A força da fé

A força da fé

Independente de uma religião específica, trabalhar a espiritualidade tem sido o caminho escolhido por muitas pessoas para superar os momentos de adversidade impostos pela pandemia

Faz pouco mais de um ano que a pandemia de Covid-19 virou o mundo de cabeça para baixo. Mudanças, medos e incertezas acabaram levando muitas pessoas a uma profunda reflexão em busca de autoconhecimento e de uma nova perspectiva de vida. Nesse processo, é natural que cada um, com suas devidas particularidades, procure um caminho que lhe faça sentido. Fortalecer a espiritualidade — independente de uma religião específica — tem sido uma escolha recorrente.

Segundo o Padre Francisco Jaber Zanardo Moussa, o Padre Chico, acreditar em algo maior e estabelecer uma conexão com o sagrado pode, sim, trazer conforto, tranquilidade, confiança, esperança e propósito em meio ao caos. “A fé é a semente da vida, que nos move e dá significado a nossa existência. Em tempos difíceis, em que somos cercados pela escuridão, a palavra de Deus nos ilumina. Traz conhecimento para combatermos o negativismo, superarmos as adversidades e seguirmos em frente em qualquer situação, inclusive nesta que a humanidade experimenta agora, com a pandemia. Só precisamos abrir a nossa mente e o nosso coração”, ressalta Padre Chico.

Para Padre Chico, conexão com o sagrado pode trazer esperança e propósito em meio ao caos

Para Carola Duarte, que nasceu dentro da religião católica e sempre participou das atividades da igreja com a família, as provações do último ano serviram para reafirmar a importância da fé, intensificando sua proximidade com Deus. “Existe um vazio que nada preenche. Nenhum dinheiro, viagem ou closet recheado de roupas caras. A falta de Deus, seja lá de que forma a pessoa vá enxerga-Lo, não pode ser preenchida com nada material. Todos os dias, caminho rezando e meditando os mistérios da vida de Cristo, do nascimento à ressurreição. Não sei o que seria da minha vida sem a presença Dele. Ter essa intimidade com Deus e contar com a intercessão de Nossa Senhora e dos meus amigos celestiais é fundamental para mim”, declara.

Graças ao trabalho como blogueira e a visibilidade conquistada nas redes sociais, Carola consegue compartilhar seu testemunho com um número expressivo de seguidores. “Comecei a refletir sobre o Evangelho do dia e recebi um retorno que me surpreendeu. Percebi a carência que as pessoas têm de ouvir alguém falar de forma atual sobre as passagens da vida de Cristo. Fico feliz por poder ajudar de alguma maneira, compartilhando meus aprendizados e proporcionando um pouco de serenidade a quem me acompanha”, conclui.

Segundo Carola, as provações do último ano intensificaram sua proximidade com Deus

MATURIDADE ESPIRITUAL

Josefina Barboza frequenta a Igreja Missionaria há mais de 50 anos. Como cristã evangélica e como pastora de casais ao lado do marido, Vilson, aprendeu que existem três virtudes teologais: a esperança, a fé e o amor. “A fé é ‘certeza’, a esperança é ‘expectativa’ e o amor é a mola que nos impulsiona. Essas virtudes nos amparam, pois edificam a nossa a confiança na vida eterna, mesmo depois da morte física. Aplicando esse conceito no cenário atual, é crucial frisar que a crença em Deus não deve ser usada como justificativa para sair de casa sem a máscara de proteção ou para promover aglomerações em plena pandemia, por exemplo. Existem leis físicas — criadas pelo próprio Deus — que não mudam e que devem ser respeitadas. Se eu desafiar a lei da gravidade e pular de um muro alto, vou cair e me machucar. A fé não consiste em desafiar as leis da natureza, mas em saber que, mesmo diante dos problemas, da ansiedade e do luto, algo de melhor vai acontecer”, explica.

O senso de união é outro tópico destacado pela pastora. “Na igreja, somos nivelados sob o olhar de um Deus que amou o mundo de tal maneira que deu seu filho para que todos aqueles que Nele cressem tivessem acesso a graça e a vida eterna. Nunca estamos sozinhos. Podemos sempre ajudar e contar com a ajuda dos nossos irmãos, seja para algo prático no dia a dia, seja para evoluir, alcançando a maturidade espiritual e o equilíbrio emocional. Juntos, somos mais fortes”, comenta.

“Podemos sempre ajudar e contar com a ajuda dos nossos irmãos”, ressalta a pastora Josefina

AMPLIANDO HORIZONTES

Muitas pessoas também têm buscado o conhecimento para dimensionar as vicissitudes da vida nos ensinamentos espíritas. “‘O Livro dos Espíritos’, de Allan Kardec, traz o seguinte conceito filosófico: ‘Deus é a inteligência suprema e causa primária de todas as coisas’. Ou seja, Deus coordena todo o Universo, por intermédio de suas leis sábias, justas e imutáveis. Considerando essas premissas, é possível compreender a extensão e a profundidade da expressão “Pai nosso” na prece ensinada por Jesus. Como um pai amoroso, Deus tudo faz para nos educar. Todas as experiências que passamos têm um único propósito: a nossa evolução individual e coletiva”, pontua o presidente da União das Sociedades Espíritas Intermunicipal de Ribeirão Preto (USE), Mário Gonçalves. A compreensão da justiça e bondade de Deus se amplia sob a ótica da reencarnação, outro princípio espirita. “Ao considerarmos a pré- existência e a sobrevivência da alma, entendemos que tudo o que passamos tem origem nas escolhas que fazemos nesta vida ou em existências anteriores. Consequentemente, hoje estamos construindo nosso futuro”, acrescenta.

