A vida com AIDS

A vida com AIDS

Antes uma sentença de morte, a AIDS nos dias atuais até pode ser tratada com medicamentos e oferecer qualidade de vida aos portadores, porém, permanece sendo incurável e exigindo cuidado

Depois de um período em que explodiu como epidemia, tomando muito espaço de pesquisa, discussão e conscientização, a AIDS caiu em uma espécie de esquecimento um tanto perigoso. Na atualidade, é tratada por muitos sem o merecido respeito, mas, silenciosamente, a doença continua se manifestando e seus índices são crescentes, principalmente entre os jovens. Esse e outros motivos a mantém como um tema relevante, que exige atenção. 

Ruy Barros e Lis Neves destacam a importância da adesão ao tratamento como ponto crucial para quem contrai o vírusA AIDS é o tema central da entrevista a seguir, concedida pela coordenadora do Programa DST/AIDS, Tuberculose e Hepatite, da Secretaria Municipal da Saúde, Lis Aparecida de Souza Neves, enfermeira com 29 anos de carreira, mestre e doutora, especialista na área de doenças infecciosas. Membro da ONG “ASGATTAS”, o comerciante Ruy Rego Barros, de 58 anos, conduz as perguntas com conhecimento de causa. Há 11 anos diagnosticado com AIDS e há 10, com LEMP — uma doença rara oportunista, decorrente da AIDS, que afeta a parte branca do cérebro — Ruy atua de forma corajosa, combatendo não apenas a própria doença, mas também o preconceito e a desinformação sobre a importância da adesão ao tratamento. 
 
Ruy: Quantos pacientes identificados com HIV/AIDS existem em Ribeirão Preto e quantos ambulatórios atendem essa população?
Lis:
Quando a pessoa se infecta, o vírus leva, em média, 10 anos para destruir as células de imunidade do organismo. Nesse período, dizemos que ela é portadora do vírus, por isso, a partir do ano 2000, passou-se a notificá-las também. Os números atuais correspondem a 2.700 casos de AIDS e 1.900 notificações de HIV na cidade. Isso em duplicidade, porque há cadastros de notificação do vírus que já podem estar na lista de AIDS. Atualmente, cerca de duas mil pessoas são acompanhadas nos serviços públicos. São cinco ambulatórios da rede básica do município e outro, do Hospital das Clínicas, nossa referência terciária, ou seja, dos pacientes em estado avançado. 
 
Ruy: Qual o perfil dos pacientes?
Lis:
Segundo dados de 2014, no caso das notificações de AIDS, a razão é de 128 homens para 55 mulheres. Já na notificação do vírus HIV, foram 116 homens para 37 mulheres. Na detecção, tanto de AIDS quanto do HIV, por faixa etária, fizemos uma comparação que alterou o dado nos últimos oito anos. Em 2007, a AIDS prevalecia em homens com idade entre 25 e 39 anos. Já em 2015, essa faixa de maior incidência passou para idade entre 30 e 49 anos, mas quando pegamos os dados referentes ao HIV, tínhamos, em 2007, a mesma situação. Já em 2015, houve mudança: a faixa diminuiu, com incidência maior entre 25 e 29 anos, sendo que o índice nas faixas entre 15 e 24 anos apresentou considerável aumento. A cada 100 mil adolescentes, 42 se infectaram com HIV em Ribeirão Preto. Embora não seja a faixa etária de maior prevalência, esse aumento chama a atenção, pois foi muito significativo. É um dado importante, que demonstra como as pessoas talvez não estejam tão preocupadas com a prevenção. Com relação às regiões, a Oeste e a Norte da cidade apresentam maior incidência. O ambulatório com maior número de pacientes é o do Centro, que também atende pacientes de outras cidades da região.

Ruy: Qual o impacto desse dado referente ao aumento da incidência da doença nas novas gerações?
Lis:
O mais importante neste quadro é que as novas gerações não viram a face feia da AIDS — tanto da degeneração da doença quanto do preconceito vivenciado no fim dos anos 80 e no começo dos anos 90 —, quando só se descobria o vírus quando a doença já estava em estágio avançado e, em poucos meses, levava a óbito. Foi uma fase difícil onde, além de toda a carga de dificuldade da doença e do tratamento, que não existia naquele momento, ainda se enfrentava a questão do preconceito. A doença foi associada a comportamentos ruins, causando um sofrimento muito grande aos pacientes.
 
