Quebrando tabus
Segundo Marina, o principal antídoto para combater o suicídio é a alegria e o sentimento humanitário

Quebrando tabus

Assunto ainda tímido entre a população, a prevenção ao suicídio é o tema central da campanha “Setembro Amarelo”. Em Ribeirão Preto, a médica Marina Freitas faz um alerta pela valorização da vida

Todos os anos, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida no mundo inteiro. No Brasil, um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2014, mostrou que, a cada 100 mil indivíduos, seis pessoas cometem suicídio anualmente. Apesar do índice relativamente baixo, na comparação com outros países, este dado coloca o país na oitava posição do ranking no mundo em números absolutos (foram 11.821 mortes entre 2010 e 2012). Dados da Unicamp revelam, ainda, que 17% dos brasileiros já pensaram em dar fim à própria vida e que, desses, 4,8% chegaram a elaborar um plano para isso. O fato de que o maior crescimento dos casos desta natureza, de 1990 até 2012, foi entre os indivíduos de 15 a 19 anos, segundo o Mapa da Violência Jovens do Brasil, de 2014, torna a questão ainda mais impressionante.
Para alertar a população, a OMS apresentou, recentemente, outro dado preocupante: o suicídio já mata mais jovens no mundo do que o vírus da AIDS e é a segunda maior causa de morte na faixa etária de 15 a 29 anos, perdendo apenas para os acidentes de trânsito. 

Para tentar reverter este cenário, a OMS apostou em inúmeras ações, como na criação do Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio, 10 de setembro, estendido para o mês na forma da campanha “Setembro Amarelo”. O principal objetivo da iniciativa é conscientizar a população sobre o suicídio, tornando a realidade no Brasil e no mundo conhecida, com destaque para as formas de prevenção. O projeto foi trazido para o Brasil em 2014 pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e tem ganhado destaque em diversas cidades brasileiras, inclusive, em Ribeirão Preto.

Com o tema “Sentido da vida na prevenção do suicídio”, a médica Marina Lemos Silveira Freitas, ao lado de psicólogos, médicos, educadores e leigos, voluntários do Sinn - Centro de Assessoramento Juvenil Viktor Frankl, está envolvida em inúmeros projetos relacionados ao “Setembro Amarelo” em Ribeirão Preto. Com especialização em Pediatria, Análise Existencial e Logoterapia de Viktor Emil Frankl, Marina acredita que a primeira medida preventiva contra o suicídio é a educação para o sentido da vida, com alegria de viver e coragem de sofrer, se necessário, seguida de discussões sobre o tema para derrubar tabus e ampliar o entendimento sobre o assunto. Na entrevista a seguir, Marina apresenta as atividades que serão realizadas no município e derruba preconceitos sobre esse assunto.
 
Revide: De que forma sua carreira enveredou para os estudos sobre prevenção ao suicídio?

Marina: Graças à Pediatria e à minha experiência de vida, aprendi a cuidar de crianças doentes. Nesse contexto, percebi que, se realmente desejamos a transformação da sociedade, precisamos buscar a resposta na educação. Por conta disso, fundamos o Colégio Viktor Frankl e, posteriormente, o Instituto de Educação e Cultura Viktor Frankl, que reconhece a dimensão da educação, inclusive, como principal motivação para a valorização da vida e para a prevenção do suicídio. Dr. Frankl foi um psiquiatra austríaco, sobrevivente de quatro campos de concentração, fundador da Logoterapia, psicoterapia centrada no sentido. Através dos meus estudos, constatei que é possível ao homem e à mulher se sobreporem aos condicionamentos físicos, psicológicos e ambientais, encontrando um sentido na vida apesar de todas as circunstâncias. Hoje, esse pensamento é aplicado em psicoterapia e tem respondido à grande crise mundial de vazio existencial e de suicídio.

Para a psicologia, o que é o suicídio?

Existe um conceito formal que diz que o suicídio é o ato de tirar a própria vida deliberadamente. Já para a Logoterapia, como disse Frankl, “o suicídio é um não ao sentido da vida”.
 “A educação deve ser utilizada como ferramenta de prevenção desde a infância”, comenta a especialista
Por que os dados de suicídio, especialmente entre jovens de 15 a 29 anos, vêm crescendo tanto?

