Um palavrão diz mais do que mil palavras

Um palavrão diz mais do que mil palavras

Envolvido em conceitos como educação, história, cultura, valores e princípios, o hábito de falar palavrões divide opiniões, mas se mantém através do tempo como força de expressão da linguagem popular

Para Elaine, as escolhas que cada um faz revelam, inclusive, a relação com a Língua Portuguesa, a memória linguística e a história de leituraPolêmicos. Assim são os palavrões. Enquanto alguns o defendem como forma descontraída e rápida de comunicar uma sensação, outros o condenam por demonstrar falta de respeito com o interlocutor. Para os especialistas em linguística, há muito mais a ser considerado. De acordo com Elaine Assolini, docente e pesquisadora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), a escolha do uso de palavrões no processo de comunicação não é aleatória. Ao optar por dizer um palavrão “X”, o falante deixa de dizer as palavras “Y”, “Z”, “A”, “B”, por exemplo. As escolhas que cada um faz revelam as filiações ideológicas, o nível de letramento, a relação com a Língua Portuguesa, a memória linguística e a história de leitura.

O falante deve ter em mente que o que diz e o que silencia, como diz e em que circunstâncias o faz, produz efeitos de sentidos. Todos esses aspectos precisam ser levados em consideração, assim como a posição ocupada pelo sujeito no processo de interlocução. Elaine explica: falar um palavrão a partir da posição “colega de classe” para outro “colega de classe”, pode não causar impacto negativo algum, visto que para o colega o uso de palavras de baixo calão pode ter sido naturalizado. Já na posição “estudante” dizendo toda a sorte de palavrões para a posição-sujeito “diretor”, “gestor escolar” ou “prefeito” tem outro efeito. Portanto, a dimensão do impacto do uso de palavrão depende, também, do interlocutor, da maneira como ele recebe essas palavras.

De todo modo, elas produzem efeitos de sentido no processo comunicativo que não podem ser controlados, nem por aquele que os profere nem pelo ouvinte. Assim, tudo depende do contexto, da situação e dos interlocutores. Conversar e dialogar exige observar e escutar os interlocutores, o contexto e a situação na qual se encontram. “Imaginemos o sujeito em um hospital, em uma escola ou em um supermercado, descontente com determinado acontecimento, e, ao invés de conversar, discorrer sobre o que lhe causa o descontentamento, restringe-se a falar os palavrões que conhece, acreditando que por si mesmos eles resolveriam o problema. Se, por um lado, pode se sentir aliviado em sua raiva, ódio, angústia, por outro, suas escolhas linguísticas não lhe permitem se valer de argumentos que o ajudariam a resolver o problema”, explica a pesquisadora.

O uso de palavrões pode se tornar um hábito, sobretudo quando o vocabulário de que o sujeito dispõe não lhe oferece opções. A palavra “caralho”, por exemplo, é usada por algumas pessoas em diferentes situações: para expressarem raiva, como xingamento, para demonstrarem espanto, indignação e até mesmo alegria. “Importa dizer que as incorporações linguísticas são feitas inconscientemente. Não nos damos conta de que incorporamos ao nosso léxico gírias, palavrões, vocábulos e expressões que circulam socialmente. Assim, o cuidado com a língua de maneira ampla e o uso que dela fazemos são aspectos importantes a serem cuidados por todos nós. A escola tem papel importante, no sentido de explicar o funcionamento da língua, oferecer aos estudantes possibilidades de ampliação do vocabulário e levá-los a compreender que a linguagem não é neutra, não é transparente e, ainda, que os conhecimentos e saberes linguísticos não estão à disposição de todos, tendo em vista que vivemos em uma sociedade de classes”, ressalta Elaine, acrescentando que se atentar e cuidar da Língua Portuguesa é indício de respeito a um patrimônio de valor inestimável: a Língua Vernácula.

Nem tão pesados assim

Camila: “os palavrões estão relacionados à força de expressão e não ao sentido exato das palavras”Considerando os aspectos subjetivos da linguagem, o uso de palavrões, para algumas pessoas, serve para extravasar a raiva, o ódio e sentimentos afins. É como se as palavras de baixo calão traduzissem essas emoções e sentimentos e proporcionassem alívio e bem-estar emocional. Elaine lembra, a seguir, da crônica “O Direito ao Palavrão”, escrita por Pedro Ivo Resende: “Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua”.

