Uma nova consciência

Uma nova consciência

Entrevistado pelo professor Sheldon de Assis, o ativista do Movimento Social Negro Paulo de Oliveira promove a reflexão acerca do Dia Nacional da Consciência Negra

Nascido em Ribeirão Preto em 1954, foi no antigo bairro do Bangu, na época um reduto da população negra, que Paulo Cesar Pereira de Oliveira forjou e assumiu sua identidade negra, recriando tradições e valores africanos. Comprometido com o combate ao racismo e com a promoção e a defesa das tradições africanas trazidas para o Brasil por homens e mulheres escravizados, Paulo fundou o Egbé Awo Àse lyá Méson Òrun e o Centro Cultural Orùnmilá, mergulhando como ativista na luta da população negra e periférica da zona Norte da cidade. Utilizando a ancestralidade africana como instrumento de libertação e promoção da cidadania, vem atuando decisivamente há mais de 30 anos para as conquistas do Movimento Social Negro em Ribeirão Preto. Nesta entrevista, concedida ao professor de História Sheldon Pereira de Assis, Paulo conta a origem da obrigatoriedade da celebração do Dia Nacional da Consciência Negra em Ribeirão Preto e explica por que discutir o racismo se faz tão necessário nos dias atuais.

Sheldon: A Lei 10.639/03 instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas de Ensino Básico. Isso não é prova de que o preconceito racial ainda não foi superado no Brasil?
Paulo: É a confissão do Estado Brasileiro de que ele é racista. Na lei 10.639, o Estado confessa: sou racista! Acontece que a desconstrução do racismo passa, necessariamente, pela Cultura.

Sheldon: Você acredita que essa lei influenciará a consciência brasileira em relação a esse tema?
Paulo: Há um erro de origem nessa lei. Até hoje ela não foi implementada porque se vetou a participação da sociedade civil nesse processo, o que constava no projeto. A universidade não tem conteúdo até hoje — com raríssimas exceções, ensina História da África para professores — e, ainda, em uma linguagem extremamente racista, eurocentrada. A lei 10.639 só vai cumprir seu papel quando vencer a barreira da entrada da cultura da África na escola. A parte de história se resolve com tranquilidade porque é possível, com boa vontade, pesquisar os diversos impérios. Isso passa com a maior facilidade, mas a cultura tem um tom de subjetividade e de ideologia, coloca o dedo na ferida, o que faz com que as escolas bloqueiem. Como introduzir cultura africana em escolas com capelas onde os alunos rezam o “Pai Nosso” pela manhã?

Sheldon: Concordo. Eu mesmo, quando fiz faculdade, não tive História da África como matéria obrigatória, mas optativa.
Paulo: Há dez anos não tinha nem como opção, simplesmente não existia. Essa foi uma das conquistas do movimento social negro no país. Para entender, é preciso voltar a gênesis do racismo, ver como ele surge. Não é necessário discorrer sobre a história da escravidão, mas ela cria um problema muito sério para os missionários católicos: como posso escravizar outro ser humano em função da sua origem, da cor da sua pele, se Cristo prega que somos todos iguais? Através da reificação, da coisificação desse ser humano. Então, como negar humanidade a um portador de cultura? Negando-lhe cultura, nego-lhe humanidade. Resultado: 500 anos depois ainda é assim, continua se negando a humanidade aos africanos e seus descendentes. Isso é disseminado de tal forma na sociedade brasileira que morrem mil negros por dia, das formas mais absurdas, com os argumentos mais esdrúxulos e ninguém liga, é “normal”. Afinal, se não é humano posso matar, prender, torturar. A maioria das pessoas não está preparada para re-humanizar esse descendente africano.

