Ribeirão Nanquim

Ribeirão Nanquim

Seja para o público infantil ou adulto, a cidade tem bagagem na produção de histórias em quadrinhos, que movimenta um amplo mercado no mundo inteiro

Muito se fala que, atualmente, as histórias em quadrinhos (HQs) não são mais assunto para criança — mas, afinal, quando foram? Assim como outras mídias, como filmes, livros e séries, sempre existiram quadrinhos infantis e quadrinhos adultos.  Desde o início do século, os quadrinhos são uma indústria que movimenta bilhões ao redor do mundo e emprega milhares de pessoas. Por meio dessas histórias, é possível observar recortes de determinadas épocas, culturas ou países. Dentro do universo das HQs, existem diferentes estilos, editoras, autores e desenhistas, sendo que cada um desses elementos compõe uma obra única com peso cultural, histórico e também de entretenimento. 

Segundo pesquisa da Revista Exame, as vendas de quadrinhos físicos e digitais passaram de US $ 1 bilhão no último ano. Além das revistas, as histórias dos super-heróis também movimentam montanhas de dinheiro nos cinemas. Das 10 maiores bilheterias de todos os tempos das telonas, quatro são de filmes derivados de quadrinhos: Vingadores - Guerra Infinita, em 4º lugar; Vingadores, em 6º; Vingadores - Era de Ultron, em 8º; e Pantera Negra, em 9º. Somente o filme Vingadores - Guerra Infinita  rendeu US $ 2 bilhões em bilheteria.

Contudo, engana-se quem pensa que somente os gringos se aventuram neste mercado. No Brasil, a tradição é tão antiga quanto no restante do mundo. Ainda não há consenso sobre a primeira história em quadrinho do mundo, mas o que se sabe é que a técnica teve início com charges em jornais na Europa e nos Estados Unidos. Os primeiros registros datam do início do século XIX. No Brasil, a primeira HQ surgiu em 1869, chamada “As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de Uma Viagem à Corte”, de Angelo Agostini, publicada na revista Vida Fluminense, do Rio de Janeiro. Por fim, a produção que ganhou fama como a primeira revista exclusivamente voltada às histórias em quadrinhos foi a estadunidense Hogan’s Alley, com o personagem Yellow Kid (Garoto Amarelo), de 1896.

Após a primeira publicação no Brasil, Angelo Agostini não parou mais. Ele também foi responsável pela primeira revista de histórias em quadrinhos do país, a Tico-Tico, de 1905. Anos mais tarde, já com o mercado ampliado, foi lançada a Revista Gibi, pelo Grupo Globo, em 1939. O sucesso da publicação, que vinha como suplemento juvenil do jornal dominical foi tamanho que Gibi se tornou sinônimo de quadrinhos no Brasil. De lá para cá, o cenário dos quadrinhos no país evoluiu muito. Maurício de Souza, Ziraldo, Laerte, Henfil, Angeli e Millôr Fernandes são alguns dos nomes que se tornaram lendas dos quadrinhos e elevaram o patamar de qualidade das produções nas últimas décadas.

Enquanto isso, em Ribeirão Preto...
Gerson é responsável por muitas histórias de Zé Carioca e, hoje, faz parte dos Estúdios Mauricio de Sousa
A maioria dos brasileiros conhece aquele herói patriota, que representa o país e nasceu durante a Segunda Guerra Mundial. Não, não é o Capitão América. O papagaio Zé Carioca é mais um dos vários exemplos que mostram como os quadrinhos são um recorte histórico e cultural do seu tempo. O que isso tem a ver com Ribeirão Preto? A resposta virá quadro a quadro.

A Segunda Guerra Mundial teve início no dia 1º de setembro de 1939, mas o Brasil só se envolveu no conflito em 1942. Apesar de grande parte da Guerra ter como palco a Europa, os conflitos na África e as rotas marítimas do Atlântico Sul eram problemas a serem enfrentados pelos Aliados.  Além do reforço militar dos soldados brasileiros, o Nordeste era um local de interesse do então presidente estadunidense, Franklin  Roosevelt. Era o ponto de todas as Américas mais próximo do continente africano e também uma saída estratégia para os mares do Atlântico Norte e Sul.

