Herança Italiana

Herança Italiana

Os imigrantes tiveram um papel determinante na evolução de Ribeirão Preto, contribuindo não só com o trabalho e com a visão empreendedora, mas, também, com valiosas tradições culturais

Localizada a pouco mais de 300 km da capital, São Paulo, Ribeirão Preto tem ares de uma metrópole moderna, mas sem perder as raízes interioranas. Com economia forte e crescimento constante, destaca-se em diferentes áreas, como agronegócio, construção civil, saúde, educação e comércio, por exemplo. Por isso, acabou se consolidando como referência na prestação de serviços de qualidade e se tornou um importante polo regional. Quem está habituado com esse cenário, provavelmente, nem imagina o longo caminho percorrido desde a fundação oficial da cidade, em 19 de junho de 1856, até agora. O que se vê hoje é resultado do trabalho de muita gente, pessoas que se empenharam para que a pequena Vila de São Sebastião, de fato, prosperasse. Entre os que semearam bons frutos por essas terras, estão os imigrantes italianos. A representatividade desse povo sempre foi bastante significativa e interferiu, diretamente, nos hábitos, nos estilos e na cultura da população local. Porém, para entender melhor esse vínculo, é preciso voltar no tempo.
Grande parte dos italianos chegaram ao Brasil para trabalhar nas lavoras de café

Um retrato da história

Nos séculos XIX e XX, milhões de pessoas abandonaram a Europa. Na Itália, especificamente, a situação era bem complicada. O país, até então composto por ducados, foi unificado em 1861. A penetração das relações capitalistas no campo provocou um aumento de tributos e a concentração — de riquezas e de terras — nas mãos de poucos, gerando conflitos políticos, uma intensa agitação social e o empobrecimento de grande parte da população. Além disso, devido a pragas e condições climáticas adversas, houve uma queda brusca na produção agrícola, o que acarretou em escassez de alimentos. Diante de um quadro de penúria, com os subsídios perdidos e sem esperanças, decidiram partir rumo ao desconhecido e tentar a sorte em busca de melhores condições de vida.

Segundo registros levantados por pesquisadores, cerca de 20 milhões de italianos deixaram o país entre 1861 e 1940. As regiões do Vêneto, da Lombardia e de Piemonte tiveram o maior número de saídas. Nessa época, propagava-se pelo mundo que a América era o lugar perfeito para quem buscava oportunidades. A ideia passada era: no novo continente, essas pessoas trabalhariam por um tempo curto, acumulariam renda e poderiam adquirir terras rapidamente. Atraídos pela proposta tentadora, vieram, em massa, para os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil. Para o Brasil, a chegada dos imigrantes ocorreu em um momento bem conveniente. Com o aumento do consumo do café no mercado internacional, as fazendas que cultivavam o grão estavam em plena expansão, vindo do Rio de Janeiro para o Vale do Paraíba e para o interior de São Paulo.

O ritmo acelerado nas lavouras, no entanto, coincidiu com a suspensão do tráfico de escravos africanos para o país, em 1850, limitando a aquisição de novos cativos e permitindo, apenas, a circulação interna, o que encarecia o processo (lembrando que a escravidão só foi extinta em 1888, com a Lei Áurea). “Uma pequena parcela de imigrantes foi enviada para colonizar a região sul do país para cuidar de suas próprias glebas, mas, a maioria dos italianos que desembarcavam nos portos já era encaminhada para os cafezais. Gradativamente, essa mão de obra livre acabou substituindo a escrava.

Nos anos 80 e 90 do século XIX, estabelece-se no país um sistema organizado pelos fazendeiros para financiar a imigração. Famílias inteiras eram trazidas. Vinham com contrato assinado, povoando as lavouras. As colônias tinham uma média de 1.200 a 1.500 pessoas”, explica Tânia Registro, que é historiadora e faz parte do conselho técnico do Instituto Casa da Memória Italiana. 
Tânia explica como foi o processo de adaptação dos imigrantes à nova realidade
Devidamente instalados, logo eles percebiam que a realidade era bem diferente da ilusão criada pelas campanhas. A rotina era árdua, o calor desgastante e as relações de trabalho, em vez de favorecerem o almejado acúmulo de capital, contribuíam para o endividamento com o empregador. “Os italianos fugiram de uma situação penosa e, aqui, além de terem que lidar com os problemas naturais de adaptação, encontraram uma vida bastante dura. Os fazendeiros ainda estavam acostumados com a mão de obra escrava. Isso desencadeou uma série de desentendimentos, confrontos e até greves. O governo italiano interviu, repatriando alguns imigrantes”, relata a historiadora. Mesmo com as dificuldades, muitos optaram por ficar. As terras férteis fizeram com que Ribeirão Preto fosse apontada, no exterior, como “o país do café”. Produzindo em larga escala, a cidade recebeu um número expressivo de imigrantes. De acordo com um censo datado de 1873, a população no município era de 5.552 pessoas e 857 escravos. Entre 1890 e 1902, essa contagem sobe para quase 53.000 pessoas. Desse montante, cerca de 27.000 eram italianos.

