Questão de consciência

Questão de consciência

O médico Cláudio Souza entrevista Luzia Romanholi. a enfermeira afirma que o combate a doenças transmitidas pelo Aedes Aegypti depende, acima de tudo, da boa vontade

Do bate-papo entre Cláudio e Luzia Márcia surgiu um panorama geral das doenças no municípioHá 30 anos, o país convive com epidemias de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. O problema, que começou com a dengue, na década de 80, trouxe para a realidade do país o risco do zika vírus, que chegou ao Brasil em 2013, segundo pesquisa de cientistas do Instituto Evandro Chagas e da  Universidade de Oxford, no Reino Unido; da febre chikungunya, identificada no país em 2014; e da febre amarela, que retornou à cena no início de 2017, apesar de ter sumido das áreas urbanas desde 1942. 

Para discutir o assunto e entender o cenário ribeirãopretano, o médico epidemiologista e professor universitário do curso de Medicina da UNAERP, Cláudio Souza de Paula, entrevista Luzia Márcia Romanholi Passos, diretora do Departamento de Vigilância em Saúde e Planejamento da Secretaria da Saúde de Ribeirão Preto. O encontro foi acompanhado pela jornalista Carla Mimessi. 

Cláudio: Qual é a sua opinião sobre o surgimento de doenças como dengue, chikungunya e zika no cenário atual do Brasil e de Ribeirão Preto?
Luzia:
Essas doenças têm como principal via de transmissão os vetores, no caso, o mosquito Aedes aegypti, e apresentam causas multifatoriais, entre elas, o desmatamento, o acúmulo de resíduos, do lixo urbano e as mudanças climáticas. O mosquito já circulou anteriormente no território nacional, voltou na década de 80, quando surgiram os primeiros casos da dengue. Na década de 90, com a infestação de praticamente todos os municípios brasileiros, tentou-se a erradicação do inseto, sem sucesso. De anos para cá, o Aedes voltou a ser um importante causador do ressurgimento das demais doenças: a febre chikungunya e o zika vírus.

Cláudio: A febre amarela estava controlada, no entanto, foram diagnosticados  casos da doença em macacos e em humanos no país. Por que a doença voltou à cena nacional? 
Luzia:
Assim como outras doenças, a febre amarela tem ciclos epidemiológicos e aparece nos primatas não humanos, que perpetuam o ciclo na zona silvestre. Ela aparece em um ano, muitos animais adoecem e morrem; depois cessa por um tempo, até que outros animais cresçam e fiquem susceptíveis à doença. Com o aumento do número desses animais, a febre amarela volta a aparecer em níveis bem maiores, quando os casos ficam mais evidentes e a doença tem maior visibilidade. Esse ciclo se repete a cada oito ou dez anos na natureza. Fala-se muito em erradicação, mas em nosso país ocorre o modelo de febre amarela silvestre. A doença nunca vai deixar de existir, porque o vírus existe e faz parte do ciclo silvestre. Esse ciclo ocorre nas matas e nos mosaicos de matas onde há condições favoráveis: a presença dos mosquitos e dos animais silvestres que trazem em si o ciclo da febre amarela.  Atualmente, estamos exatamente no pico desse período de oito a dez anos, quando há um aumento da ocorrência da circulação viral na região silvestre. Com as grandes cidades, o aparecimento de condomínios, o desmatamento e os pequenos mosaicos de mata dentro da cidade, o mesmo ciclo pode ocorrer, também, na zona urbana, quando encontramos nela as mesmas condições. 

Cláudio: Como a febre amarela é transmitida? 
Luzia:
No caso do ciclo silvestre, os vetores são os mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes que, ao picar macacos com a febre amarela, contaminam-se e transmitem a doença para outros macacos e, eventualmente, para o homem que adentra a mata.
No ciclo urbano, o homem com a febre amarela é picado pelo mosquito Aedes aegypti ou o Aedes albopictus ,que se contaminam e transmitem a doença para outros humanos.


