Uma nova relação

Uma nova relação

A advogada Cristiane Heredia discorre sobre direitos e deveres de profissionais e empresas no home office e esclarece como são conduzidas as questões judiciais da área

Texto: Raissa Scheffer

Fotos: Luan Porto

Desde março de 2020, cerca de 90% das empresas brasileiras aderiram a alguma modalidade de home office, segundo dados da Fundação Instituto de Administração (FIA), que ouviu empresas em todo o Brasil. Esse formato, que se consolidou no mercado, também trouxe dúvidas sobre direitos e deveres de profissionais e empresas. 

A Consolidação das Lei do Trabalho (CLT) regulamenta o teletrabalho, mas não especificamente a rotina do home office. Assim, medidas provisórias e negociações coletivas com sindicatos tiveram protagonismo nessa nova realidade, com mais rápida adequação ao cenário imposto pela pandemia, como explica a advogada Cristiane Heredia, pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho.

Na entrevista a seguir, Cristiane esclarece as regras e as questões que já são enfrentadas por tribunais, como pagamento de custos com internet de banda larga e horas extras em razão da realização de trabalho e comunicação entre empregado e empregador fora do horário do expediente. 

Existe alguma regulamentação ou legislação específica para o trabalho remoto? Com o aumento do home office durante a pandemia, houve avanços na legislação nesse sentido? A CLT sofreu grandes alterações que entraram em vigor no ano de 2017, dentre as quais disposições específicas para o teletrabalho, que não é exatamente a mesma coisa que o “novo” home office. Em razão da pandemia de Covid-19, várias atividades que normalmente eram realizadas nas empresas passaram a ser feitas em regime de home office como forma de evitar o contágio e assegurar a continuidade de atividades empresariais. Esse home office é basicamente o mesmo trabalho desempenhado na empresa, que passa a ser feito na casa dos trabalhadores, estando, assim, sujeito às regras gerais do trabalho, sem que exista uma disposição específica para esse tipo. Além de Medidas Provisórias editadas que afetaram as relações laborais, os instrumentos de negociação coletiva com sindicatos, por meio de acordos coletivos ou aditivos às convenções coletivas, tiveram protagonismo nessa nova realidade, com mais rápida adequação à nova realidade imposta.

Pode nos citar quais são as principais regras ou recomendações para que o trabalho em home office seja adotado de forma a não desrespeitar os direitos e deveres trabalhistas? A primeira recomendação é que a alteração do contrato de trabalho para home office seja feita por escrito em “aditivo contratual”, no qual as partes estabelecem as alterações que serão realizadas, por quanto tempo, etc. Desde logo é importante frisar que a alteração para o regime de trabalho remoto não gera redução salarial ou desobrigação das cláusulas contratuais previamente estabelecidas. É preciso, ainda, que ambas as partes contratantes ajam a todo o tempo com boa-fé, não se exigindo labor fora do horário vigente em contrato ou diferente do que foi pactuado, e que os trabalhadores realizem suas atividades na forma estabelecida, mesmo sem a supervisão e o controle que normalmente ocorrem nas atividades desenvolvidas presencialmente.

Como ficam as questões como horário de trabalho, banco de horas e pagamento de horas extras nesse modelo de trabalho? A modificação transitória para o regime de trabalho remoto não gera alteração automática nas cláusulas de contrato, permanecendo as mesmas obrigações e os mesmos direitos, inclusive em relação ao tempo de trabalho, de intervalo para descanso e refeição, etc. O desafio é estabelecer uma forma segura de controle, de forma que os trabalhadores tenham registrados corretamente seus efetivos horários de trabalho e intervalos, não sofrendo perdas monetárias em relação às horas extras que eventualmente possam ser sonegadas. Da mesma maneira, as empresas também precisam possuir provas desses horários, evitando possíveis condenações judiciais ao pagamento de horas extras não realizadas efetivamente. Vários aplicativos e programas foram disponibilizados no mercado com essa finalidade, cujo uso é recomendado, inclusive, para empresas de pequeno porte.

Os custos que o profissional tem no trabalho em casa, como energia e internet, por exemplo, devem ser de responsabilidade de quem? O risco e o custo da atividade são da empresa, por regra legal geral. Estabelecida a necessidade do trabalho em home office, é recomendável que a empresa propicie aos trabalhadores os meios para a realização, sendo considerados ferramentas de trabalho. Assim, se no local de trabalho os trabalhadores dispunham de computador e programas específicos e necessários para a sua função, cabe à empresa disponibilizar, em regime de comodato (empréstimo), essas mesmas condições. Os trabalhadores podem utilizar seus próprios notebooks, passando a empresa a arcar com o custo de manutenção do equipamento que é utilizado no trabalho. As partes podem, ainda, estabelecer um valor mensal para fazer frente ao custo adicional de energia elétrica e internet de boa qualidade, que não tem natureza salarial. Alguns sindicatos, atentos a essa nova realidade, já negociaram coletivamente esse custo. No entanto, caso não haja previsão em instrumento coletivo (que é o mais recomendável) e nem em pacto direto com os empregados, há a possibilidade de a questão ser decidida na Justiça, já existindo algumas decisões condenatórias que ponderam os elementos a verificar o impacto nessas despesas pelo trabalho em casa. Não é automática a determinação de pagamento da conta total pelas empresas, já que são levados em conta outros elementos balizadores além do simples aumento do consumo de energia, tais como outros moradores na mesma residência que estejam também em trabalho remoto. 

