Transgênero

Transgênero

Apesar de ganhar espaço na mídia, a transexualidade ainda é vista como um tabu. Especialistas em sexualidade revelam as dificuldades, os traumas e as superações que essa parcela da sociedade enfrenta

Jovem, bem vestido, cabelo da moda e cursando Direito. Na infância gostava de jogar videogame e queria ter um skate. Gosta de Sherlock Holmes e Harry Potter. O relato parece a história de um rapaz comum, certo? Pois é isso mesmo. Pedro Rodrigues, de 20 anos, é apenas mais um jovem buscando emprego, pegando ônibus lotado e cruzando a cidade para se dedicar ao sonho de se tornar juiz ou delegado. Poderia ser o filho, o irmão ou o amigo do futebol de qualquer pessoa. A diferença é que Pedro nasceu mulher.

Pedro Rodrigues descobriu que era um homem aos 17 anos

Existe, hoje, no Brasil, 1,4 milhão de transexuais, incluindo mulheres e homens trans. Os números são da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Ainda segundo a Associação, apenas 9% dessa população está inserida na sociedade, como, por exemplo, registrada em regime celetista ou matriculada em uma instituição de ensino. A esmagadora maioria está na prostituição. A não aceitação familiar — muitos saem de casa ainda jovens — e o despreparo da educação brasileira para abordar a diversidade e evitar o bullying fazem com que muitos transexuais deixem as salas de aula precocemente. Somando a baixa escolaridade à crise econômica que o país atravessa e ao preconceito enraizado na sociedade, há um número ínfimo de trans com acesso a empregos que exigem pouca ou nenhuma experiência.

Segundo pesquisa realizada pela psicóloga e doutoranda do programa de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), Maria Rita Lerri, os problemas psíquicos que esta população enfrenta são imensuráveis, devido ao preconceito e aos maus tratos que sofrem dentro da família, nos serviços públicos e na sociedade. No estudo inicial, 72,5% das pessoas trans relataram uma ou mais tentativas de suicídio. Os principais fatores motivadores para verem na morte a solução para seus sofrimentos foram: a discriminação social com relação à transexualidade, a não aceitação familiar e a não aceitação do próprio corpo. Mais de 80% tinham ansiedade e/ou depressão. “As pessoas trans passam por agressões físicas e verdadeiras torturas psíquicas em virtude da intolerância, do preconceito e da discriminação social, o que leva à depressão e à ansiedade”, completa Maria. Com isso, o risco de suicídio nesta população é 20 vezes maior do que na população geral. 

Apesar das longas filas de espera e do preconceito encontrado na sociedade, Lúcia Alves e Maria Rita atendem a população trans em Ribeirão Preto

Felizmente, Pedro tem suporte da família. Entretanto, inicialmente, como na maioria dos casos, passou por momentos turbulentos. “No começo foi bem complicado, principalmente com a minha mãe. Ela confundia muito o termo transsexual com travesti. Quando eu contei, ela achou que eu era travesti”, conta Pedro. O jovem relembra que após uma matéria exibida pelo Fantástico, da Rede Globo, em 2015, sobre transexualidade e identidade de gênero, a mãe entendeu um pouco melhor a situação. Para o estudante de Direito, o tema precisa ser melhor abordado tanto na mídia quanto nas escolas. “Como eu me descobri depois do Ensino Médio, acho que seria muito mais fácil eu ter acesso a essa informação durante a escola. Teria contado para os meus pais muito antes e eles teriam mais tempo para entender”, explica.

De corpo e alma

Durante o período de aceitação, Pedro foi morar com o pai, de quem recebeu o amparo que precisava. “Meu pai é espírita, então me explicou porque eu vim nessa vida dessa forma. Ele me disse que, em outra vida, devo ter sido um cara muito duro com as mulheres e que nessa encarnação eu tinha que vir desse jeito para entender o lado delas”, comenta o jovem, que, apesar de não herdar a mesma religiosidade do pai, gosta do seu ponto de vista. Atualmente, a família ainda não aceitou completamente a transição pela qual Pedro passou, mas já se mostra mais maleável do que no início. “Da mesma forma que tive meu tempo para aceitar, eles vão ter o tempo deles”, pondera o estudante. 