Cláudio: Qual é a indicação precisa de vacinação contra a febre amarela? 
Luzia:
A vacina tem indicação universal — adultos e crianças. As crianças são vacinadas a partir dos nove meses de idade. Temos algumas contraindicações passageiras, como é o caso de gestantes e de mães que estão amamentando até o bebê completar seis meses de vida;  ou duradouras, como pessoas que fazem tratamento com medicamentos imunossupressores ou com terapias imunossupressoras, como radioterapia e quimioterapia.  A vacina é indicada também para idosos, desde que não tenham doenças que comprometem o sistema imunológico ou doenças de base, como cardiovasculares, pulmonares, ou que utilizam corticoides diariamente e em altas doses. Para imunizar pessoas que usam corticoides  é preciso ter a orientação do médico que o prescreveu para avaliar se a dosagem tomada pelo paciente e a condição de uso pressupõem uma situação de imunossupressão. A vacina também não é indicada para pessoas com alergia grave a ovo, produto utilizado no meio de cultura do vírus. Refiro-me às alergias que provocam reações de anafilaxia, e não aquelas que causam sintomas como intolerância gástrica, por exemplo. É uma vacina que todos devem tomar, salvaguardando essas condições específicas. 

Cláudio: Quais ações estão sendo feitas pelo município após o surgimento do primeiro caso de febre amarela em primatas não humanos na cidade? 
Luzia:
Ribeirão Preto já faz o monitoramento de doenças em animais de interesse para a saúde pública, como a raiva e a febre amarela.  Em relação à segunda, recolhemos os macacos mortos e, à medida que chegam as notificações à Divisão de Vigilância Ambiental, os animais são necropsiados e os materiais, encaminhados ao A jornalista Carla Mimessi acompanhou a entrevistaInstituto Adolfo Lutz — uma ação de rotina do município. Em julho de 2016, por meio deste trabalho de monitoramento, capturamos macacos e o exame de um deles, encontrado na Praça Camões, deu positivo para a febre amarela. Recebemos esses resultados em outubro e, a partir daí, colocamos em prática várias ações. A vacinação contra a doença é rotineira, mas, a partir de outubro, implantamos a vacinação para grupos, mediante um estudo das áreas de risco, e, em caráter mais emergencial, vacinamos toda a zona rural de Ribeirão Preto, atendendo mais 350 propriedades,  nas quais imunizamos mais de 1.300 pessoas. Também fizemos visitas de casa a casa em cada condomínio considerado de risco, elaboramos panfletos explicando a importância de notificar a Secretaria da Saúde em caso de suspeita da doença e sobre a importância da vacinação, orientando para que procurem os postos de saúde. Fizemos um estudo entomológico em áreas de mata, como Santa Tereza, campus da USP, Bosque Municipal e Parque Curupira: coletamos insetos, observamos os primatas não humanos e orientamos os responsáveis a comunicar a Secretaria da Saúde se encontrarem animais mortos. As unidades de pronto-atendimento foram preparadas com um alerta epidemiológico, relatando e informando médicos e equipes de saúde sobre os sintomas da febre amarela, sua notificação e exames necessários. Também fizemos uma busca ativa nos registros de casos graves, que deram negativo para dengue, para saber se tais pacientes foram ou não vacinados contra a febre amarela. Enfim, desenvolvemos atividades de outubro a dezembro, período em que vacinamos 30 mil pessoas. 

Cláudio: Que medidas foram tomadas após ser constatado o segundo resultado positivo para febre amarela em macaco? 
Luzia:
Recebemos esse resultado em dezembro de 2016 e, já a partir de janeiro, passamos a visitar praças onde havia relato da presença desses animais. Hoje, temos uma equipe que monitora todas as praças e conversam com parceiros, informando sobre a importância de, caso encontrem algum macaco morto, rapidamente recolhê-lo, necropsiá-lo e encaminhá-lo para São Paulo. Começamos a avaliar lugares classificados como áreas de risco, como o entorno sul, próximo do local do caso de febre amarela humana, onde vacinamos moradores de casas, chácaras e condomínios, pequenas propriedades e comércios, toda a região do horto florestal, as comunidades e o Jardim Progresso. Depois, estendemos essas ações para o perímetro urbano do município — áreas em que, pontualmente, oferecemos a vacinação em loco. Para tanto, temos contado com o trabalho das várias equipes: Divisão de Vigilância Epidemiológica; Divisão de Vigilância Ambiental; equipes de saúde das unidades de saúde e das unidades distritais, enfim, a Secretaria de Saúde e outras secretarias envolvidas para desenvolver um trabalho completo e diminuir o risco para os munícipes. 