Deixando de lado a velha e invasiva política “Big Stick” com os países latino-americanos, Roosevelt resolveu criar uma cultura de identidade pan-americana. Com esta política de boa vizinhança, muitos elementos latinos foram inclusos na cultura estadunidense, como Carmem Miranda, por exemplo. Benesses econômicas, como a Companhia Siderurgia Nacional (CSN), também foram promovidas.  Nesse mesmo movimento, em 1942, foi lançado o filme “Alô, amigos”, que introduziu o personagem brasileiro Zé Carioca, amigo do marinheiro dos Estados Unidos, Pato Donald.  Aos poucos o personagem saiu do papel de coadjuvante para ter sua própria revista. 

No Brasil, as publicações da Disney eram lançadas pela Editora Abril.  Até hoje, uma das pessoas que mais escreveu histórias do papagaio carioca foi Gerson Luiz Teixeira, que vive em Ribeirão Preto há 26 anos.  Atualmente, trabalha em outro gigante do ramo, os Estúdios Mauricio de Sousa, mas, para chegar neste patamar, ouviu muitos “nãos” na carreira. Com 15 anos, o roteirista levou os primeiros desenhos para a Editora Abril e, na época, foi recusado por falta de experiência. Três anos mais tarde, depois de muito estudo, voltou a bater na porta da Editora e conseguiu um emprego como trainee de arte. “Eu era assistente do assistente. Era eu quem colocava a logo da Walt Disney no topo das revistas”, relembra Teixeira.
 
Algum tempo depois, a Abril lançou a revista “Pancada”, uma versão brasileira da estrangeira humorística “Mad”. Teixeira resolveu enviar alguns desenhos para a nova publicação. “O chefe, na ocasião, viu aquele material e gostou — não do desenho, mas das piadas — e pediu para que eu escrevesse mais. Começou ali a minha carreira de roteirista”, acrescenta Teixeira. Durante duas décadas, escreveu histórias para as revistas de Zé Carioca, Peninha, Trapalhões, Luluzinha, Seninha e muitos outros. Segundo o site Inducks, um dos maiores bancos de dados mundiais sobre quadrinhos da Disney, Gerson Luiz Teixeira escreveu mais de 500 histórias, traduzidas para 21 países.

Após sair dos estúdios da Abril, já consagrado, Teixeira acreditou que seria fácil conseguir um novo emprego. Foi quando tentou enviar suas histórias para Maurício de Souza. “Fiz seis histórias que foram negadas. Recebi uma carta padrão dizendo que eu não estava dentro dos rigorosos padrões de qualidade da Maurício de Sousa Produções. Anos mais tarde, fazendo um trabalho publicitário, conheci uma pessoa que trabalhava com o Maurício, que me pediu para que eu fizesse novos desenhos e ele enviaria diretamente para o chefe. Não somente minhas novas histórias foram aprovadas pelo próprio Maurício, como as antigas, que eu havia enviado anos antes”, conta o quadrinista. Atualmente, Teixeira faz os desenhos da Turma da Mônica de Ribeirão Preto e envia para aprovação em São Paulo. O material retorna à cidade e é impresso na Gráfica São Francisco.

Super-heroínas

Teixeira faz parte da “velha guarda” dos quadrinhos e tem seu foco voltado às histórias infantis. Existem, porém, muitos outros quadrinistas em Ribeirão Preto. Um exemplo é a jovem Karen Fagundes de Carvalho, a Karen Fagu. Formada em Música pela Unaerp, começou a produzir quadrinhos há cinco anos, após participar de uma oficina na Virada Cultura de Ribeirão Preto. O talento da moça é tanto que seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na Faculdade de Música foi uma história em quadrinhos baseada na vida da compositora Chiquinha Gonzaga.

Com um traço delicado, Karen desenha em várias frentes para se manter ativa no mercado. Publica tirinhas, faz freelances e produz caricaturas. A vida do quadrinista independente é de altos e baixos, muito esforço e tentativas frustradas.  Apesar disso, Karen enxerga com otimismo o cenário ribeirãopretano. “Nossa cena é muito farta e competente, até mais do que se imagina. Felizmente, o pessoal local dos quadrinhos é muito unido, amigável e talentoso. Também aposto que tem muitos talentos fazendo quadrinho em algum canto de Ribeirão Preto que nem conheço”, comenta.