Outra dificuldade enfrentada por Pedro e por grande parte das pessoas transexuais são as críticas, mais precisamente relacionadas à “escolha”, como se fosse uma opção momentânea “ser homem” ou “ser mulher”. “Não é só uma vontade de ser homem, eu tenho trejeitos de homem desde criança. Como fui criado somente por mulheres — minha avó, minha tia e minha mãe — não tive uma inspiração masculina. Portanto, tudo o que eu sou é meu somente. Não estou imitando ninguém”, garante. Apesar de ser um relato da infância de Pedro, a história tem respaldo científico. Quem explica melhor é a psicóloga com residência em saúde mental, Ana Beatriz Franceschini. “Essa história de ‘acordei assim’ não existe. Na verdade, isso se constitui desde a infância. Não é algo que vem de fora, construído ou incentivado. Como é um assunto que vem ganhando visibilidade, aparecendo na mídia e nas novelas, existe um mito de que isso poderia incentivar as pessoas, mas não é verdade”, explica a especialista. 

Atualmente, Pedro recebe tratamento hormonal promovido pelo Hospital das Clínicas e pretende, um dia, realizar a cirurgia para a retirada dos seios. Como é um procedimento caro (por volta de R$ 9 mil) e com fila de espera entre 15 e 20 anos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o jovem ainda não tem planos para realizar a retirada. Por ora, pretende terminar os estudos e conseguir um estágio na área do Direito. Outro desejo do rapaz é colocar seu nome social nos documentos de identidade. Por enquanto, só possui a carteirinha da universidade com o nome atual. “Mais do que a questão legal, significa a libertação de uma máscara. Já fui a muitas entrevistas mesmo na área jurídica e o nome diferente na identidade atrapalha muito. Parece que estou vivendo a vida de outra pessoa”, lamenta Pedro. 

Amparo profissional 

O Ambulatório de Estudos em Sexualidade Humana (AESH) do Setor de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, é um serviço voltado para o atendimento de mulheres com dificuldades sexuais. A partir de 2012, o AESH passou a oferecer a terapia hormonal para pessoas transexuais. Foi neste local que Pedro conseguiu aval para o tratamento hormonal.

A assistência às pessoas transexuais no AESH foi oficializada em dezembro de 2012, seguindo um protocolo de assistência clínica e psicológica. O serviço ainda não disponibiliza a cirurgia de redesignação por limitações técnicas. O AESH conta com uma equipe multidisciplinar composta por ginecologistas, psicólogos, psiquiatra e fonoaudiólogos que trabalham de forma interdisciplinar, o que favorece a assistência integral às pessoas que procuram o serviço.

Para quem deseja realizar a redesignação sexual, o AESH estabelece um protocolo baseado nos critérios definidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). O interessado, seja por necessidade espontânea ou encaminhado por outro profissional, passa, primeiramente, por uma avaliação clínica com um médico residente de Ginecologia e Obstetrícia e, em seguida, por avaliação psicológica e psiquiátrica. Pelo SUS, essa pessoa, obrigatoriamente, vai para um atendimento com equipe multidisciplinar. Vencida esta etapa, o usuário inicia os atendimentos psicológicos  e é periodicamente avaliado pelo médico residente para análise clínica e laboratorial do estado de saúde geral e adequação da terapia hormonal. Após o período mínimo de dois anos, avalia-se a possibilidade de realização da cirurgia de transgenitalização, feita no Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, a fila de triagem para essa cirurgia nessa instituição de saúde está fechada, não recebendo casos novos. 

A doutora em ginecologia e obstetrícia e especialista em saúde sexual, Lúcia Alves da Silva Lara, uma das responsáveis pelo AESH, lamenta a dificuldade de atender mais pessoas em centros públicos de saúde dessa natureza. “Estamos com uma alta demanda reprimida de pessoas que necessitam da cirurgia, condição essencial para a promoção da saúde psíquica e do bem-estar de quem vive nessa situação. Lamentavelmente, para conseguir a cirurgia genital, a pessoa trans precisa, atualmente, aguardar de 15 a 20 anos”, ressalta Lúcia. 

Redesignação ou mudança de sexo?

O nome técnico do procedimento cirúrgico é transgenitalização, contudo, o processo é chamado de redesignação sexual. A psicóloga Ana Beatriz Franceschini explica o porquê do termo. “O correto é chamarmos de redesignação ou readequação. Falar ‘mudança de sexo’ sugere que a pessoa está se transformando em algo que não é, quando, na verdade, ela está mudando para aquilo que já era. É uma adequação. Para nós, pode parecer algo sutil, mas para quem está vivenciando a situação, nomear da maneira correta faz toda a diferença” finaliza a psicóloga. 