Cláudio: O que a dengue a chikungunya, a zika e a febre amarela têm em comum?  
Luzia:
Elas são arboviroses, transmitidas por artrópodes, que, no caso, é o mosquito. Além disso, todas podem ser transmitidas pelo Aedes aegypti e pelo aedes albopictus, mosquitos presentes nas zonas urbanas. O conjunto de sintomatologias é muito parecido, na primeira fase da doença: febre, dor no corpo e dor nos olhos; depois, o quadro clínico das doenças apresenta peculiaridades, como as hemorragias, no caso da febre amarela e da dengue.  

Cláudio: Como está a situação da dengue no município? Podemos esperar uma nova epidemia? 
Luzia:
Este ano, estamos com um quadro muito diferente. Em Ribeirão Preto, neste período do ano passado, estávamos com muito mais de 300% do número de casos que temos hoje. Fechamos janeiro com apenas 12s Luzia destaca a importância do envolvimento de todos no combate ao mosquitoconfirmações, sendo que, ano passado, tínhamos mais de 9 mil casos confirmados; e foram notificados e investigados, em janeiro, 361casos suspeitos — bem diferente de 2016, em que ocorreram mais de 16 mil casos. Atualmente, estamos em uma situação de controle da doença, mas não podemos abaixar a guarda no combate ao mosquito transmissor, pois nossas equipes de campo, que atuam de casa em casa, estão encontrando um número exagerado de focos, ou seja, a população precisa ficar atenta ao controle do mosquito. Não esperamos para este ano uma epidemia como a que tivemos em 2016, mas contamos, para os próximos meses, com um aumento no número de casos porque a infestação pelo mosquito está crescente. 

Cláudio: É possível controlar a disseminação do Aedes aegypti? 
Luzia:
Para chegarmos a uma situação de controle, dependemos de uma mudança de comportamento. Precisamos trabalhar essas doenças com intersetorialidade. A Saúde não dará conta, sozinha, de fazer as pessoas compreenderem a importância de acabar com os criadouros. As secretarias de Ação Social, do Meio Ambiente, da Infraestrutura, do Planejamento e outros setores devem ser envolvidos para conseguirmos vislumbrar uma situação de melhora. Visitamos as áreas de maior risco, em Ribeirão Preto, mais de seis vezes ao ano e a reposição dos criadouros é de uma rapidez impressionante. Parece que não fazemos nada, e isso dá uma angústia enorme, uma sensação de impotência muito grande.  As pessoas acham que o poder público tem que ir até suas casas para virar recipientes que acumulam água. Na luta contra a dengue, precisamos da atuação de todos, especialmente dos cidadãos. O próprio Ministério da Saúde mudou o foco das campanhas: hoje, usa relatos de quem perdeu entes queridos por causa da dengue, da chikungunya e da zika para impactar e despertar essa mudança de mentalidade na população. Temos epidemias em Ribeirão Preto há 26 anos, e olha a situação em que estamos — só cresce o número de casos. Devido à poluição, ao desmatamento e a outros fatores, não é mais possível erradicar o Aedes aegypti. Atualmente, só podemos falar em controle do mosquito. 

Cláudio: Quais são as principais situações de vulnerabilidade de Ribeirão Preto em relação a essas doenças? 
Luzia:
A alta infestação pelo mosquito e o grande movimento migratório. Temos o controle da doença, mas recebemos pessoas do país inteiro que podem estar infectadas, o que ocasiona a reintrodução da circulação viral contínua no município. Em cidades do porte de Ribeirão Preto, precisamos de um controle muito mais efetivo, pois é necessário reduzir a infestação do mosquito. Devido às condições climáticas, o município pode se tornar um berçário do mosquito, por isso, temos que mudar nosso comportamento em relação à dengue. 