A princípio, todos estavam concentrados no campo. Aos poucos, transferiram-se para a área urbana, onde as oportunidades eram mais palpáveis. Como vários deles tinham um ofício (marceneiros, serralheiros, ferreiros, sapateiros, alfaiates, construtores, entre outros), passaram a se dedicar a essas profissões. “Eles tinham conhecimento, habilidades e, aqui, encontram espaço para se desenvolverem. Cresceram junto com a cidade, fazendo com que Ribeirão Preto tivesse característica de prestadora de serviços de qualidade. Uma pesquisa publicada pelo Almanach Ilustrado de Ribeirão Preto, que faz parte do arquivo histórico, analisou as atividades desempenhadas no município em 1913. De nove padarias em funcionamento, seis eram de italianos. De seis funileiros atuantes, todos eram italianos. De cinco fábricas de calçados, três eram de italianos. Entre 24 costureiras, 18 eram italianas”, descreve Antonio Henrique Sartore, filho de um italiano e atual presidente da Sociedade Dante Alighieri, instituição fundada em 1910. 
À frente da Sociedade Dante Alighieri, Antonio, que é descendente de um italiano, ressalta a importância de se preservar essa história
Apesar do potencial que tinham, os imigrantes ainda eram vistos com certo preconceito pela elite econômica do café. O cenário piorou durante a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, quando Brasil e Itália se posicionaram em lados opostos da batalha. Em todo o território nacional, houve uma pressão incisiva sobre italianos, japoneses e alemães, que eram vistos como inimigos. Para evitarem a perseguição, vários cederam e pediram a cidadania brasileira. Após o fim do embate, o cotidiano foi voltando ao normal. Os imigrantes se tornaram comerciantes, empresários, industriais e lideranças influentes. Hoje, seus descendentes dão continuidade a essa história, contribuindo para o avanço da cidade, mas mantendo vivas as suas tradições e a identidade do povo italiano. “Temos que nos unir para preservar e valorizar a nossa cultura”, finaliza Antonio. 
 

Tradição preservada

O casarão com o número 776 dificilmente passa despercebido por quem circula pela rua Tibiriçá. Instalada em posição privilegiada, bem ao lado da Catedral Metropolitana de Ribeirão Preto, no centro, a imponente construção guarda resquícios da época áurea do ciclo do café e lembranças de uma família italiana tradicional na cidade. A residência foi erguida em 1925, encomendada por Joaquina Evarista Meirelles, uma fazendeira da elite, e traz inspirações norte-americanas e europeias na arquitetura e na decoração.

Na década de 40, o imóvel foi comprado, de portas fechadas, por Pedro Biagi, avô de Maria Augusta Scatena Lopes, mais conhecida pelo apelido, Piccina, que viveu nesse endereço por 17 anos. “O nono veio da Itália com seis anos, acompanhando os pais, Natale e Elisabetta. Foram para uma fazenda em Atibaia e, depois, transferidos para Sertãozinho. Natale era oleiro, ou seja, produzia tijolos. O filho seguiu a mesma profissão. Pedro se casou com Eugênia e continuou trabalhando com o pai. Como as cidades estavam crescendo, o setor em que ele atuava se fortaleceu. O dinheiro conquistado serviu para ampliar e diversificar os negócios, sempre associado com outros italianos. Naquela época, essa prática era muito comum, por uma questão de confiança. Ele montou a primeira usina para refinar açúcar, a Barbacena, e permaneceu investindo nesse ramo após o declínio do café. Já consolidado, veio para essa casa, onde tivemos momentos de muita alegria”, comenta Piccina.
Piccina recorda a trajetória de seu avô, Pedro Biagi
A aquisição do imóvel, segundo Tânia, tem um simbolismo que merece ser destacado. “Além da propriedade em si, a família toma posse do luxo e do status que ela representa. Assim como os Biagi, vários outros italianos também alcançaram o sucesso aqui em Ribeirão Preto”, enfatiza a historiadora. Duas filhas do casal, Ângela e Ozônia, moraram nesse local até 2012. Quando morreram, ficou a dúvida sobre o que fazer com um patrimônio tão rico. Logo surgiu a ideia de abrir um museu que preservasse e difundisse não só essa história, mas diversas outras que ajudam a traçar o panorama da imigração italiana na cidade. Criou-se, em 2013, o Instituto Casa da Memória Italiana. A casa e as mobílias foram compradas e, em seguida, doadas por Maurílio Biagi Filho, também neto de Pedro, pela mãe de Maurílio, Edilah Biagi, e pela artista plástica Weimar Marchesi de Amorim.

