Pescaria ociosa

Pescaria ociosa

Abordando a Psicanálise como uma oportunidade de sair do automatismo, para se tornar autor da própria vida, o médico José Cesáreo Francisco Junior discorre sobre a área e suas nuances

Psiquiatra e psicanalista, José Cesáreo Francisco Junior se dedica há 40 anos ao cuidado com a saúde da mente. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, com funções didáticas, além de ser membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo — que integram a Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI) e o Internacional Psicanálise Analytic Association (IPA) —, Cesário já foi diretor de ensino do Instituto de Psicanálise, em Ribeirão Preto, responsável pela formação de psicanalistas. Hoje, atua em funções didáticas, oferecendo seminários teóricos sobre diversos pensadores e também clínicos, contribuindo diretamente com a formação de novos psicanalistas.

Como a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP) foi formada?
José Cesáreo: Comparada a outras associações da mesma natureza espalhadas pelo Brasil, nossa Sociedade é relativamente jovem. Tendo começado como um grupo de estudos, passou a ser provisória e a oferecer formação na década de 1990, tornando-se definitiva em 2005, durante um Congresso Internacional realizado no Rio de Janeiro. Para mim, como então presidente da Sociedade, foi uma honra participar daquele momento. Anteriormente à ribeirãopretana, já havia entidades semelhantes em São Paulo, Rio Janeiro, Porto Alegre, Recife, Brasília e Pelotas. Ribeirão Preto foi a segunda cidade do interior do Brasil a sediar uma sociedade direcionada à Psicanálise. Atualmente, existem vários núcleos espalhados pelo país.

O que há de novidade acontecendo na área?
Em julho do ano que vem, receberemos psicanalistas do mundo inteiro em Ribeirão Preto, vindos, principalmente, da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa. A cidade sediará um Congresso Internacional de Psicanálise que irá abordar o pensamento do autor Wilfred Rupet Bion e a temática “Domesticando pensamentos selvagens”. Para apresentar o evento e convidar os psicanalistas brasileiros a participarem, preparamos uma extensa agenda de pré-congressos. Estaremos em Aracajú, Porto Alegre, Brasília, Goiania e Rio de Janeiro.

A Psicanálise é um encontro onde cada um vai tratar dos seus encontros e desencontros, explica José CesáreoO que motivou a escolha desta temática para o Congresso?
Penso que uma das funções da psicanálise seja abrigar e oferecer um lar para situações e pensamentos bizarros que, eventualmente, podem ocorrer em uma sessão. A função analítica é justamente essa: buscar cuidar desses sentimentos e pensamentos — porque há diferença entre senti-los e fazê-los. Acreditamos que, ao percebê-los e observá-los, cria-se a oportunidade para que o indivíduo possa sentir-se mais humano e ampliar sua capacidade de ser quem realmente é, sem colocar em prática esses pensamentos.

Afinal, é possível definir a Psicanálise?
Este é, realmente, um problema. Para mim, não dá para dizer o que é, exatamente, a Psicanálise; é preciso experimentar. Assim como é impossível entender ou explicar o que é ser mãe — embora exista muita gente que fala ou escreve sobre o tema —, não dá para apenas falar sobre Psicanálise. Vivenciar essa ciência é a única maneira de entendê-la. 

Como funciona a sessão de Psicanálise?
As pessoas participam duas ou três vezes na semana e, nesse ambiente, tudo não passa de treinamento. A vida acontece fora do consultório, no entanto, se podemos ter uma experiência onde os sentimentos são trazidos à tona e abrigados, o cotidiano pode ser mais vivificante. Wilfred Bion apresenta muitas questões relacionadas ao viver nosso de cada dia, principalmente, a respeito das situações muito céleres, muito líquidas, que evaporam rapidamente e precisam ser cuidadas. Em uma sessão de análise, temos a oportunidade de prestar atenção a tudo isso. Como diz a mulher de Bion, trata-se de uma “pescaria ociosa”. Você está ali para, em meio a pensamentos e sentimentos, pescar algo. 

Qual a finalidade do bate-papo estabelecido entre analista e analisado?
Para quem nunca experimentou uma sessão, diria que o diálogo que se estabelece é “quase” uma conversa jogada fora. Isso porque, na verdade, o trabalho que se faz é justamente, servir como meio de cultura para os pensamentos, mesmo que selvagens. Bion propõe que os pensamentos existem para serem pensados, então, há um “pensar” a respeito do pensamentos, assim como dos sentimentos. Dessa forma, é possível descobrir maneiras de lidar com cada um deles. Fazendo um paralelo, eu diria que as sessões de psicanálise funcionariam como uma turbina, no caso de um veículo: ela busca captar e direcionar a energia necessária para que seja possível ganhar velocidade, por exemplo. A psicanálise é apaixonante porque permite conversar sobre a vida, sobre o que é viver e sentir. Assim, possibilita aos envolvidos sair do automatismo, da robotização, dessa forma mecânica de viver que tem dominado muitas pessoas.

Para você, Bion é uma forte referência para a Psicanálise?
Sim, entre outros autores. Bion, em especial, apresenta ideias que vivificam a Psicanálise. A ideia de criar um fotograma durante as sessões ilustra bem o que estou tentando dizer. Juntos, analista e analisado buscam transformar em imagem, como uma foto capturada, uma vivência de um amor apaixonado, um ódio assassino, um ciúme tresloucado ou uma inveja estúpida. Essa foto daquele momento em que a pessoa é o que realmente compõe sua natureza é um jeito próprio de dar forma concreta ao sentimento.  As situações concretas são aquelas que, muitas vezes, o teórico chama de “selvagens” porque a pessoa mal se dá conta do que está vivendo — afinal, costumamos “chegar atrasados”, o que é natural. Isso porque primeiro vem o sentimento e, depois o pensamento, embora existam muitas pessoas tentando pensar antes de sentir.

