Simplicidade na arte

Simplicidade na arte

Aos 84 anos, o pintor e escultor Ary de Lázari se mantém na ativa desenvolvendo um talento percebido ainda quando criança e que conferiu a ele um rico repertório artístico e de vida

Afirmar que a arte de Ary de Lázari é simples não significa, de forma alguma, diminuir a sua importância. O artista pinta e esculpe em nome de um talento nato, lapidado por cursos de desenho e um olhar atento ao cotidiano. Sua arte é propriedade na essência: as peças que cria compõem um acervo pessoal rico e incalculado. Apenas algumas obras, da primeira exposição que fez, foram comercializadas. Todas as outras estão cuidadosamente guardadas em seu ateliê.

A referência de simplicidade está na própria afirmação do artista. Ele diz que a arte não precisa de tradução, que é simples e de interpretação individual. A riqueza, portanto, está no repertório de cada observador e a do próprio artista. Ary se vale das memórias para pintar e conta, detalhadamente, a história de cada criação. Ao esculpir, usa de toda minuciosidade para dar expressão a figuras tão diminutas que chegam a medir três milímetros.

As miniesculturas de Ary estão registradas no livro “Minicriaturas”, lançado em janeiro de 2017, que rendeu uma exposição, depois de 19 anos sem apresentar suas obras, no RibeirãoShopping, em cartaz até maio. As pinturas também ganharam registro especial no livro “Ribeirão Preto, Registros & Memórias”, elaborado há cinco anos. A seguir, o ribeirãopretano conta, muitas vezes emocionado, a trajetória que tem percorrido pelas artes.

Ary: “A arte não tem segredo. Ela é muito simples, não precisa de tradução”

Como o senhor passou a se interessar pelas artes?
O meu pai era especialista em fachadas de residências. Ele ajudou a fazer as molduras da Igreja de São Benedito, do Theatro Pedro II, entre diversas outras. O meu irmão mais velho, que tinha diferença de 20 anos comigo, era entalhador e fez curso de desenho. Eu morava próximo à Francisco Junqueira, antes da construção da avenida. O lado dos Campos Elíseos era um brejo, onde eu encontrava argila de boa qualidade. Vendo meu pai e meu irmão em seus ofícios e com a matéria-prima à disposição, eu moldava com facilidade algumas figuras. O pessoal de um bar próximo me incentivava a fazer essas imagens, dando um refrigerante ou algumas balas. Aos 11 anos, fui trabalhar em uma marmoraria, auxiliando escultores. Fiz isso durante três anos, mas confesso que o mármore não me atraía. 

Quando o senhor sentiu a determinação para fazer das artes a sua profissão?
Quando trabalhei no escritório do Dr. João Palma Guião, dei alguns desenhos de presente, inclusive para o filho dele, o Rui Flávio. O pai gostou do meu trabalho e colocou uma moldura. Naqueles dias, teria uma exposição na Legião Brasileira e ele me deixou uma ordem dizendo o horário que o governador do Estado estaria lá para inaugurar a minha exposição. Imagine só: eu tinha visto poucas pinturas na vida e ele dizia que a exposição era minha. Acatei a ordem e cheguei ao local antes da abertura. Levei um susto ao ver os trabalhos de Almeida Junior, Pedro Alexandrino e o meu ali do lado, feito a lápis. Fiquei com tanta vergonha que peguei uma poltrona de encosto alto e coloquei na frente do meu desenho. Eu devia ter 11 anos e não me sentia à altura, mas isso despertou em mim o desejo de aprender a desenhar. Depois de estudar, voltei a fazer uma exposição no mesmo local. O Rui brinca comigo dizendo que aí, então, eu tirei a cadeira da frente do meu trabalho.

De que forma descobriu a sua aptidão para as miniesculturas?
Eu aprendi a pintar, participei de exposições e passei a dar aulas. A matéria-prima do professor é o giz e do desenhista é o grafite. Com esses dois materiais a minha disposição, toda hora, comecei a fazer as miniesculturas. Honestamente, eu gostava daquilo que fazia e guardava em uma caixinha de algodão. Uma das professoras, a Maria de Lourdes Jorge, presidente do Centro de Professorado Católico, viu o que eu produzia e disse que aquilo não podia ficar escondido. Ela motivou outros professores e eles fizeram uma exposição no Hotel Umuarama. Na época, estava inaugurando a TV Tupi, em Ribeirão Preto, e eu dei entrevistas. Aquilo repercutiu bastante. Acabei indo para São Paulo, na presença do governador e não parei mais. Não fiz muitas exposições, mas das que participei foram muito concorridas. Uma delas, no aniversário de Andradina, em 1968, foi visitada por Cora Coralina, quando ainda não era famosa. Ela chegou em mim, perguntou se eu era o autor e me pediu licença para usar mais de uma linha do meu livro de registros. Acabou escrevendo uma página inteira e nos tornamos amigos. 