Em relação a benefícios como vale transporte ou refeição, muda a obrigação de a empresa pagar no home office? Muda. O vale transporte, assim como o auxílio combustível, é um benefício que é concedido para que os trabalhadores possam ir e voltar do trabalho, não podendo ser utilizado para outras finalidades. Se for estabelecido o sistema de trabalho home office integralmente, durante esse período em que o trabalho será realizado sem necessidade de comparecimento na empresa, desaparece (transitoriamente) a necessidade de sua manutenção. Caso seja estabelecido um sistema híbrido, com trabalho em casa em alguns dias na semana e outro na empresa, haverá a redução dos dias de uso e a concessão é reduzida proporcionalmente. Porém, em relação aos auxílios para alimentação, é recomendável que esse seja mantido inalterado, ainda mais porque, normalmente, é previsto em convenção coletiva de trabalho e sua supressão pode caracterizar violação da norma coletiva. De qualquer forma, mesmo em relação ao vale transporte, é importante que essa condição suspensiva temporária esteja prevista no aditivo contratual de alteração transitória das condições para realização do trabalho.

Com a pandemia, houve um aumento de casos de descumprimento desses diretos? Quais os principais problemas enfrentados? A pandemia impôs uma realidade muito diferente, com situações sequer antes pensadas para contratos e na legislação. É mais comum que ações trabalhistas sejam propostas após o encerramento da relação contratual, embora não haja obstáculo para sua ocorrência durante o contrato. Assim, é provável que uma fotografia melhor da atual realidade exista daqui a alguns anos. No entanto, já existem algumas questões que estão sendo enfrentadas pelos juízes e tribunais, tais como encerramento de atividades sem o pagamento de verbas rescisórias, custos com internet de banda larga e horas extras devido à realização de trabalho e comunicação entre empregado e empregador fora do horário do expediente. Várias situações que hoje não possuem legislação específica serão solucionadas pela jurisprudência que começa a ser construída e, também, pelas negociações coletivas realizadas.

Houve impacto da pandemia na tramitação dos processos judiciais trabalhistas? A Justiça do Trabalho foi uma das que mais rapidamente se adaptou à realidade do distanciamento social imposto pela pandemia e optou pelo uso de novas ferramentas. Pouco tempo depois da declaração de Estado de Calamidade, já foram implantadas e passaram a ser realizadas audiências virtuais. Inicialmente, apenas audiências de tentativa de conciliação foram feitas, assim como julgamentos de recursos nos tribunais. Mais recentemente, tendo em vista a manutenção da situação de pandemia e graves índices de infecção no Brasil, passaram a ser realizadas, também, audiências de instrução, cuja forma é variável nos tribunais trabalhistas. Assim, mesmo durante a pandemia, a tramitação processual se manteve, com apenas algumas limitações. Há forte movimento para que determinados atos processuais permaneçam virtuais mesmo após serem retomados os trabalhos presenciais, tais como as audiências iniciais e de tentativa de conciliação, sustentações orais e julgamentos nos tribunais, posto que demonstraram ser mais eficientes e de menor custo para as partes. Nos parece, assim, um novo caminho sem volta a antigos e superados modelos.

Qual a saída para que empresas e profissionais consigam adotar esse formato de trabalho dentro da lei? Além de observar as normas legais, é necessário que neste momento de dificuldade mundial, as empresas estejam atentas e dispostas a dialogar com seus empregados. Mais do que simples contratos, as relações de trabalho são essencialmente relações humanas e seus espaços devem fomentar o desenvolvimento e o aprimoramento da cidadania. Este período exige, mais do que nunca, boa vontade, bom senso e negociações claras. Todos estão lutando para conseguir manter seus negócios e empregos, e os trabalhadores levaram as empresas para suas casas. A melhor relação é a que é desenvolvida em bases de simbiose e respeito, com colaboração da empresa, trabalhadores e sindicatos. As empresas que conseguirem superar esta fase de dificuldade extrema e souberem administrar as relações interpessoais, tendem a modificar para melhor seu futuro.
 

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