Cláudio: Qual é a situação da febre chikungunya em Ribeirão Preto? 
Luzia:
Tivemos uma baixa circulação viral, mas o cenário nacional, sobretudo o nordeste, vive uma epidemia de chikungunya. Em Ribeirão Preto, ainda não ocorre a transmissão sustentada — aquela que não cessa. Tivemos um número muito pequeno de casos confirmados até o momento — nove casos até maio do ano passado — e, depois desse período, não houve mais nenhum registro. Acreditamos que ainda não temos a transmissão do vírus no município, mas, devido ao grande movimento migratório, podemos estar recebendo pessoas infectadas em viagens e que podem, rapidamente, introduzir a circulação viral da doença. Temos que lembrar que, no nordeste, a doença tem se mostrado um pouco diferente do que a literatura normalmente traz, devido à dor e suas formas crônicas, principalmente, naqueles indivíduos que já apresentam outras doenças de base, que levam a uma gravidade maior dos casos. 

Cláudio: Qual é a situação do zika vírus em Ribeirão Preto? 
Luzia:
No ano passado, notificamos mais de cinco mil casos de zika, incluindo  gestantes, e em 2017, em janeiro, só notificamos 22 casos suspeitos. Ainda não confirmamos, este ano, nenhum caso de zika, porém, no ano passado, constatou-se 403 gestantes com o vírus. Ainda estamos aguardando os exames de 2016. Este ano, como a dengue, estamos tendo um número bem reduzido de sintomáticos e até de suspeitos. Neste momento, o vírus está sob controle, apesar de não podermos dizer o mesmo sobre o mosquito transmissor. 

Cláudio: Quais devem ser as atuações dos profissionais de saúde em relação à dengue, à chikungunya, à zika e à febre amarela?  
Luzia:
Pedimos aos profissionais de saúde, sejam eles da rede suplementar ou da rede pública, que deem a devida importância ao diagnóstico precoce: à observação dos protocolos clínicos de atendimento, à prevenção das formas graves, principalmente da dengue, às atualizações quanto ao manejo clínico, aos protocolos, aos manuais do Ministério da Saúde e, principalmente, à notificação dos casos suspeitos. É muito importante que esses profissionais de saúde, ao atenderem indivíduos com suspeita, lembrem-se que existe o trabalho de campo da prevenção. É muito importante que as ações sejam desenvolvidas rapidamente, já que a transmissão é vetorial; quando se faz um diagnóstico precoce, é possível instituir medidas e prevenir as formas graves das doenças, sobretudo da dengue, que tem um largo espectro. A hidratação, a coleta dos exames e o acompanhamento do paciente são ações fundamentais para prevenirmos os casos graves e os óbitos. 

Cláudio: Quais são as orientações para a população no controle dessas doenças? 
Luzia:
A primeira recomendação, sem dúvida, é o controle dos criadouros — cuidar semanalmente dos quintais, mobilizar os vizinhos, os colegas de trabalho e a comunidade a fazerem o mesmo, pois se perde pouco tempo nessas ações. Trabalhando juntos, podemos combater, efetivamente, a disseminação das doenças. Aos pacientes, orientamos que, tão logo percebam os sintomas sugestivos dessas doenças, procurem atendimento médico para rapidamente serem orientados, avaliados e os casos suspeitos, notificados. A população precisa estar ciente, conhecer o seu papel e realmente desempenhá-lo. 

Autoridade no assunto

“A importância de abordar os temas dengue, febre chikungunya, zika vírus e febre amarela se traduz pela atualidade e gravidade dessas doenças em Ribeirão Preto e no país. São problemas que podem provocar epidemias com riscos à população e nada mais oportuno do que entrevistar uma profissional que responde diretamente pela questão em nosso município, a enfermeira e epidemiologista Luzia Márcia, uma autoridade no assunto, que tem empenhado lutas, dentro e fora do município, para controlá-las.” Cláudio Souza de Paula, médico epidemiologista.

Texto: Carla Mimessi 
Fotos: Ibraim Leão

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