Terceiro Setor em Estado de Alerta

Terceiro Setor em Estado de Alerta

Em janeiro, entrará em vigor a Lei 13.019 que vai modificar a maneira como são feitas transferências de recursos públicos nas esferas municipal, estadual e federal

A partir de 23 de janeiro de 2016 entrará em vigor a Lei de Fomento e Colaboração, Lei 13.019/2014, mais conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Sancionada em julho do ano passado pela presidenta Dilma Rousseff, a lei teve a vigência prorrogada por duas vezes, pois modifica significativamente a forma como são transferidos recursos públicos para as organizações e elas precisam de tempo para adequação.

De acordo com especialistas, a nova lei garante maior segurança jurídica e transparência ao processo, mas também algum transtorno durante a transição. Até agora, as prefeituras brasileiras firmavam parcerias com organizações não governamentais para atingir objetivos sociais por meio de convênios, termos de cooperação, contratos de gestão e outros instrumentos legais, mas essa relação, em todos os níveis da federação, será diretamente impactada pelas mudanças trazidas pela nova lei. Isso coloca em estado de alerta o Terceiro Setor.

Simone Gueresi de Mello, secretária-executiva adjunta da Secretaria-Geral da Presidência da República, elencou em audiência pública os principais pontos de mudança nas relações entre administração pública e organizações da sociedade civil (OSCs). “A lei organiza o regramento de repasses de recursos da administração pública para as organizações da sociedade civil nos níveis federal, estadual e municipal, além de consolidar regras que trazem transparência e igualdade de oportunidades para várias organizações que queiram formar parcerias com o poder público”, enfatizou Simone.

Transparência nos processos, avaliação e monitoramento, prazos e procedimentos serão alterados, simplificados ou incluídos. O tempo hábil para essa adequação, embora o prazo já tenha sido prorrogado, parece ser pouco. “A partir desta data, todas as instituições passarão por análise documental e de capacitação técnica para receber recursos públicos. Terão que saber elaborar projetos e participar de chamamentos públicos, concorrendo a verbas em todos os níveis”, alerta Emília Lemos Vasconcelos, diretora do Instituto de Educação e Elevação Social (IEES) e da Eleva Consultoria. A consultora alerta que a maioria das entidades não está atenta a essa mudança e no final do ano encerram a maioria dos convênios já pactuados. “Imagine quando a instituição acostumada a receber recursos do município não receber mais. Será um verdadeiro caos social”, ressalta Emília.

Com o objetivo de levar informações mais precisas sobre a nova lei aos dirigentes de entidades do Terceiro Setor, o IEES promoveu, no dia 7 de julho, em parceria com a Eleva, a Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (ACIRP), a Câmara de Dirigentes Lojistas de Ribeirão Preto (CDL), a Casa do Contabilista e o Sindicato do Comércio Varejista (SINCOVARP), o 1º Seminário Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, trazendo para Ribeirão Preto a advogada representante do Instituto Filantropia, Ana Carolina Carrenho, que detalhou alguns aspectos da nova lei, tirando dúvidas dos participantes.

O evento, que reuniu representantes de entidades de 54 cidades da região, contou ainda com a participação do empresário Maurílio Biagi Filho, do Grupo Maubisa, e do presidente da Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (ACIRP,) Antônio Carlos Maçonetto, que anunciaram a união de esforços para contribuir para a criação de um fundo capaz de manter na cidade o potencial de destinação de impostos e fazer o seu direcionamento ao Terceiro Setor.

Adequação às regras
De acordo com a palestrante do 1º Seminário MROSC, Ana Carrenho, também instrutora da Escola Aberta Terceiro Setor, é importante ressaltar que os convênios em vigor deverão permanecer até o final da vigência. “Os gestores que realizarem a suspensão de recursos em convênios em vigor poderão ser acionados, visto que a lei somente se aplicará às novas contratualizações e não em relação às antigas. A segurança jurídica é princípio constitucional”, afirma a advogada.