O “Mapa da Violência”, publicado em 2014 pela Secretaria Nacional da Juventude, revelou que a taxa de suicídio está em um crescimento progressivo. Para se ter uma ideia, de 1980 a 1990, em uma avaliação geral sobre o suicídio, houve um aumento de 2,7% no número de casos. Já de 1990 a 2000, a ocorrência subiu 18,8% e de 2000 a 2012, 33,3%. Independentemente de estatísticas, hoje, dá para perceber que a tendência de elevação continua: próximo de nós, sempre conhecemos alguém que já pensou ou até cometeu o ato. Há várias teorias que tentam explicar esse aumento, mas a principal delas é a intensificação da sensação de vazio, de falta de percepção de sentido na vida, o que leva inicialmente à frustração e, depois, à depressão, ao desespero e à desesperança. Vivemos correndo, envoltos em um barulho muito grande, onde a alegria precisa ser comprada por droga, álcool, sexo e consumo; perdemos a capacidade de nos alegrar espontaneamente, simplesmente por existirmos. Quando o prazer imediato não chega e a pessoa não encontra forças para superar o sofrimento, fugir parece ser a única saída. Na verdade, uma ambivalência se apresenta: não quero morrer, mas não aguento mais viver — assim pensa a pessoa com comportamento suicida. É quando devemos agir.
 
O que leva uma pessoa a tirar a própria vida?

Falta de percepção do valor da própria vida, baixa autoestima, bullying e depressão podem influenciar. No entanto, existem muitas pessoas que sofrem com isso e não se matam. Os motivos são inúmeros, por isso, nossa ação precisa ser no sentido de prevenir esse vazio existencial. Para isso, podemos colocar em prática trabalhos educativos que despertem essa vontade encontrar um sentido. Sempre exemplifico tal vazio com uma comparação: assim temos sede, que é uma necessidade do nosso corpo, precisamos nos abastecer de afeto para manter nosso psicológico saudável e devemos encontrar um sentido, para suprir nossa dimensão noética, ou seja, a dimensão propriamente humana. Isso não tem relação com religião ou política, trata-se de uma necessidade autêntica da existência humana.

 Há registros de que as tendências suicidas podem começar ainda na infância. O que se sabe sobre isso?

Recentemente, uma criança de oito anos tentou suicídio. Vale a pena prestar atenção naquela criança que se acidenta muito, o que pode ser sinal de comportamento suicida. Porém, com a desestruturação familiar e a negligência emocional — uma das principais causas de estresse precoce — muitas crianças estão desenvolvendo sinais de depressão e comportamento suicida nos primeiros anos de vida.
 
Fatores genéticos têm influência no desenvolvimento de um quadro suicida?

Características hereditárias contam, assim como dados ambientais, sociais e emocionais. Há famílias em que o avô, a mãe e o filho cometeram suicídio. A pesquisadora Elizabeth Lukas relata um caso de uma mulher com histórico familiar de mãe e avó suicidas, e ela também estava pronta para tirar própria a vida. Sabiamente, Dra. Lukas apresentou o histórico familiar à mulher e deu a ela a escolha entre tirar a vida e passar a herança genética adiante ou viver e deixar a vida como herança para seus filhos. Precisamos compreender que não somos pré-determinados, seja geneticamente, psicologicamente ou socialmente. Estamos condicionados a um determinado ato, mas sempre existe na tridimensionalidade da pessoa humana a força capaz de sobrepor aos condicionamentos biológicos.
 
O que é o Setembro Amarelo?

Esta campanha mundial está na 4ª edição e objetiva derrubar os tabus acerca do suicídio, buscando alertar a população sobre a realidade no Brasil e no mundo. A valorização da vida é o tema central deste Setembro Amarelo, que tem como palavra-chave a alegria. O que vemos nos casos de suicídio é que a depressão, a desesperança e a tristeza precisam de remédio, e esse antídoto é a alegria. Não me refiro a uma alegria comprada e, sim, uma realização natural e espontânea, porque posso andar, respirar, pensar e, até no sofrimento, sei que posso me transformar. Justamente por isso, a campanha gira em torno da alegria de viver, propondo que as pessoas descubram nelas mesmas a capacidade de superar as dificuldades e fazer sua escolha: sucumbir ou dizer sim à vida.

Como Ribeirão Preto está envolvida com a Campanha?

Por aqui, o Setembro Amarelo começou com o CVV que, em 2017, juntamente com o grupo Sinn (sentido, em alemão), preparou uma programação durante todo o mês. Iniciamos esse período de alerta com uma “motociata” pelas avenidas de Ribeirão Preto e, até o dia 30, teremos exposições de fotos, poemas e fanzines no Shopping Iguatemi. Os trabalhos fotográficos que já podem ser vistos no centro de compras foram produzidos por adolescentes que estudam em escolas particulares, municipais e estaduais de Ribeirão Preto. Além disso, haverá mesa redonda, conferências e congressos. No dia 23 de setembro, das 9h às 17h, serão instaladas Tendas de Escuta, na Praça XV de Novembro, onde voluntários treinados estarão à disposição para escutar as pessoas que passarem pelo local.
 