Sheldon: Você está falando de valorizar de verdade a cultura, e não tratar como folclore.
Paulo: É exatamente esse o tratamento. Isso acontece muito agora, dia 20 de novembro, quando diretores levam grupos de capoeira, maracatu ou qualquer outra expressão artística para dentro da escola sem contextualizar. Com isso, perdem-se os valores civilizatórios africanos, que poderiam contribuir com a escola e a humanidade. Cito sempre o exemplo da palavra ‘ntu’ (da língua africana Banto), que representa humano. Significa “eu só existo porque você me reconhece”, ou seja, remete a um senso coletivo totalmente diferente do pensamento ocidental, sustentado no individualismo expresso em “penso, logo existo”. Essas coisas deveriam estar sendo discutidas dentro da escola no Dia da Consciência Negra. Digo que a cultura ocidental é a “cultura masturbatória”, do eu sozinho comigo mesmo me basto.

Sheldon: Sim, a data deveria marcar a luta contra o preconceito racial no Brasil, mas acabou se tornando somente mais um dia de descanso. Muitas vezes, as crianças nem sabem por que é feriado.
Paulo: O tema é mal trabalhado pelas escolas, pelo Estado, mas não pela sociedade civil organizada. Nós construímos o feriado em Ribeirão Preto. Lembro, há 30 anos, quando subíamos a rua General Osório tocando tambores e falando de Zumbi, certa vez, uma senhora me parou e disse “olha, eu ‘recebo’ essa entidade também”. Quer dizer, ninguém nem sabia do que se tratava. Hoje, já se sabe quem foi Zumbi dos Palmares. Costumo dizer que esse é o único feriado — e por isso incomoda tanto — que não foi dado pelas elites, mas conquistado pelo movimento social negro. Aqui na cidade insistimos todos os anos, até que um dia, para evitar participar de uma Audiência Pública para discutir racismo institucional, o ex-prefeito Welson Gasparini decretou o feriado. É uma construção, em todas as cidades onde existe o feriado, foi graças à luta do movimento. As elites lutam até hoje para derrubá-lo.

Sheldon: O estereótipo social atrelado aos negros ainda é muito forte no imaginário coletivo brasileiro e a televisão, em geral, reforça isso colocando negros em papeis de empregados ou marginais. Como lidar com esse problema?
Paulo: O combate ao racismo ocorre em todas as instâncias. O documentário de Joel Zito Araújo, “A negação do Brasil”, trata exatamente dessa questão. Há toda uma luta por espaço político, econômico, social e ninguém quer deixar seu espaço. A partir do momento em que o movimento social negro avança, sente a reação adversa. Temos o caso da Taís Araújo, por que isso? Porque é o “não lugar”. Ela está ocupando um espaço que, historicamente, não foi determinado para um negro, por isso, o racismo se explicita. Enquanto o negro está na periferia, na biqueira usando droga ou sendo preso todo dia não tem problema nenhum, mas um casal de negros protagonizando uma série na Globo incomoda.

Sheldon: A internet possibilitou às pessoas externarem suas opiniões e muitas estão sendo as vítimas desse novo modelo de racismo.
Paulo: Mudou apenas o veículo de expressão do racismo. É só uma das suas formas, que ganha visibilidade quando é o caso de alguém como Taís Araújo, mas tenho certeza de que milhares de negros estão passando por situações semelhantes diariamente. Há essa expressão da internet, mas há outra, muito maior, que é a física. O racismo brasileiro, o mais bem elaborado do mundo, faz crer que se você seguir tudo que papai branco mandar, ele pode ser superado, mas está latente. Esse é um diferencial do racismo norte-americano. Lá não teve um apartheid velado como aqui. Ribeirão Preto é uma cidade apartada. Existe a Ribeirão Preto e a Ribeirão dos pretos.