Ruy: Por que a temática da AIDS caiu no esquecimento nos últimos anos?
Lis:
Acho que um conjunto de fatores explica essa desatenção, embora não justifique. Um deles é que, felizmente, com os avanços da ciência, a AIDS passou a ser considerada uma doença crônica. Hoje, um resultado de HIV positivo não é uma sentença de morte como anos atrás. Em 1987, não se sabia nada sobre a doença, todos ficavam isolados, até os prontuários eram separados naquele momento, o que não acontece mais. Agora, as pessoas têm possibilidade de viver e ter uma qualidade de vida considerável, mas não se pode esquecer que é uma doença crônica com a qual se terá que conviver para o resto da vida. AIDS não tem cura, tem remédios, mas as pessoas se esquecem dos efeitos colaterais. Há uma linha muito tênue onde, ao mesmo tempo, pretende-se garantir boa qualidade de vida para quem é soropositivo, mas, por outro lado, não se pode banalizar a AIDS porque ela mata. O melhor continua sendo prevenir.
 
Ruy: Quais são as comorbidadess mais predominantes?
Lis:
Comorbidades são doenças que acontecem ao mesmo tempo — podem ser infecciosas, chamadas de oportunistas, ou decorrentes da própria AIDS. A lipodistrofia — distribuição irregular da gordura no corpo que faz algumas pessoas perderem massa da maçã do rosto e outras ganharem circunferência abdominal, o que leva a problemas cardiovasculares, por exemplo, é decorrente do uso da medicação. Entre as doenças infeciosas, a mais grave é a tuberculose, que se aproveita da imunidade diminuída do indivíduo para se desenvolver. Criptococose, toxoplasmose e alguns tipos de câncer também são comuns em pessoas com o organismo fragilizado pela AIDS, ainda mais em soropositivos que não se tratam.

Ruy: A Profilaxia Pós-Exposição (PEP) é bastante procurada? Como ela vem sendo oferecida em Ribeirão Preto?
Lis:
A Profilaxia Pós-Exposição HIV, mais comumente chamada de PEP, corresponde à iniciativa de se tomar A jornalista Yara Racy registrou a conversa entre Lis e Ruymedicamento específico, quando se entrou em contato com o vírus ou se tem uma chance de ter entrado em contato com o HIV, na tentativa de bloquear seu desenvolvimento. Um profissional de saúde, por exemplo, que tenha se furado com a agulha, pode tomar, imediatamente, com uma medicação antirretroviral por 30 dias e fazer acompanhamento. Aqui em Ribeirão Preto, não temos nenhum caso de pessoa contaminada devido a essa exposição. Na literatura médica mundial, há um ou outro caso apenas. Há alguns anos, essa é uma política também associada à exposição sexual, em casos de estupro, por exemplo. Desde 2013, a PEP se tornou uma possibilidade também para a exposição sexual consentida. Percebemos que a procura aumenta ano a ano. As pessoas têm que saber que o melhor é prevenir, mas, no caso de uma situação de risco, podem procurar esse serviço, oferecido, gratuitamente, de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h, no Centro de Referência em Especialidades Central, que fica na Rua Prudente de Morais, 35. Após as 16h  e nos finais de semana, a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da avenida 13 de Maio pode ser procurada. Ribeirão Preto é uma das poucas cidades no país que oferece esse serviço sete dias por semana, 24 horas por dia.

Ruy: Ribeirão Preto participa de um projeto nacional sobre a oferta da Profilaxia Pré-Exposição (PREP). Qual sua opinião?
Lis:
A cidade está participando de um projeto de pesquisa de prevenção combinada que avalia a eficácia das diversas modalidades de prevenção. Somos um campo de pesquisa da PREP, destinada a grupos mais expostos. A PREP é voltada a esses indivíduos, porém, não substitui o uso do preservativo. Ela não evita pegar outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), apenas previne a infecção por HIV, o que não significa que agora você “toma um remedinho” e não pega HIV. A medicação é um acessório combinado de prevenção desenvolvido para auxiliar um público muito específico de risco, que realmente não usa de jeito nenhum camisinha. É uma modalidade nova, que ainda não está liberada para toda a população. Não se trata de uma política pública, mas de uma pesquisa com duas etapas bem-sucedidas, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A ideia é ter cerca de 20 participantes em Ribeirão Preto, até porque há uma série de critérios a seguir. 

