Um novo capítulo

Um novo capítulo

A Biblioteca Altino Arantes, que há 60 anos possibilita o acesso da população à leitura, ganha um projeto de restauração que une o antigo ao moderno para torná-la mais atrativa ao público

Uma das edificações que chamam a atenção na região central de Ribeirão Preto é a Biblioteca Altino Arantes. O casarão foi construído em 1932 para se tornar residência de Francisco Maximiano Junqueira, o coronel Quito Junqueira, e Theolinda de Andrade Junqueira, conhecida como Sinhá Junqueira, que viveram e morreram no local.

O prédio se tornou biblioteca em 1955, um ano após a morte de Sinhá Junqueira e, em 1980, foi colocado sob regime especial de proteção. Depois de dar acesso aos livros à população por 60 anos, a edificação de estilo neocolonial, que se constitui um elo entre o passado e o presente do município, finalmente pode ser restaurada e ampliada para desenvolver melhor a sua função e resgatar uma parte do glamour que envolveu a região central do município, na época em que era habitada pelas famílias mais abastadas.

A iniciativa é da Fundação Educandário Coronel Quito Junqueira, que hoje é responsável pelo patrimônio. O projeto, realizado por Dante Della Manna Arquitetura no final do ano passado, prevê, além da restauração, uma ampliação de 890 m² na edificação, o que aumentaria a área atual de 600 m² para 1.490 m².

Conforme Marcos Awad, presidente da Fundação Educandário, os recursos viriam da própria Fundação e acrescentariam ao prédio histórico uma estrutura moderna, com tecnologia e funcionamento capaz de torná-la mais atraente ao público, além de oferecer um serviço de melhor qualidade. Hoje, segundo o presidente, pouca gente frequenta a Biblioteca. “Com o projeto, podemos oferecer um acervo físico e virtual, além de muito mais conforto aos usuários. Assim que os conselheiros da Fundação Biblioteca Altino Arantes decidiram encerrar a Fundação e transferir o patrimônio para o Educandário, já que não havia recursos para mantê-lo e restaurá-lo, iniciamos o projeto, protocolado em fevereiro deste ano na Prefeitura”, comenta Marcos, destacando que o mesmo ainda tem que passar pela aprovação do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT).

O presidente da Fundação ressalta ainda que, se aprovado o projeto, depois de transcorridos os trâmites legais, a restauração duraria em torno de um ano e meio. “A Biblioteca Altino Arantes ampliaria muito seu impacto sociocultural no município, é um marco arquitetônico e, com exceção da Padre Euclides, que fica no interior de um edifício, é a única na região central com acesso facilitado à população. Daí a importância de pensar na restauração e na ampliação que a tornariam mais moderna, beneficiando os usuários”, afirma Marcos.

Segundo Arthur Barros, historiador e coordenador do Arquivo Histórico de Ribeirão Preto, o casarão foi projetado pelo grande arquiteto Ramos de Azevedo. O arquiteto era diretor do Escritório Ramos de Azevedo, o maior e mais importante naquele tempo. Formado na Universidade de Gand, na Bélgica, estabeleceu-se em São Paulo em 1886, onde deixou, entre outros legados, obras como o Liceu de Artes e Ofícios ((1897-1900) e o Teatro Municipal de São Paulo (1903-1911).“ O estilo neocolonial, que pode ser definido como um movimento estético do início do século XX, propunha uma releitura da arquitetura do Brasil colonial, rapidamente absorvida pela elite brasileira”, conta o historiador.

Considerada uma referência cultural importantíssima para cidade e para a região, a Biblioteca Altino Arantes, para o historiador, é muito significativa em termos de formação. Arthur passou a residir na cidade nos início dos anos 80 e era um assíduo frequentador do local. “Naqueles anos, um processo de redemocratização do país, da anistia política, e os livros começavam a reaparecer, principalmente os de ciências políticas e filosofia. A Biblioteca tinha um grande acervo para pesquisa sobre o assunto. Acredito que ela tenha ajudado na formação crítica dos jovens que a frequentavam”, pontua o coordenador.

Segundo Arthur, o prédio compõe uma parte fundamental da denominada paisagem cultural urbana do café, mas o município não se destacou em relação a essa cultura. O historiador aproveita para ressaltar que o comércio e a indústria também foram significativos para a economia e para o crescimento da cidade. “Temos outros patrimônios importantíssimos no centro de Ribeirão Preto, como o Edifício Diederichsen, construído logo após a quebra da bolsa de Nova Iorque, a Cervejaria Paulista, as edificações da José Bonifácio, o casarão Jorge Lobato, o Palacete Joaquim Firmino, a Catedral Metropolitana, com os acervos de Benedito Calixto, o Palácio Rio Branco, entre outros destaques arquitetônicos”, aponta o historiador.

Um edifício admirável
Com uma construção principal que ocupa o centro do terreno, o casarão é ladeado por um jardim caprichoso, com jabuticabeiras, uma implantação que viabiliza vários acessos à casa e boa visão de todas as fachadas. Aos moldes do projeto feito para a Sociedade Recreativa, construída em 1905, o projeto da Biblioteca Altino Arantes previa uma construção a partir do térreo, sem porão. Atrás do bloco principal, ao fundo do lote, estão implantadas as construções destinadas ao uso dos empregados e área de serviços, formando um conjunto de grande importância histórica, que revela o modo de vida doméstico da elite cafeeira local.