Há 25 anos, Ary passou a esculpir também em pedra sabãoQual foi a sua exposição mais recente?
Fiquei 19 anos sem fazer uma exposição. Recentemente, minha nora deu um livro para uma pessoa que trabalha no RibeirãoShopping e eles me convidaram para expor. A mostra foi encerrada em maio. Tanto tempo depois, eu não sabia nem como estavam as peças que produzi. Acabei fazendo e foi tudo bem. Coloquei cinco esculturas que ainda não haviam sido expostas, com destaque para duas delas, em pedra sabão, que receberam os títulos de “Aprendo ainda” e “Eu sei desenhar”. A primeira, como eu frequentava muito a Legião Brasileira, a bibliotecária sabia que eu gostava de pintura e escultura e me reservava livros. Eu não tinha muitas referências e ela me ajudava com isso. Um dia, mostrou um livro que contava fatos curiosos sobre Michelângelo. Eu lembro como se fosse hoje. Ele usava um amuleto com a figura de um velho com um livro na mão e a frase, em italiano: “Aprendo ainda”. Depois de 70 anos, fiz o trabalho de uma pessoa com um livro na mão e dei o mesmo título. 

Qual é a sua relação com o que produz?
Eu não vendo os meus trabalhos. Na minha primeira exposição, vendi algumas obras. Quem comprou foi o Orestes Lopes de Camargo, o Jairo Cunha, que era arquiteto, e alguns outros amigos. O Antonio Palocci, que era escultor e trabalhava na Prefeitura, até falou que poderia arrumar pessoas para me ajudar, mas eu quis fazer com recursos próprios. Eu estava rodeado de pessoas querendo ajudar e a exposição acabou sendo um sucesso, mas, como eu não vendo as obras e não tenho muita motivação para expor. 

Qual é a diferença na sua forma de se manifestar através da pintura e da escultura? 
Os trabalhos de pintura e escultura são sempre inspirados em temas sociais. Eu desenvolvi bastante essa aptidão porque tenho facilidade, é algo instintivo, é a minha forma de me manifestar. Cursei a escola livre de pintura, a Belas Artes, fundada em 1950. Odilla Mestriner frequentava essa escola, assim como Arnaldo Mulim, Paivinha, Varalda e Zorzenão. O diretor da Faculdade de Medicina, aberta em 1951, Zeferino Vaz, em combinação com o Antonio Palocci, diretor da Belas Artes, acreditava que a ciência e a arte deviam estar juntas. Nós, do curso de artes, frequentávamos as aulas de anatomia e alguns alunos da Medicina assistiam as nossas aulas. Durante um período, houve um intercâmbio muito bom. A cidade era bem menor e o bosque era a grande atração. Os professores se reuniam ali e eu ficava ouvindo as conversas. Gostava do papo e aprendi muito sem participar ativamente das conversas. 

Você tem um acervo de arte particular. Qual é o tamanho da sua produção? 
Eu não parei para contar. Uma vez, encontrei um pintor que me falou para não destruir nada do que produzia porque tudo faz parte da minha vida. Eu não costumava destruir, mas guardava numa gaveta. A partir daí, passei a guardar de forma mais organizada. São croquis, desenhos de diversas fases, pinturas, esculturas e até livros de assinatura. Tenho 50 mil opiniões registradas em livro. 

A arte, então, nunca foi o seu ganha-pão. De onde vinham os recursos?
Eu trabalhei com o João Palma Guião, que era advogado da Antarctica, e, quando tinha uns 14 anos, ele arrumou um trabalho para mim na indústria. Na época, eu estava estudando; fazia curso regular e escola de Belas Artes. Quando trabalhava com o  Guião, ele deixava que eu saísse para estudar, mas depois eu não tinha autorização para sair. Meu pai estava para se aposentar, mas decidiu trabalhar por mais dois anos para que eu pudesse continuar apenas estudando. Naquela época, os filhos tinham que participar das despesas da casa. Continuei estudando e fui trabalhar em um barzinho que meu irmão tinha aberto. Depois, passei a carimbar sacos na Secretaria da Agricultura. A seção de Irrigação, Drenagem e Conservação do Solo era nova e eles precisavam de um desenhista. Passei a exercer a função e foi um período de excelentes aprendizados. Ali, acabei fazendo, também, muitos desenhos para ilustrar cartilhas para as professoras que iam ensinar nas fazendas. O reconhecimento vinha de diversas formas. Certa vez, o Secretário da Agricultura do Estado até quis me conhecer. Além disso, uma ou duas vezes ao mês, eu ia para São Paulo a trabalho. Meu chefe marcava as visitas no fim de semana e dava de presente para mim entradas em exposições, enfim, estava me influenciando a expandir meu repertório. 

