecanismo com a grande necessidade de profissionais da educação em algumas áreas críticas? Onde ficará a tão cobrada e exigida formação em nível superior para a docência? Ou então, a necessária formação pedagógica para o exercício do magistério?

É a favor de uma abordagem holística do conhecimento?
Sou a favor de uma educação integral, sistêmica, com acesso aos bens sociais e direito ao conhecimento, a cultura, etc. A abordagem holística é utilizada no contexto das políticas da UNESCO. No que concerne ao conhecimento, os alunos devem ter direito à educação escolar de qualidade assentada no acesso ao conhecimento sistematizado, o qual deve ser “historicizado” e contextualizado. Pressupõe escolas com infraestrutura e materiais adequados, bem como professores e demais profissionais da educação com dignidade econômica, social e formação. Reconhecer e respeitar a diversidade indica concepções generalistas de conhecimento, de cultura, de saberes e de valores, de processos de formação, socialização e aprendizagens. 


Texto: Yara Racy
Fotos: Julio Sian

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