O museu casa ainda está em processo de implantação e de captação de material para a formação do acervo. “Já conduzimos muitas pesquisas e estudos aprofundados. Agora, precisamos do auxílio da população. Existem inúmeros descendentes de italianos aqui na cidade. Queremos coletar documentos, fotos e objetos para compor um verdadeiro banco de dados que retrate, fielmente, a participação dos imigrantes em Ribeirão Preto no decorrer dos anos. A nossa proposta é estar sempre bem próximo da sociedade, trabalhando com a vertente atual da museologia, que utiliza tecnologias em áudio e vídeo para facilitar a interação”, pontua a gestora da Casa, Alice Registro Fonseca. O espaço, que também realiza várias atividades culturais, é aberto à visitação, com agendamento prévio. O tour é guiado por especialistas. Para marcar o passeio ou fornecer informações para a instituição, o contato deve ser feito pelo tel.: (16) 3625.0692, ou pelo e-mail: [email protected].

Influências italianas

Mesmo mudando de país, os imigrantes que atravessaram o Oceano Atlântico em busca de novos sonhos não se esqueceram de suas origens. Trouxeram, no coração e na bagagem, um pouquinho da Itália. Muitos desses costumes acabaram sendo enraizados na cultura brasileira. 

No novo continente

As lavouras de café de Ribeirão Preto foram o destino de muitos dos italianos que chegaram ao país. Aos poucos, transferiram-se para a área urbana e, como vários deles tinham um ofício, passaram a se dedicar a essas profissões, contribuindo de forma efetiva para o progresso da cidade. 

É hora de mudar?

Diante desse quadro, muitas famílias partem em busca de melhores condições de vida. Nessa época, propagava-se pelo mundo que a América era o lugar perfeito para quem buscava oportunidades. Estados Unidos, Argentina e Brasil foram os países que mais receberam imigrantes. 

Dura realidade?

Antes dividida em ducados, a Itália foi unificada em 1861. As transformações nas relações capitalistas geraram o empobrecimento de grande parte da população. A situação no campo foi agravada por pragas e condições climáticas adversas, que desencadearam uma queda brusca na produção agrícola.

1- Na religião

As práticas religiosas, as festas e a devoção a alguns santos da Igreja Católica foram adotadas pelos brasileiros, incluindo o padroeiro de Ribeirão Preto, São Sebastião, um soldado romano cristão martirizado por professar e não renegar a fé.

2- Na gastronomia

O cardápio foi enriquecido com as massas em geral, a popular polenta frita, os embutidos, o consumo do vinho e o hábito de comer panetone no Natal. 

3- Na linguagem

Palavras, expressões e até o sotaque dos italianos influenciaram o dialeto da população local.

4- Nas artes

Livros, pinturas, esculturas, músicas e danças típicas serviram de inspiração e já foram até retratadas em obras televisivas e cinematográficas produzidas por aqui, como “Terra Nostra”, “Esperança”, “Passione”, “Tempo de Amar” e “O quatrilho”, entre outras.

5- No esporte

A criação do Palestra Itália, em 1914, teve o intuito de unificar os imigrantes que viviam em São Paulo. Por causa da Segunda Guerra Mundial, o clube foi forçado a trocar o nome para Sociedade Esportiva Palmeiras, sob pena de perder todo o patrimônio. Hoje, o time de futebol conta com grandes jogadores no elenco e fãs espalhados por todo o território nacional.

Para colocar na agenda

Em 21 de fevereiro, é celebrado o Dia Nacional do Imigrante Italiano. A data foi escolhida por causa da expedição 
de Pietro Tabacchi ao Espírito Santo, em 1874, acontecimento que marca o início do processo de migração em massa dos italianos para o Brasil. A homenagem foi sancionada pelo então vice-presidente, José Alencar Gomes da Silva, através da lei nº 11.687, em 2 de junho de 2008. Em Ribeirão Preto, esse dia é comemorado desde 2010, por uma iniciativa da Sociedade Dante Alighieri. Neste ano, a festa será sediada no Centro Cultural Palace, a partir das 19h. A programação já está montada e conta com diversas atrações. Para mais informações sobre o evento, basta ligar para 
o tel.: (16) 3610.8168.

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