Os crimes na internet

Os crimes na internet

Ao mesmo tempo em que a internet criou novas possibilidades de relacionamento, de busca de informações e de conteúdo, o universo virtual passou a ser visto por muitos como uma “terra sem lei”

Com o passar do tempo, as leis tiveram que acompanhar essas mudanças, adaptar a legislação existente e, também, criar normas específicas para avaliar a conduta dos internautas.  É o que explica a professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Digital, Cíntia Rosa Pereira de Lima. “O Direito é uma ciência social aplicada, ou seja, deve acompanhar as mudanças sociais. Nesse sentido, o constante avanço científico e o desenvolvimento de novas tecnologias fazem com que o Direito repense algumas de suas premissas. Por exemplo, a sociedade digital é marcada pela desmaterialização, tudo pode ser transformado em uma equação binária, como as músicas, livros e serviços digitalizados”. 

Segundo a especialista, essa sociedade digital se caracteriza pela eliminação dos territórios, ou seja, os bens e os dados pessoais são disponibilizados na internet circulam em escala global, ultrapassando as fronteiras físicas, o que se comprova pela atuação dos grandes provedores de conteúdo como o Google e o Facebook.  Cíntia destaca ainda que tudo acontece em fração de segundo e os fatos podem ficar armazenados, por muito tempo, em servidores em nuvens. “Todo esse contexto revela a imperiosa função do Direito em regular as novas relações e os conflitos sociais que emanam dessa nova realidade”, observa a professora. 

Essas questões podem criar reviravoltas no mundo virtual, como a recente atuação de um cracker e de um hacker em sistemas de informação, e os desafios jurídicos e econômicos do Blockchain, sistema de registros que garante a segurança das operações realizadas por criptomoedas (Bitcoins). “O digital é uma extensão do Direito levando em conta as especificidades da sociedade informacional. A sua função é pacificar esses novos conflitos sociais e garantir maior segurança jurídica”, afirma a professora. Inicialmente, a Internet era utilizada para fins acadêmicos e de pesquisa.  A partir do final da década de 90, quando a internet passou a ser uma ferramenta poderosa no comércio eletrônico, surgiu a necessidade de proteger o consumidor e as empresas desse universo. “Não significa criar um novo direito, mas, tão somente regulamentar as questões específicas decorrentes desse novo e poderoso meio de comunicação e disseminação de informação”, explica Cíntia.

Proteção ao usuário 

Para Cíntia, a sua função do direito digital é pacificar esses novos conflitos sociais e garantir maior segurança jurídicaA especialista explica que os crimes digitais podem ser considerados aqueles praticados por meio da internet ou outro sistema de informação. “O Direito Penal trabalha com uma lógica de interpretação restritiva e prévia descrição legal sobre os tipos penais (crimes). A legislação deve estabelecer as condutas criminosas praticadas na internet”, avalia Cíntia. Atualmente, de acordo com a professora, os crimes mais comuns praticados na internet são furtos de identidade para se passar por outra pessoa, crimes de estelionato, furto mediante fraude, quebra de sigilo bancário, pornografia infantil e crimes contra a honra. Esses crimes estão previstos na legislação. No Brasil, por exemplo, a professora conta que a primeira alteração para tipificar como crime algumas condutas praticadas no ambiente virtual foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8.069, de 13 julho de 1990. “O ECA dedica o “Título VII - Dos Crimes e Das Infrações Administrativas” para disciplinar as condutas especificadas como crime contra a criança e o adolescente. Em especial, a Lei n. 11.829 de 2008, alterou o ECA para abranger condutas praticadas por qualquer meio, incluindo a internet”, explica. 

Outras leis que protegem os usuários são a Lei Carolina Dieckmann, que caracterizou como crime a invasão ilegítima de sistemas de informação, e a Lei Azeredo, ambas de 2012, que enfatiza o preparo das polícias judiciárias para o combate dos crimes digitais.

De acordo com o coordenador da Comissão de Direito Digital, Internet e Tecnologia da OAB Ribeirão Preto, Izildo Inácio de Souza, o direito começou a perceber que haveria necessidade de mudanças e adaptações desde os anos 90, quando as tecnologias avançaram. “Essa mudança começou com algumas leis de proteção de softwares. Nessa época, as pessoas iniciaram a realizar cópias ilegais e piratear esses sistemas operacionais, como o próprio Windows. Por mais que não houvesse um grande tráfego de baixar arquivos na internet, eles decidiram criar a lei para combater esse tipo de pirataria”, explica o coordenador.

Izildo lembra que o combate começou na década de 90Apesar das leis criadas e adaptações feitas para proteção dos usuários, ainda existem muitas questões que envolvem o Direito Digital que não estão reguladas, em especial a proteção de dados pessoais que são expostos na internet. A professora Cíntia explica que o “Marco Civil da Internet” (12.965/ 2014) estabelece direitos e garantias para os usuários da rede mundial de computadores. Quase quatro anos depois do Marco Civil da Internet, a lei ainda não foi aprovada. “Atualmente, os projetos de lei de dados pessoais estão sendo discutidos na Câmara dos Deputados e no Senado, mas não parece que os trabalhos estão em fase de conclusão”, observa a especialista.

A falta dessa legislação se torna um grande prejuízo econômico para o Brasil, que não tem condições legais de competir com outras empresas no capitalismo informacional. “O padrão internacional faz algumas imposições. Para que empresas de outros países possam receber informações pessoais de cidadãos europeus, por exemplo, tem que se garantir um nível de proteção de dados adequado. Dessa forma, se o Brasil não tem uma lei de proteção de dados e não oferece esse nível adequado não pode receber informações de usuários europeus”, explica a especialista. Assim, startups e outros players brasileiros, na economia informacional global, poderão somente oferecer serviços para residentes de países que não têm um sistema de proteção de dados, representando um prejuízo econômico para o país.