Entre os pontos para os quais a advogada chama a atenção, destaque para mudança que coloca os dirigentes como responsáveis solidários, podendo ter seus bens sequestrados diante de constatação de improbidade administrativa. Também haverá possibilidade de remuneração dos dirigentes nos projetos apresentados, desde que desenvolvam trabalho diretamente ligado ao objeto da ação, previsto no plano de trabalho. Ou seja, o dirigente não será remunerado por ocupar um cargo, mas essa condição não mais o impedirá de receber por trabalhos desenvolvidos. Ele será remunerado como integrante da equipe de trabalho do projeto, quando fizer parte dela.

Segundo Ana Carolina, a começar pela definição do nome, pois as entidades passam a ser reconhecidas pela lei como OSCIPs, a entrada em vigor da nova lei impõe uma mudança cultural ao Terceiro Setor, que passa a ser pautado pelo financiamento de projetos e onde as palavras de ordem se tornam planejamento e diversificação de fontes de recursos. “Não adianta mais fazer o bem, agora tem que fazer o bem muito bem”, afirma Ana Carolina.

Nasce uma ideia
Durante a realização do 1º Seminário MROSC, na ACIRP, Maurílio Biagi Filho e Antônio Maçonetto anunciaram a iniciativa de criar uma entidade ou um banco social para fazer a captação e a distribuição de recursos às entidades. “Pode parecer um sonho, mas todo projeto começa assim. A ideia é lançar essa semente e ver se aparecem pessoas que queiram levar isso adiante sem holofote, para fazer realmente um trabalho pela comunidade. A tendência é que a situação não melhore em curto prazo, por isso, é hora da sociedade civil parar de reclamar e começar a se organizar para reverter o cenário. Não é algo simples, ao contrário, mas acho que a gente consegue”, aponta Biagi Filho.

O potencial teórico de recurso que pode ser captado, considerando 100% do que deveria permanecer na cidade, é de R$ 200 milhões, segundo o empresário. O valor, somado a algumas cidades da região, pode chegar a quase R$ 300 milhões. “Imagine se conseguirmos captar R$ 100 milhões, através de uma entidade forte e com governança — acho que essa é a palavra-chave —, apta a transmitir para todas as entidades, com governança e capacitação, de forma que elas possam gerir com sabedoria e competência esses recursos”, pondera Maurílio.

Para a advogada Ana Carolina Carrenho, a Lei 13.019 impõe uma mudança cultural ao Terceiro Setor, mas traz grandes benefícios

Diante da carência de recursos humanos, formação e capacitação administrativa e financeira na estrutura organizacional das entidades, a Lei 13.019 resolve ou cria problema?
Ana Carolina:Creio que a Lei 13.019/2014 está levando as organizações a se repensarem internamente, como um diagnóstico institucional, que envolve não somente o aspecto profissional das entidades como também o institucional. Há uma necessidade eminente de diversificação das fontes de recursos.

O prazo de adequação das entidades à nova cultura de financiamento de projetos é suficiente?
Ana Carolina:Acredito que levará mais tempo para as entidades e seus dirigentes compreenderem a nova cultura de financiamento. Dadas realidades tão distintas no país, creio que seria melhor a aplicação, primeiro, no âmbito da União, visto que já possuem melhores instrumentos para operacionalizar a lei, posteriormente, nos estados e, por último, nos municípios.

Qual o ponto mais crítico de mudança com a nova lei?
Ana Carolina:Há alguns pontos que merecem mais debate e reflexão, entre eles, a responsabilidade solidária do dirigente de forma administrativa, sem observar os princípios legais para tal responsabilidade ampla e irrestrita, sem ocorrência de ato ilícito, por exemplo.

O incentivo natural, com a nova lei, para que as entidades tenham uma “atividade-meio”, não pode fragilizar as entidades, desvirtuando-as da atividade-fim?
Ana Carolina:Não creio em um desvirtuamento com o desenvolvimento de atividades-meio para a sustentabilidade das entidades. Pelo contrário, creio que promoverá maior legitimidade perante a sociedade, visto que a organização se relacionará com outros públicos de interesse.