Como trabalhar a dualidade: pensar e sentir?
Pensar corresponde a um cuidado a respeito de uma determinada situação. O momento atual da sociedade, sempre apressada e cheia de certezas, leva as pessoas a dizerem o que pensam sem muita elaboração, transformando aquilo em uma verdade absoluta e eterna, enquanto outros pensam de outra forma também absoluta e eterna. No entanto, são muitos seres pensantes — ou não — ao mesmo tempo e, consequentemente, muitas certezas absolutas precisando dividir o espaço. A grande questão da humanidade, hoje em dia, é que estamos diante de um mistério, algo que, na verdade, ninguém sabe. Estamos em busca do desconhecido, de saber aquilo que não sabemos. O problema é que há pessoas que acham que já têm todas as respostas e se transformam em dogmatistas. Se eu, por exemplo, pensar que a única solução para os problemas da humanidade é a Psicanálise, estarei igualmente errado. Há um sério problema em acreditar que algo é superior às demais possibilidades — esse, aliás, é um pensamento selvagem. Se eu passo a perceber que minhas certezas não são únicas ou, muito menos, definitivas, então, torno-me apto a conversar a respeito delas. Só faz isso quem possui um nível diferenciado de consciência. 

O analista também precisa de análise?
Bion traz vitalidade para a Psicanálise, justamente, porque entende o analista como um ser humano que tem a peculiaridade de apresentar características muito similares às pessoas a quem ele se dispõe a analisar. Por isso, é fundamental que ele faça uma análise longa e se cuide. 

A psicanálise é apaixonante porque permite conversar sobre a vida, sobre o que é viver e sentir. Assim, possibilita aos envolvidos sair do automatismo, da robotização, dessa forma mecânica de viver que tem dominado muitas pessoasDe que forma encontrou-se na Psicanálise?
Penso que, ao analisar as pessoas, entro em contato com questões que são minhas. Crio um produto, que chamo de antitetânico (porque o tétano é uma paralisia). O meu relacionamento com as pessoas é antiparalisante e resulta em um movimento contínuo em mim. Dessa forma, entro em contato com meu antimovimento, que também existe. Bion diz que, naquilo que ele sabia dele, existia um ódio à Psicanálise porque ela mostrava para ele como estava e revêlava feridas — inclusive, a ferida narcísica maior do homem, que a morte. A Psicanálise nos coloca em contato com o ódio que, muitas vezes, sentimos de ser quem somos. Da mesma forma, coloca-nos em contato com o amor, com a criatividade, com a afetividade e com a vida. A Psicanálise produziu em mim entrar em contato com quem eu sou, do jeito que eu sou.

Como funciona a formação em Psicanálise?
Nossa formação acontece de forma bastante cuidadosa. Para entrar no Instituto de Psicanálise, o interessado deve, primeiro, participar de uma seleção. Esse processo inclui a avaliação de um currículo e do estudo da autobiografia feita. 

Apenas médicos e psicólogos podem participar?
Em geral, os médicos, especialmente os psiquiatras, são os maiores interessados, mas não apenas eles. Conheço endocrinologistas, clínicos gerais, neurologistas, obstetras e gastroenterologistas que já buscaram a Psicanálise como aliada. Certa vez, uma assistente social começou a fazer o curso de Psicanálise e, a partir dele, decidiu buscar formação em Psicologia. Isso costuma acontecer quando surge o interesse de atender a outras pessoas — isso só é possível se há graduação na área da saúde. Vale salientar que a Psicanálise ainda não é uma profissão regulamentada.

Esta obrigatoriedade não é um limitador para a Psicanálise?
Formei-me ao lado de uma geóloga que, depois, foi estudar Psicologia para passar a prestar atendimento. Na minha visão, essa pluralidade de perfis de pessoas que se identificam com a Psicanálise é enriquecedor. Dentro da Psicanálise, procuramos manter contato estreito com pessoas de outras áreas. Quando fui presidente da SBPRP, por exemplo, organizamos uma comissão formada somente por arquitetos. Hoje, a Sociedade mantém o projeto “Cinema e Psicanálise”, que possui um braço em Jaboticabal. Há trabalhos em andamento, também, no Fórum de Ribeirão Preto e no Instituto Figueiredo Ferraz. Não se pode negar, no entanto, que ser voltado para médicos e psicólogos é um fator limitante. É preciso salientar que é mesmo importante limitar a quem exerce a profissão que precisa estar ligada a um determinado conselho profissional. 

Como funciona o projeto dentro do Instituto Figueiredo Ferraz?
Enquanto diretor do Instituto de Psicanálise, propus que os alunos em formação frequentassem o Instituto Figueiredo Ferraz. O espaço reúne professores de arte treinados para lidar com a observação da obra de arte, o que não é muito diferente de observar o ser humano. Este pode ser entendido como a mais sofisticada obra de arte já desenvolvida. 

A Psicanálise é a arte do encontro?
A Psicanálise é um encontro para tratar dos encontros e desencontros da vida. As pessoas têm segredos e mistérios que precisam ser desvendados. Mais importante do que falar sobre eles é poder cuidar do que se está sentindo depois de criar uma linguagem eficaz para isso. Se cuidarmos de nós mesmos e dos nossos instrumentos de forma adequada, passaremos a ter condições de caminhar na direção do outro e de se Mistério. 

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