Sheldon: Muitas vezes, o negro não sabe nem como lutar contra esse racismo velado, justamente porque não é externado como nos EUA.
Paulo: Não sabe. Um dia uma senhora bem-sucedida, moradora da zona Sul, ligou para mim contando que perdeu o chão. Tinha sido abordada pela polícia, em seu carro importado, na frente da escola quando deixava os filhos pela manhã. Entrou em pânico. Não estava preparada como a Taís Araújo, por exemplo, que disse “não vou tirar, deixa a mensagem para todos verem”. Quando nós lutávamos por cotas, as pessoas questionavam se isso não aumentaria o racismo. Nada aumenta o racismo, apenas o explicita, porque ele é latente. Eu quero esse racismo explicitado. Para mim, é ótimo arrebentarem com Taís Araújo porque eu estava vendo a Globo News e o tema estava lá, na pauta do dia. A explicitação do racismo nos oferece instrumentos e armas para fazer o combate.

Sheldon: Todo tipo de preconceito é ruim, não existe um melhor ou pior. Negros, homossexuais, obesos, deficientes, moradores de rua. No Brasil, o racismo só não é aberto, como na Europa e nos Estados Unidos. As pessoas raramente se revelam racistas, mas ele é propagado em piadas e em frases veladas.
Paulo: Racismo e preconceito são diferentes. O racismo é praticado pelo Estado, pela igreja, pela Educação. É institucionalizado. Pode-se não gostar de uma pessoa gorda, mas ninguém mata ninguém por ser gordo. Uma loira gorda não vai ser arrastada como foi a moça negra na favela. O movimento gay é muito mais forte que o negro porque quase todo mundo tem na família. Costumo dizer que a Dilma deve ter, o Alckmin também, mas nenhum desses que estão no poder tem um parente negro.

Sheldon: Você acredita que, em longo prazo, o sistema de cotas possa trazer benefício para a sociedade brasileira?
Paulo:
Acredito que isso possa não resgatar, mas elucidar esses valores civilizatórios africanos que estão escondidos. Não temos negros na pesquisa. Estamos lutando para ter negros graduados. Não temos negros na produção científica, apenas raríssimas exceções, pinçadas aqui e ali. Acho que a hora que os negros estiverem na pesquisa, na mesma proporção que os brancos, teremos uma evolução para o Brasil. É um engano as pessoas acharem que o racismo é um problema dos negros, eles são as vítimas, mas o racismo é um problema da sociedade brasileira, é uma doença social que impede mentes negras brilhantes de ascenderem e elas vão para o crime, a porta que está aberta.

Sheldon: O termo “escravo” é usado de maneira errada, pois ninguém é escravo e, sim, escravizado. Carrega em si uma ideia pejorativa, naturaliza essa condição, mas sabemos que os negros escravizados sempre resistiram. As religiões afro-brasileiras são uma prova disso.
Paulo: Não trabalho com esse conceito. Religião, para mim, não se aplica a nossa tradição, por isso, falo que sou sacerdote de tradição, não de religião. O religare só serve para quem teve pecado original, nós não tivemos pecado original, portanto, não temos essa religação. Há um contínuo civilizatório africano no país que preserva indumentária, alimento, língua, pensamento, que forma todo um contínuo da civilização africana em espaços que alguns denominam de religião em função da questão histórica. Primeiro, era considerado crime, depois loucura, virou seita e, por fim, deram o nome de religião, deixando todo mundo feliz. Como diz Nietzsche, por traz de cada palavra criada pelo ocidente contam-se milhares de mortos. Religião é mais uma dessas que, para nós, representa morte. Também não aceito essa questão do ‘vamos lutar contra a intolerância religiosa’. Quem quer ser tolerado? Eu não estou lutando para isso, luto contra o racismo.

Sheldon: Qual a importância histórica dessas tradições para a identidade negra brasileira?
Paulo: São, e sempre serão, fundamentais. Imagine um povo descendo nu nas praias brasileiras. Tiram seu nome e dão um nome cristão, tiram sua família e sua liberdade. A tradição é essencial porque através dela consegue-se resgatar essa ancestralidade perdida. Todo iniciado na tradição recebe um nome africano e, nesse espaço, pode tocar seu tambor, expressar-se, alimentar-se como na África, porque o que é tratado aqui no Brasil como comida de Orixá lá é comida de todo mundo, vendido em estrada, é comida de todo dia.