Ruy: Defina melhor o que é a prevenção combinada?
Lis:
Durante 30 anos, quando se falava em prevenção de HIV, a única alternativa era o uso de preservativo. Hoje, o Ministério da Saúde (MS) combina estratégias com o objetivo de prevenir e de reduzir o vírus circulante. Primeiro, busca-se prevenir, incentivando as pessoas que não têm HIV a colocarem uma barreira para não se infectar: o preservativo, tanto masculino como feminino. Depois, diante da possibilidade de contato, que se tome medicamento na tentativa de não se infectar e, por último, uma vez soropositivo, que se busque tratamento. O MS investe muito em programas para procurar quem é soropositivo e incentivar essas pessoas a fazerem o tratamento. Também adota medidas para tratar outras doenças transmitidas pelo sexo, que aumentam a chance de pegar HIV. Atua para reduzir danos com oferta de subsídios, como seringa e protetor labial para usuários de drogas; exame de HIV no Pré-Natal; PEP Sexual e distribuição de preservativos. Todas essas ações correspondem à prevenção combinada.
 
Ruy: As campanhas de prevenção estão sendo banalizadas e são enfatizadas apenas em datas específicas. Qual sua opinião sobre elas?
Lis:
Houve uma diminuição do interesse, tanto da população quanto da mídia, pela campanha de conscientização sobre a AIDS. Acredito que isso aconteça em função de alguns fatores. Temos vivenciado um período de outras campanhas — dengue, zika e febre amarela, por exemplo —, que acabam atropelando o calendário. Fica parecendo que insistimos em falar de AIDS quando há problemas mais graves a serem abordados. Com isso, acabamos focando nossas campanhas em datas específicas, como o Carnaval e o 1º de dezembro, Dia Internacional de Luta contra a AIDS. No entanto, realizamos ações durante todo o ano. Promovemos de 30 a 40 palestras em empresas, realizamos a campanha “Fique Sabendo”, incentivando as pessoas a fazerem o teste rápido para descobrir se tem o HIV e também distribuímos 200 mil unidades de preservativos e 7 mil unidades de gel lubrificante por mês.
 
Ruy: Como as campanhas deveriam ser melhor dirigidas para atingir a população?
Lis:
Acho que precisamos ter um pouco mais de abertura na Educação, junto aos pais e educadores, que são as referências mais próximas dos adolescentes, um público que dificilmente vai aos postos de saúde e que precisa ser atingido. É muito difícil falar sobre sexo com adolescentes, principalmente, no ambiente escolar, que se defende da reação dos pais que, muitas vezes, equivocadamente, acham que falar do tema e distribuir preservativo é incentivar o sexo. Percebemos, por mais que haja aula, internet e TV,  que a juventude tem muitas dúvidas sobre os tipos de ações, posições e comportamentos sexuais que apresentam mais riscos. Também sente medo de conversar sobre sexo com os pais e os educadores e, pior, acha que nunca vai acontecer com ela. Com toda informação que existe, os índices nessa faixa etária estão aumentando. É preciso dialogar com agências de publicidade e com a mídia e encontrar um caminho efetivo de comunicação para atingir esse público jovem.
 
Ruy: Como o programa municipal vem enfrentando o número crescente de infecção por HIV/AIDS? 
Lis:
Nossa preocupação é com relação a grupos específicos. A AIDS está diminuindo e o HIV aumentando. Isso significa que estamos conseguindo chegar às pessoas antes de ficarem doentes. Não sei dizer se aumentou a taxa de HIV, mas aumentou nossa descoberta e uma das estratégias do programa municipal é, justamente, promover e facilitar o acesso ao teste rápido de HIV para a população. Pelo menos uma vez por ano, todas as unidades se mobilizam nesse sentido e uma vez por mês saímos com o Dr. Móvel para realizar testes, mas precisamos expandir e engasgamos em como chegar aos jovens. Estamos trabalhando com ligas de universitários. A Escola de Enfermagem da USP tem alguns trabalhos que ajudam, mas ainda não encontramos o caminho. Temos uma equipe atuando em áreas de maior Coordenadora do Programa Municipal de Prevenção à AIDS, Lis Neves alerta o crescimento do índice de HIV identificado nas faixas etárias mais jovensvulnerabilidade, com foco no atendimento aos profissionais do sexo, usuários de droga e pessoas em situação de rua, além de gestantes usuárias de drogas. É uma equipe pequena, mas que sai todos os dias. Também trabalhamos com a sociedade civil, através de ONGs, que desenvolve trabalhos preventivos em nichos específicos. No momento, temos duas ONGs com projetos financiados com repasse do Programa Nacional, sendo que uma atua junto a população LGBT e transexuais, enquanto outra com caminhoneiros e profissionais do sexo, visando não somente à prevenção do HIV, mas também das hepatites e outras DSTs. Além disso, outras ONGs no município também atuam com prevenção. Precisamos da participação de toda a sociedade.
 