Mário explica que todas as experiências que passamos têm um único propósito: a nossa evolução individual e coletiva

Mário, que cresceu dentro do espiritismo, recorre a mais uma obra de Kardec, “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, para descrever a fé. “A fé não deve ser cega, tirando-nos a liberdade de pensar, mas, sim, raciocinada, apoiada na perfeita compreensão de que tudo ocorre segundo leis naturais e universais. A fé nos leva à perseverança, amplia nossos horizontes, dá energia e os recursos necessários para superarmos tanto as pequenas como as grandes coisas. Ela confere paciência e uma lucidez que permite ver o fim que se deseja e os meios para atingi-lo, de modo que quem a tem avança infalivelmente. A fé sincera e verdadeira é sempre calma. E a calma na luta é sempre sinal de força e confiança”, finaliza.

ENXERGAR O DIVINO EM DIFERENTES FORMAS

Fotógrafa e empreendedora, Bianca Lemos costuma acordar por volta das 5h. Vai para perto da janela, onde sente a energia do nascer do sol. Faz uma meditação. Reza o Pai-Nosso e a Ave- -Maria. Também ensinou o filho, Pedro, a oração do Santo Anjo. Toma café, lê as notícias e conversa com Deus, enquanto organiza a agenda e coloca seus planos no papel. Acredita no poder do feminino, do autoconhecimento e da natureza. Inclusive, segue alguns rituais, acompanhando, por exemplo, as fases da lua. Todos os dias, lê uma passagem de uma obra da Igreja Batista e, às quartas-feiras, faz parte de um projeto de evangelho no lar. Durante a pandemia, tem participado, ainda, de reuniões on-line sobre o espiritismo. “Eu acredito em Deus, em todas as formas que Ele se apresenta para mim. Ele me carrega no colo e nunca me desampara. Traz sempre o que eu preciso, nem a mais, nem a menos: o suficiente. Para nos conectarmos, não preciso ir até a Igreja nem em nenhum tipo de templo. Sei que Ele está comigo”, revela.

Positiva, Bianca prefere encarar as adversidades como oportunidades. “Isso não quer dizer que eu não tenha meus dias de escuridão. No início da pandemia, chorei muito e pensei que fosse enlouquecer, mas busquei o equilíbrio para sair desse looping de tensão, medo e angústia. Meu marido foi fundamental para que eu alcançasse êxito nesse processo. Procuro não pensar que algo deu errado. Foi assim porque tenho que ir por outro caminho, porque algo melhor vai acontecer”, enfatiza.

Bianca acredita em Deus, em todas as formas que Ele se apresenta

SOB O OLHAR DA PSICANÁLISE

A fé é um tema que sempre causou polêmicas no decorrer do contexto histórico da humanidade. Dentro das diversas correntes da Psicanálise, não poderia ser diferente. Ionan Ferreira Santos explica que, para o criador da Psicanálise, Freud, a fé está atrelada à religiosidade, o que aprisiona o homem ao sofrimento. Já Françoise Dolto, por meio de suas vivências cristãs, adquiriu uma visão particular sobre o assunto e criou uma obra literária denominada “A fé à luz da Psicanálise”. Nesses registros, a psicanalista francesa afirma, de maneira inédita, que Jesus não fez apologias ao sofrimento e é um tema que sempre causou polêmicas história da humanidade nem deixou um legado moralista, mas promoveu o desejo e exaltou a importância da felicidade.

“A fé fortifica, conforta, acalma, atenua e extingue inúmeros sofrimentos da alma humana”, comenta Ionan

O psicanalista cita, ainda, Wilfred Bion, que também exaltou a fé de maneira enfática em seus trabalhos. Para o representante da escola inglesa, o ato de fé faz parte do universo humano, sendo encontrado, inclusive, na essência daqueles que se dizem ateus. É algo inerente às crenças e às religiões, podendo ser utilizada tanto para o bem, quanto para o mal. “Cada um deve refletir sobre o real significado da fé e buscar, por si só, suas conclusões e respostas. Em tempos de pandemia, chamo a atenção para a seguinte linha de pensamento: a fé fortifica, conforta, acalma, atenua e extingue inúmeros sofrimentos da alma humana. A meu ver, de maneira conclusiva, a fé é um dos instrumentos que permite ao homem suportar a castração e encontrar caminhos que possam, definitivamente, fazer valer sua verdadeira razão de existir”, conclui o especialista.

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