Sheldon: Quais são os avanços que você aponta nesse sentido?
Paulo: Não há como negar os avanços. Desconstruímos o mito da miscigenação. Quando demos o salto de afrodescendência, colocamos a discussão em outro patamar, acabou a questão de ‘tons de pele’. Os avanços foram inúmeros, sem dúvida, porque, há 20 anos, a palavra racista não aparecia em absolutamente nada na grande mídia. Hoje, você liga a televisão e, de uma forma ou de outra, ainda que na maioria das vezes estereotipada, a discussão está lá.

Sheldon: Particularmente em Ribeirão Preto, quais são os avanços do movimento social negro?
Paulo: Infelizmente, a avaliação aqui é a pior possível. A atual gestão desconstruiu tudo o que construímos. Até a prefeita Dárcy Vera assumir tínhamos uma Assessoria de Promoção da Igualdade Racial ligada diretamente ao gabinete; o projeto Baobá de implementação da lei 10.639; o Comitê Técnico da Saúde da População Negra, onde reunimos Hemocentro, USP e várias entidades para debater sobre anemia falciforme, uma doença específica da população negra que atinge 6% dos afrodescendentes e através do qual conseguimos que se fizesse no teste do pezinho o exame de eletroforese, que a detecta nas crianças. Há três anos, a cidade não tem Carnaval. Várias lutas e conquistas históricas foram por água abaixo. Essa gestão, para a questão racial, foi um retrocesso total. Os conselhos municipais foram aparelhados, com presidentes do governo e não da sociedade civil. Enfim, para quem faz movimento social foi tenebroso porque tínhamos conquistas concretas que foram perdidas.

Sheldon: E no cenário nacional, o que pode ser considerado avanço ou retrocesso?
Paulo: Nossa luta não para. É fluxo e refluxo o tempo todo. No plano nacional, 2015 também está sendo marcado por retrocesso, acabaram de extinguir o Ministério de Promoção da Igualdade. É assim, você avança, avança chega lá na frente toma uma bordoada, depois avança novamente.

Sheldon: Qual mensagem gostaria de deixar para a sociedade brasileira?
Paulo: Essa é uma luta que eu gostaria de ver incorporada pela sociedade como um todo. Militamos sempre em contato com os movimentos sociais, mas você não vê os movimentos sociais incorporando essa questão. Existe a luta pela terra, pelo meio ambiente, mas a questão racial não perpassa a discussão dentro desses ambientes. Isso é a naturalização do racismo. Por exemplo, os ambientalistas fazem um alvoroço se cortaram uma árvore, agora, se matam um monte de negros, não estão nem aí. Estava na Rio + 20 e via sempre meia dúzia de pessoas interessadas nas palestras, mas a fila para ver o navio do Greenpeace era enorme. Essa alienação forçada que, com a internet, parece que está ficando mais acentuada, gostaria de ver diferente. Você monta um debate e o público se restringe a meia dúzia de sempre interessada em uma discussão mais séria. O que posso deixar como mensagem é a necessidade do engajamento de toda a sociedade nesta causa. Somos a maioria da população e lutamos para sermos tão humanos quanto os outros.

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Uma verdadeira aula

“O Paulo é uma autoridade em história e cultura afro-brasileira, não poderia ter entrevistado pessoa melhor no Dia Nacional da Consciência Negra. É engajado e um verdadeiro professor, um mestre no assunto que, de maneira didática, mais do que transmite conhecimento, o transpira, levando a questionamentos e indagações extremamente profundas. Esta foi uma experiência ímpar, por fazer algo inédito e, ao mesmo tempo, tão próximo de minha vivência, pois, como afro-descente e professor de História, sempre abordo a questão racial em minhas aulas e discussões diárias.” Sheldon Pereira de Assis, professor.

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Yara Racy
Fotos: Julio Sian

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