Ruy: Qual a importância da sociedade civil organizada no acompanhamento das políticas governamentais para o enfrentamento e o combate ao HIV/AIDS?
Lis:
A sociedade teve importância fundamental no início da epidemia. Tudo que se conseguiu foi por conta da pressão exercida por ela, mas, nos últimos anos, houve uma acomodação. Percebemos algumas pessoas começando a se mobilizar novamente e isso é fundamental para cobrar o gestores, de colocar a AIDS como pauta prioritária para o município. Há uma Frente Parlamentar de Luta contra a AIDS sendo reativada em Ribeirão Preto, pensando na criação de uma Casa de Apoio para pessoas soropositivas que não têm para onde ir, como já tivemos no passado. A sociedade civil tem papel fundamental nessa  articulação, na cobrança junto aos políticos, aos gestores e à própria sociedade para manter essa pauta na agenda de prioridades da cidade. 
 
Ruy: A sociedade civil organizada vem acompanhando grupos de ajuda mútua de pacientes e, com isso, auxiliando no seu fortalecimento. Qual a importância desses grupos para a adesão ao tratamento?
Lis:
O programa estimula que sejam efetuados esses grupos há muitos anos.  No Simioni, temos, há 17 anos, um grupo de cerca de 20 pessoas e aqui, no Central, há quatro anos são 10 participantes. Nem todas as unidades conseguiram organizar esse espaço de convivência, mas ele é importante para os pacientes, pois se torna um ponto de referência para se fortalecer e se informar. A vivência deve ser compartilhada, pois estimula o enfrentamento das dificuldades referentes ao tratamento e ao preconceito que, embora menor do que no início da doença, ainda existe. Há relatos de familiares que não deixam o soropositivo pegar uma criança, colocam seu talher na água sanitária e utilizam copo descartável. Isso permite ter ideia da desinformação que ainda persiste. 
 
Ruy: O que há de diferente no tratamento atual da AIDS?
Lis:
O objetivo do tratamento  é diminuir a carga viral, porque nenhuma medicação mata o vírus, como no caso de uma pneumonia, por exemplo. Impedir que o HIV se multiplique, diminuindo bastante sua quantidade no organismo, proporciona melhor qualidade de vida. O que mudou, principalmente, com a passagem dos anos, foi que os medicamentos estão mais seguros e em dosagem mais cômoda para o paciente.  Antes, utilizava-se entre 20 e 30 comprimidos, com várias indicações de como tomar. O tratamento era muito mais trabalhoso e havia mais efeitos colaterais. O avanço das pesquisas e da indústria farmacêutica possibilitou reduzir a medicação a um comprimido por dia, proporcionando maior comodidade posológica e acarretando menos efeitos colaterais, ainda assim, eles existem. É preciso ter essa consciência. O principal continua a prevenção e, uma vez contraído o vírus, aderir ao tratamento. Esse é um enfrentamento necessário para se alcançar melhor qualidade de vida convivendo com a AIDS. 

Programa de Prevenção

“Participo de uma ONG – ‘ASGATTAS’, voltada ao trabalho de apoio e conscientização para travestis e transexuais. Levamos não apenas insumos, mas informação e percebo que acabamos sendo uma espécie de “terapeuta” para esse público, simplesmente porque abrimos espaço para ouvir. Também frequento os grupos de apoio e acompanho de perto o trabalho da Lis e de todos os profissionais envolvidos com o Programa Municipal de Prevenção. Noto que Ribeirão Preto é referência em muitos sentidos, principalmente na atenção dedicada ao paciente e na distribuição de medicamentos. Isso merece ser destacado. Essa entrevista, proporcionada pela Revide, possibilita ao leitor olhar para a questão da AIDS por outro ângulo, abre um importante canal de diálogo e enfatiza a importância da adesão ao tratamento”. Ruy Rego Barros - comerciante.

Texto: Yara Racy. Fotos: Júlio Sian

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