Como e com qual intuito foi criado o grupo Sinn? 

Viktor Frankl diz que não sou eu quem deve exigir da vida, mas que, antes, tenho que responder ao que a vida propõe. No primeiro semestre do ano passado, dois queridos ex-alunos tiraram a vida. Foi uma dor e um questionamento muito grande, principalmente por trabalhar tanto com o tema. No entanto, em um determinado momento, vi que precisava parar de me culpar e fazer algo para que essa situação não voltasse a acontecer. Com isso, ficou claro na minha mente que deveria criar um programa de prevenção do suicídio baseado no sentido da vida, assim como Viktor Frankl fez na década de 1930, quando o suicídio entre adolescentes em Viena estava altíssimo. Com seu trabalho, o psiquiatra alemão praticamente zerou a taxa de suicídios. Então, trouxemos o mesmo modelo para a nossa realidade com a ajuda de um grupo formado por pessoas — não necessariamente psicólogos — com boa vontade e disposição para escutar quem precisa. O grupo Sinn tem uma vertente acadêmica e outra de acolhimento, prestando atendimento, inclusive, pela internet, um dos meios preferidos dos jovens. O diferencial do projeto é a proposta de “escuta compreensiva”. Procuramos realizar uma interversão “socrática”, por meio de perguntas que procuram aguçar a consciência. Não é julgar e dar conselhos, não é moralismo ou doutrinação, mas um projeto totalmente desvinculado de religião e de política, formado por pessoas com um grande sentimento de transcendência. Queremos que a pessoa encontre a resposta e que saiba que só ela pode sair da posição de vitimização, abandonar a culpa e começar a dirigir a própria vida.
 Marina é autora de diversos livros sobre sexualidade, educação e resgate de sentidos
Esse assunto ainda é um tabu na sociedade?

É um tema difícil. Existe muita culpa, tanto naquele que comete suicídio quanto nos que ficam, os chamados sobreviventes. Porém, estamos conseguindo, aos poucos, trabalhar esse tema. Posso até ver um lado positivo na série “13 Reasons Why” e no jogo “Baleia Azul” — claro que eles não deveriam ter existido, mas, por outro lado, serviram para trazer diversas reflexões à tona, alertando a população. Obvimente, ninguém se suicidou por causa do jogo ou da série porque quem comete o ato já tinha algum fator predisponente e encontrou nessa situação o estímulo que precisava para executar o que já tinha em mente. Por conta disso, muitas escolas promoveram palestras e workshops para familiarizar os alunos, educadores e familiares com o tema.
 
De que forma tornar a educação uma ferramenta efetiva contra o suicídio?


Antes de mais nada, é preciso capacitar a equipe docente e auxiliar das escolas para que possa detectar sinais de comportamentos suicidas entre os alunos. Aguçar a capacidade de observação e de percepção daqueles que estão diariamente com os jovens é a chave para uma possível intervenção. É preciso entender que quem se suicida tem um estado interior chamado de ambivalência e de impulsividade — ele não quer morrer, mas busca abrir mão da vida que não está boa; ele deseja buscar um sentido e é essa busca de paz ou de fim imediato aos tormentos que não cessam que o faz recorrer ao suicídio. Se a comunidade estiver atenta aos sinais, podemos agir de uma forma preventiva. Junto aos estudantes — incluindo aqueles que não têm ideação suicida — é importante encampar um projeto de valorização da vida. O ideal é começar um trabalho na educação infantil, para que seja possível identificar e prevenir qualquer problema.
 
Como prevenir e onde buscar ajuda?

De acordo com a OMS, 90% dos casos de suicídio podem ser prevenidos, desde que existam condições mínimas para oferta de ajuda voluntária ou profissional. Em Ribeirão Preto, o CVV atende pelo tel.: (16) 3636.4111. Está à disposição, também, um número de Whattsapp para acolhimento (16) 99363.6860. Quem precisa de acompanhamento psicológico de urgência pode procurar as universidades, como USP, Unaerp, UNIP e Barão de Mauá, que possuem plantão psicológico.

Marina Lemos Silveira Freitas | Texto: Pâmela Silva | Fotos: Julio Sian

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