Com dois pavimentos, a ex-residência dos Junqueira tem uma planta organizada simetricamente, na qual os demais cômodos são distribuídos ao redor de um amplo hall central, que substitui os antigos corredores. “Essa distribuição é uma inovação para a época. A casa apresenta, ainda, outras novidades tecnológicas: um elevador e aquecimento central próprio”, afirma o arquiteto Onésimo Carvalho Lima.

O arquiteto também chama a atenção para as superfícies internas, que são ricamente trabalhadas com pinturas nos tetos e nas paredes, e também para os vitrais com suas paisagens e flores. Foram empregados no interior da casa materiais nobres importados no interior. O mobiliário existente no  casarão foi feito em madeira de lei entalhada. “O estilo eclético da construção, com clara herança neoclássica e soluções do repertório neocolonial, serviu de modelo a muitas outras edificações construídas no município nos anos 30 e 40”, afirma Onésimo. O arquiteto ainda destaca que as plantas dos palacetes dos barões do café tinham um traço comum: a compartimentação das atividades que gerou a especialização e proliferação de cômodos, um “morar à francesa”, que adotava padrões civilizatórios  e rompia com o modelo vigente na época. 

Uma vida de doações

Theolina Zemila nasceu em Franca, filha de Francisco Martiniano da Costa e de Maria Rita da Costa. Em 1940, Sinhá Junqueira deu continuidade ao projeto de seu marido e adquiriu da Cia. Agrícola Ferreira Meirelles uma propriedade denominada Morro da Vitória, no bairro Tanquinho, para a construção do Educandário Quito Junqueira, uma entidade assistencial para crianças carentes. As obras foram iniciadas em 1941 e a inauguração ocorreu em 19 de novembro de 1943.

Naquele tempo, a união entre membros de uma mesma família era tradição nos núcleos mais abastados. A mãe de Quito, Mariana Constança Junqueira, era irmã do pai de Sinhá Junqueira, Francisco Martiniano da Costa.

O casal teve um papel importante na formação e nos ideais do município. Visionário e empreendedor, Quito Junqueira tornou-se o maior empresário sucroalcooleiro das Américas, e deixou um legado de responsabilidade social que serve de exemplo até os dias atuais. Nesse sentido, Sinhá Junqueira deu continuidade ao seu trabalho, indo além: doou seis aviões, avaliados em 5 milhões de cruzeiros, uma fortuna na época, para a campanha nacional da aviação “Deem Asas ao Brasil”, organizada no governo de Getúlio Vargas e idealizada pelo jornalista Assis Chateaubriand e pelo ministro da Guerra, Salgado Filho, que visava à consolidação da aviação civil no país. Atendendo ao pedido do mesmo jornalista, na época, embaixador do Brasil na Inglaterra, fez doações que se transformaram em aquisições de obras para o Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Além de ser responsável pela instalação da Biblioteca Altino Arantes no prédio onde viveu com o marido, como não tinha herdeiros, em 14 de julho de 1952, Sinhá Junqueira doou seus bens à Fundação Social “Sinhá Junqueira”, para assegurar assistência total aos empregados e auxiliar organizações filantrópicas e culturais em diversos lugares.

O ano 1943 também ficou marcado pela doação de uma grande quantia para a construção de um centro de puericultura em Ribeirão Preto. A Maternidade Sinhá Junqueira foi erguida no cruzamento das ruas Bernardino de Campos e Sete de Setembro, onde atualmente funciona o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto – Unidade de Emergência. O terreno foi comprado em 1944. O investimento originou a maternidade-escola, com um convênio assinado com a Universidade de Medicina de São Paulo e a Escola de Medicina de Ribeirão Preto. Sinhá Junqueira faleceu em 8 de novembro de 1954.

Os ilustres moradores

Construído ao lado do marco zero ribeirãopretano, na rua Duque de Caxias, 547, a história do antigo casarão começa justamente com o enlace de Francisco Maximiniano e sua prima, Theolina de Andrade, em 1891. O terreno no qual seria construída a casa do casal foi adquirido de Carlo Barbieri, em 1912, e a construção do palacete teve início em 1928. O prédio se tornou a Biblioteca Pública Altino Arantes em 1955, um ano após a morte de Sinhá Junqueira, e recebeu esse nome porque o ex-deputado Altino Arantes Marques era parente do coronel Quito Junqueira.

Francisco Maximiano nasceu no distrito de Ribeirão Preto, em 1867. Conforme o historiador, além de fazendeiro, o coronel foi capitalista, realizando transações financeiras de empréstimo de capital a juros a outros fazendeiros. Exerceu também atividades empresariais urbanas, tendo adquirido, a partir de 1902, vários imóveis em Ribeirão Preto e atuado na construção civil. Foi, ainda, sócio de uma empresa exportadora sediada em Santos, a Junqueira Cia. Exportadora, constituída em 1902. Membro do Partido Republicano Paulista (PRP), foi eleito suplente de vereador, assumiu o cargo na legislatura de 1896 a 1899 e se tornou vereador eleito de 1899 a 1902 e de 1908 a 1911.

Texto: Carla Mimessi
Fotos: Ibraim Leão

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