O universo de produtores de quadrinhos ainda é majoritariamente masculino. Segundo Karen, apesar da participação das mulheres nos quadrinhos ser pequena se comparada com a dos homens, elas vêm ganhado destaque.  “A partir da disponibilização do cenário independente por meio das redes sociais, tornamos o trabalho muito mais acessível. As mulheres estão provando que não deixam nada a desejar, na comparação com um quadrinho feito por homens, e também estão colocando em questão a hipersexualização das mulheres nos quadrinhos e como isso gera consequências na sociedade”, frisa Karen. 

O tema provoca discussões recorrentes entre os amantes dos quadrinhos. De modo geral, a hipersexualização acontece quando os personagens masculinos são desenhados em poses poderosas e extremamente musculosos, enquanto as mulheres são retratadas em posições desnecessariamente sexualizadas, com roupas curtas e justas. Isso acontece para realçar a posição de dominância e poder dos personagens masculinos, enquanto escancara um caráter machista ao olhar para as personagens femininas. Um dos motivos para esta hiperssexualização é, justamente, a ausência de mulheres desenhando e roteirizando e a (aparente) ausência de mulheres leitoras. Este é um cenário que vêm mudando ao longo dos anos.

Os mangás não foram esquecidos!

Os tradicionais quadrinhos japoneses não podiam ficar de fora. Com um traço característico, os mangás deram origem a diversos animes — desenhos animados japoneses —, filmes, séries e até adaptações ocidentais. Aos moldes dos famosos tokusatsus — séries de super-heróis japoneses como Jaspion, Ultraman e Kamen Raider —, a história do herói começou a ser pensada em 1999, nas páginas das histórias em quadrinhos amadoras, os fanzines. O ano da criação do Insector Sun não foi por acaso. Em 10 de maio de 1999, era extinta a TV Manchete.

A emissora ficou conhecida por introduzir seriados e animações japonesas na cultura brasileira. “Viemos no vácuo da TV Manchete, com a falta de tokusatsus, e decidimos criar nossas próprias histórias. De forma bem amadora, só para nos divertir”, conta Christiano Silva, ou Christian Silva, ou Kri Lee, criador do Insector Sun. Porém, Silva foi além das páginas dos fanzines e transformou o herói em uma série da internet. Atualmente, a webssérie é considerada por muitos como o primeiro tokusatsu brasileiro. A história completa do Insector Sun pode ser conferida no Portal Revide.

De RP para USA

Vida de quadrinista não é fácil. No geral, quem produz quadrinhos de forma independente tem que trabalhar como freelancer. Fazendo um trabalho aqui e outro ali, o artista vai aumentando seu portfólio e tentando ganhar dinheiro. Foi assim que o ribeirãopretano Carlos Reno começou neste ramo. Atualmente professor de desenho, Reno já teve que bater de porta em porta para ter seus trabalhos publicados.

Buscando sempre uma brecha para mostrar sua arte, Reno já fez de tudo. “Comecei a trabalhar profissionalmente com desenhos em meados dos anos de 1990, em princípio, com ilustrações publicitárias, manuais de prevenção de acidentes e qualquer tema que pedisse um ‘rabisco’, porém, meu maior objetivo sempre foi trabalhar com histórias em quadrinhos”, relembra.

Com um traço mais firme, realista e um estilo próximo do que era veiculado pelas editoras norte-americanas, publicou um dos primeiros trabalhos, justamente, por uma editora dos Estados Unidos. “Graças à internet, entrei em contato com estúdios de ilustração que agenciavam trabalhos de desenhistas brasileiros para outros países. Depois de vários testes, fiz meu primeiro trabalho para uma editora independente americana chamada Big Dog Ink, em uma HQ que envolvia super-heróis e baseball”, conta o artista.  Atualmente, além das aulas, Reno publica seus trabalhos em revistas dos Estados Unidos e da Europa.


Texto: Paulo Apolinário

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