A sociedade está preparada para lidar com a profissionalização do Terceiro Setor, para continuar auxiliando-o, se ele estiver desvinculado do papel de pedinte”?
Ana Carolina: Creio que há um longo caminho para mudarmos uma cultura até então existente, mas estamos acompanhando o crescente desenvolvimento do investimento social privado, e não somente o aporte de recursos pelos órgãos públicos. As organizações estão percebendo que deverão pensar mais em planejamento a curto, médio e longo prazo para continuar de forma plena com suas ações. Há também um interesse crescente em relação às organizações denominadas como “negócios sociais”, uma vez que sustentabilidade financeira e impacto social andam juntos neste tipo de empreendimento social.

 Ana Carolina Pinheiro Carrenho, advogada, palestrante da Escola Aberta Terceiro Setor e do Instituto Filantropia.

Recursos para despesas

“O Corassol está participando de palestras, cursos e capacitações para maior conhecimento e aplicação das adequações ao cotidiano da organização. Nosso estatuto social já atende a várias dessas exigências, mas necessita melhorar alguns quesitos, como a definição do regulamento de compras e de contratações. Essas práticas já são desenvolvidas, pois, como os recursos são escassos, temos que otimizá-los, buscando os melhores preços, sem perder a qualidade. Também buscamos a diversificação das fontes de recursos, com a realização de eventos e a utilização das leis de incentivo. Um aspecto positivo da nova lei é a possibilidade de utilização dos recursos públicos com algumas despesas, o que até então não era permitido, como por exemplo o pagamento de custos indiretos necessários (internet, telefone, assessoria contábil e jurídica etc.). Esperamos, contudo, que os órgãos públicos façam uma análise criteriosa dos programas em andamento e suas especificidades, evitando que os beneficiários sejam os maiores prejudicados, com a interrupção do serviço ou o rompimento de vínculos já estabelecidos com a equipe. Principalmente nos serviços em que é prevista a continuidade do atendimento.”

Marta Irides de Oliveira, presidente do Corassol

Cuidado com a concorrência

“A Obreiros do Bem, há muito, vem se adaptando e se profissionalizando para se adequar às novas exigências da legislação. O Estado procura maneiras de aplicar os recursos com eficiência e isso não deve ser considerado um mal. O que deve ser tratado com cuidado é para que não haja concorrência e nem competição entre as entidades, já que sabemos que os serviços fazem parte de uma rede de atendimento que se complementam. Portanto, deixar uma ou outra entidade sem recurso é prejudicar uma população que já sofre com tantas ausências do poder público,”

Maria Aparecida Costa; Presidente da entidade Obreiros do Bem

Tempo de adequação

“Pensando na sustentabilidade e na continuidade de nossas atividades, já fazemos uma diversificação das fontes de recursos através de doações de pessoas físicas e/ou jurídicas; utilização de leis de incentivos (ICMS, Imposto de Renda); participação em editais de seleção de projetos; estabelecimento de parcerias com projetos e empresas, além da realização de eventos promocionais. Por isso, as mudanças com o marco regulatório não devem gerar grandes impactos. Estamos atentos e buscando conhecimento. Temos estruturado nossas ações com base no gerenciamento de projetos, tendo bem claro o planejamento, a execução, o monitoramento e a avaliação dessas atividades. Assim, a transparência faz parte do nosso dia a dia. Nosso estatuto está adequado às atividades realizadas e às normas legais, inclusive com a composição do conselho fiscal, porém, ainda não temos o regulamento de compras formalizado, uma nova exigência, entre outros itens. Assim como todo processo de mudança, precisaremos de um tempo para nos adequar completamente.”

Cristiane Carvalho, gestora de Projetos da Creche Alvorada

Texto: Yara Racy
Fotos: Julio Sian

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