Quando passou a atuar como professor? Esse trabalho era feito em paralelo com outras atividades?
O ex-governador de São  Paulo, o engenheiro Lucas Garcez fez um plano quadrienal e, quando terminou o governo dele, acabou o meu contrato. Perdi o emprego e fui trabalhar na Prefeitura. Eu saí de uma Ferrari e entrei em um carro de boi. Passei a ganhar o dobro, mas com pouca estrutura. Logo me colocaram como encarregado da seção e acabei me envolvendo em uma parte mais burocrática do que técnica, mas não me arrependo. Fiquei 29 anos na Prefeitura e, com as outras funções que já tinha realizado, aposentei cedo, em 1982, com 35 anos de trabalho. Como eu tinha o registro de desenho e meu cargo era técnico, podia acumular com a função de professor, que exerci por quase 40 anos. Tive muitas passagens em que percebi como um professor pode mudar a vida de um aluno. É uma profissão que eu exercia com amor. Tive, em média, 25 mil alunos. O magistério, para mim, não era um pesadelo, era uma satisfação. Tenho certeza de que gostava dos meus alunos e eles gostavam de mim.

Da fase como professor, o que fica na saudade? 
O quanto eu aprendi com os alunos. Lembro de uma aluna loirinha, de olhos azuis, que sentava na segunda No “Ribeirão Preto, Registros & Memórias”, estão registradas algumas pinturas do artistacarteira e sempre dormia na aula. O curso era noturno. Eu nunca a acordei. A cada bimestre, os alunos entregavam o caderno para avaliação e eu dava uma medalha ou um selinho para incentivá-los. Isso funcionava muito como motivação. Essa menina apresentou o caderno sujo e, quando fiz essa consideração, ela começou a chorar. A resposta veio uma semana depois. Fomos visitar uma plantação de tomates e, de longe, ela veio ao meu encontro, gritando meu nome, usando um grande chapéu. A sujeira no caderno se justificava: ela acordava às cinco horas da manhã para ajudar o pai, por isso, ficava com sono na aula, e as roupas ficavam impregnadas de terra, por isso sujava o caderno. Diante disso, perguntei como ela conseguia fazer um desenho tão limpo. Às vezes, nós pensamos que estamos fazendo uma avaliação honesta, mas não estamos. Na sala de aula, todos uniformizados, parecem iguais, mas cada um tem uma história. A partir daí, comecei saber mais da história de cada aluno sem ficar perguntando, mas avaliando através dos desenhos. Além dessa, tiveram outras histórias interessantes, como o aluno que não tinha os dois braços e desenhava com os pés. Foi a melhor turma que eu tive. Ele desenhava muito bem e isso despertava a motivação nos outros alunos.

Nas suas obras, o que o senhor retrata?
Essas passagens que contei. A inspiração vem do cotidiano, das lembranças de quando era criança. Nas esculturas, faço figuras do cotidiano. Faço como se fosse um trabalho grande, com todas as expressões. Na verdade, eu não sei fazer uma obra temática, por isso, não pego encomendas. A arte vem de uma maneira diferente. Ela tem que comunicar.

Quais são os materiais que mais utiliza?
Para as esculturas, uso o giz, o grafite e a pedra sabão. Quando falo grafite, estou incluindo o lápis de cor. O melhor lápis para fazer escultura é o branco, o que mais sobra na caixa, então, é um material muito fácil. A pedra sabão é a mais recente. Uso há uns 25 anos. Foi nesse material que o Aleijadinho fez seus trabalhos. Na pintura, eu fiz de tudo: óleo, têmpera de ovo, aquarela, colagem com metais, enfim, os mais variados experimentos.

Em que forma de se manifestar está realmente o Ary?
Tudo depende. Eu me realizo com todas elas. Quando pinto uma paisagem, isso me motiva: pintar e gostar do que eu faço, embora esteja fazendo quase uma reprodução da natureza. Sempre tem alguma coisa a mais do que simplesmente a natureza. A arte não tem segredo. Ela é muito simples, não precisa de tradução. A arte que tem um significado para uma pessoa não é a mesma para outra. Cada um enxerga de uma forma. 

Texto: Máisa Valochi
Fotos: Ibraim Leão

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