Ajuda voluntária

Para ressocializar, capacitar e dar suporte à comunidade LGBT de Ribeirão Preto, a ONG Asgattas auxilia, há sete anos, pessoas invisíveis para a sociedade e para o poder público. Além de contribuir para o encaminhamento à emissão do nome social, ao tratamento psicológico e hormonal, a Asgattas busca reintegrar indivíduos que estão na prostituição. Quem chega à Ong passa por uma rigorosa triagem. Com os dados pessoais, a Organização busca entender os problemas daquela pessoa e a melhor forma de ajudar. “Somos uma ponte e encaminhamos quem nos procura com um problema ao poder público e às empresas”, explica Washington Ricardo, presidente da Asgatas. O problema é avaliado de forma sistêmica: são consideradas condição socioeconômica, familiar e psicológica. A Asgattas também oferece apoio para quem passa pela mudança de sexo ou de nome civil. “Basta dar o primeiro passo e nos procurar. Não temos como ir à casa das pessoas e trazê-las aqui”, comenta Agatha Lima, tesoureira e fundadora da organização. A Ong Asgattas fica na Rua Tajaçu, 1.498, no Ipiranga. Tel.: (16) 99265.6106.

Washginton Ricardo e Aghata Lima há 7 anos realizam trabalho voluntário na cidade

Identidade de gênero

Apesar de claro na cabeça dos especialistas, o termo identidade de gênero vem causando confusão entre quem não é da área. Segundo a psicóloga Maria Rita Lerri, “a identidade de gênero refere-se a como a pessoa se identifica, independente das características biológicas do corpo e do órgão genital. Então, ser mulher trans ou homem trans não significa ser homo ou heterossexual, ou outra orientação que seja”, explica a psicóloga. Lúcia Alves da Silva Lara explica alguns mitos sobre a transexualidade que, na maioria dos casos, não possuem respaldo científico. “A transexualidade não é uma escolha, assim como a orientação sexual, que não depende da vontade do indivíduo. As teorias de que o ambiente social poderia contribuir para o desenvolvimento da transexualidade ou para a orientação sexual diferente do modelo binário não encontram respaldo científico. A pessoa possui a sua essência e o meio social não mudará esse fato. É preciso respeitar as vivências de cada indivíduo”, finaliza a doutora. Para se ter uma ideia, a cirurgia de readequação sexual só pode ser feita após o interessado ter passado por, no mínimo, dois anos de acompanhamento com um profissional de saúde mental. A decisão não pode ser tomada do dia para a noite e nem deve existir a mínima dúvida sobre um possível arrependimento da pessoa. 

Lúcia Alves da Silva Lara

Orientação sexual

A orientação sexual diz respeito ao objeto de desejo da pessoa, isso é, por quem ela se sente atraída emocionalmente e sexualmente. A orientação sexual, assim como o gênero, não pode ser escolhido. De acordo com o Ministério da Educação, “ao abordar a orientação sexual, busca-se considerar a sexualidade como algo inerente à vida e à saúde, que se expressa no ser humano, do nascimento até a morte”. Por exemplo, um homem que se sente atraído por outros homens é homossexual, enquanto um homem que se sente atraído por mulheres é heterossexual. “Apesar de haver uma confusão, é simples de explicar porque são coisas muito diferentes. Quando falamos de gênero, estou falando de como eu me sinto, de uma imagem que construí e desenvolvi de mim mesma. A orientação sexual tem a ver com a pessoa que me causa desejo, independente da minha identidade de gênero”, esclarece a psicóloga Ana Beatriz.

Ana Beatriz.

Trans na mídia

Filmes

O filme Garota Dinamarquesa narra a história real de Lili Elbe, uma das primeiras transexuais a se submeterem a uma cirurgia de redesignação sexual. Na trama, Lili é interpretada pelo ator Eddie Redmayne.

Novelas

Na última novela das 21h da Rede Globo, a atriz Carol Duarte interpretou Ivana, que mais tarde viria a se descobrir Ivan, um homem trans.

Esporte

A jogadora de vôlei 
goiana Tiffany, que nasceu Rodrigo, recebeu da Federação Internacional de Voleibol (FIVB) autorização para se inscrever em ligas femininas do esporte, mas sua presença na principal competição do país ainda causa polêmica.

Videogames

A famosa personagem dos fliperamas dos anos 90, na verdade, é uma transexual. A lutadora Poison, que ficou famosa em jogos como Final Fight e Street Fighter, tornou-se um ícone trans no mundo dos games.

Séries

Na série Orange is The New Black, a personagem Sophia Burset é interpretada pela atriz transexual Laverne Cox.



Texto: Paulo Apolinário
Arte: Marcelo Mantovani
Fotos: Divulgação 

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