Crimes Cibernéticos

Os crimes digitais podem ser registrados em qualquer delegacia da cidade e, também, de forma anônima e on-line. Geralmente, essas denúncias são feitas na Polícia Civil, por meio de Boletins de Ocorrência. Alguns crimes também são de atribuições federais, podendo também ser investigados pela Polícia Federal, como pedofilia, racismo e invasão de contas bancárias. 

Gonçalves: a internet dá uma falsa sensação de impunidadeSegundo o delegado da Polícia Federal, Jackson Gonçalves, em Ribeirão Preto, o crime virtual mais comum é o de pornografia infantil. Os outros crimes — fraudes, clonagem de cartões e internet bank — antes de chegar ao conhecimento da sede, no município, são encaminhados para centrais, localizada em São Paulo e em Brasília, que unificam e realizam a separação e encaminham para as respectivas regiões. 

De acordo com o delegado, antes de ocorrer esta unificação, denúncias surgiam de todos os cantos do Brasil e, muitas vezes, mais de quatro delegacias investigavam o mesmo caso, desperdiçando recursos “Por conta disso, foi criado o projeto ‘Tentáculos’ que  centraliza todas as informações. Esse procedimento fica com um grupo especial. Eles analisam as informações iniciais e investigam até chegar ao suspeito. Depois disso, eles centralizam e mandam as informações para a delegacia da região do suspeito que dará continuidade e terminará a investigação do caso”, afirma o delegado. Gonçalves explica que esse é o motivo de não haver outros crimes cibernéticos em Ribeirão Preto.  “Na realidade, restringe um pouco a nossa investigação. Só verificamos se for fraude de internet bank ou pela internet contra bens, serviços e interesses da União. Praticamente, nas fraudes bancárias, só atuamos se for contra a Caixa Econômica Federal. Os outros bancos ficam por conta da Polícia Civil”, conta o delegado. 

Para Gonçalves, os criminosos pensam que a internet, por ser muito ampla e disponibilizar recursos que permitem o indivíduo esconder a identidade, oferece um espaço de impunidade. “Isso acaba dando uma sensação de impunidade aos criminosos, o que não é verdade. Hoje, temos vários mecanismos de identificação de usuário da internet pelo IP, pelos registros e pelas próprias informações que eles colocam na rede. O meio traz essa sensação de impunidade, mas os infratores acabam sendo pegos”, observa o delegado. Segundo Gonçalves, apesar dos números apresentarem um crescimento (veja o gráfico), a média de inquéritos e flagrantes foi mantida. Ele explica que na realidade não houve um aumento, mas sim uma melhoria das técnicas para apuração dos casos, portanto, uma seletividade maior. 

Lei Carolina Dieckmann

Sancionada em 30 de novembro de 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff, a Lei 12.737, conhecida como Carolina Dieckmann — que teve suas fotos íntimas roubadas do computador pessoal e divulgadas na internet — foi a primeira medida criada para regular crimes digitais. Antes da publicação, invadir dispositivos de informática no Brasil não era crime. Casos como o da atriz Carolina eram decididos com adaptações de artigos que já constavam no Código Penal Brasileiro.  A lei, que entrou em vigor no dia 2 de abril de 2013, considera crime uma série de prejuízos que podem ser causados ao indivíduo por meio das plataformas digitais e virtuais, como invasão de dispositivos de terceiros mediante a violação de segurança com o fim de obter informações sem autorização, roubo de informações que causam prejuízos econômicos, obtenção de conteúdo de comunicações privadas de forma não autorizada e divulgação, roubo, adulteração, distribuição ou comercialização de conteúdo roubado de dispositivos informático.

As penas para esses crimes variam de três meses a dois anos de reclusão, mais multa, podendo dobrar o valor se as vítimas forem autoridades federais, estaduais ou municipais. A lei alcança também crimes que envolvam dados pessoais, como clonagem e falsificação de cartões de crédito e débito. Para a professora Cíntia Rosa Pereira de Lima, a lei Carolina Dieckmann foi importante para modernizar a descrição de alguns tipos penais praticados em sistemas de informação. “Ainda há muito que se avançar, principalmente quanto às investigações, que devem ser eficientes para que os criminosos sejam identificados e punidos. Só então a lei cumprirá seu papel realmente”, argumenta a professora.



Ampla atuação

Para Paulo Sá Elias, advogado especializado em Direito da Informática e Tecnologia da Informação, o Direito tem poder de atuação sobre crimes que acontecem em novos meios, como a Internet, mesmo que em alguns casos não haja legislação específica. “Independente de uma legislação própria, muitas vezes, encontramos a solução. Apenas o meio é novo”, explica Paulo. Casos que ganharam notoriedade na mídia, recentemente, como os ataques racistas feitos nas redes sociais contra as atrizes Taís Araújo e Cris Vianna, enquadram-se em dois tipos de crimes. “No crime de injúria racial, a ofensa é dirigida a determinada pessoa ou, pelo menos, a um grupo específico de indivíduos. Desta forma, o internauta que se dirigir a uma pessoa específica e a ofender fazendo referência à sua cor ou à religião, poderá estar cometendo o crime de injúria qualificada, racial ou preconceituosa. Já o crime de racismo, por meio de manifestação de opinião, ocorre quando há uma referência preconceituosa, indistintamente, a todos os integrantes de certa raça, cor ou religião”, completa o especialista. 

 

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