A linguista e escritora Camila Sabatin partilha a mesma visão. Para ela, os palavrões são marca registrada da expressão da língua. Eles estão relacionados à força de expressão e não ao sentido exato das palavras. “É nosso, é cultural, não se trata de certo ou errado, apenas de uma questão historicamente marcada. Existe muito pudor com os palavrões. Eles revelam preconceitos, machismo e diferenças sociais. Não estou em defesa de falarmos palavrões o tempo todo, mas mostrando que eles expressam emoção, interjeição, língua popular e variação linguística. Bonito ou feio, correto ou incorreto, mau-caráter ou bom-caráter são avaliações que deixo para os puritanos e puristas. Como linguista, apenas retrato, despida de julgamentos”, frisa Camila.

Para a pesquisadora Rebecca Roache, da Universidade de Londres, na Inglaterra, a sensação libertadora de falar palavrões está relacionada com o tabu em torno dessas expressões. Ela cita como exemplo a palavra “merda”. Apesar de ser um sinônimo para cocô, merda é considerado um palavrão. Se em vez de “merda” uma pessoa brava gritasse “cocô”, a situação seria engraçada e não surtiria o efeito desejado. Rebecca acredita que isso tem a ver tanto com o tabu em torno do palavrão quanto com a raiva embutida na hora de invocá-lo. 

O psicólogo Timothy Jay, do Massachusetts College of Liberal Arts, nos Estados Unidos, declara, ainda, que o poder dos palavrões vem da quebra das normas sociais e que as pessoas estão condicionadas a relacioná-los com tabu. Por isso, quando criança, falar palavrões parece ser tão satisfatório e transgressor. De acordo com o psicólogo, a sensação vai diminuindo conforme as pessoas vão amadurecendo, mas quanto menor for a frequência com a qual alguém utiliza palavrões, mais gostosa é sensação que sentirá quando finalmente falar um. 

Como surgem os palavrões

Não há como precisar o surgimento dos palavrões, pois a língua é viva e se modifica, ininterruptamente, mas Elaine revela que eles existem desde sempre. É interessante observar o deslizamento de sentidos ocorridos com as palavras, ao longo dos tempos. Assim, o vocábulo “fresco”, considerado palavrão, em certa época, atualmente, não é mais tido assim. A palavra “peste”, outro exemplo, que já foi considerado horroroso e ofensivo palavrão, hoje, ainda é usada como xingamento, mas não é considerada palavra de baixo calão.

Marcelo já falou muito palavrão, mas, à medida que passou a frequentar mais a igreja, isso mudou naturalmenteA palavra “caralho” designava a pequena cesta que se encontrava no alto dos mastros das caravelas, também conhecida como gáveas. Era dali que os vigias e marujos observavam o horizonte, em busca de sinais de terra. Desconfortável, instável e desagradável, era um lugar evitado e temido. Marinheiros indisciplinados recebiam como castigo a tarefa de permanecer longos períodos nesse lugar; reclamavam, xingavam e o amaldiçoavam. Vem daí a expressão “casa do caralho”.

Os efeitos de sentidos mudam de acordo com o tempo e com os usos que as pessoas fazem das palavras. Assim, o grau de suposta agressividade também depende do contexto sócio-histórico, cultural-ideológico, dos valores vigentes em determinada sociedade e da maneira como é dito pelo falante. Dessa forma, o bom falante de uma língua sabe analisar as circunstâncias e os interlocutores que dão indícios e pistas em relação ao uso de palavrões. Há situações em que eles não cabem, definitivamente.  Contudo, há aquelas em que são aceitos e possíveis para expressarem um fato, fenômeno ou sentimento.

Na visão da pesquisadora, no entanto, o uso de palavrões pode interferir negativamente na construção da imagem pessoal, sobretudo na vida profissional, pois o sujeito explicita as limitações de seu repertório linguístico e demonstra não saber adequar sua linguagem e seu vocabulário às mais diferentes situações. “Uma coisa é usar um palavrão em um campo de futebol, por exemplo, outra é usá-lo em uma reunião de trabalho, na vida cotidiana, nas relações com as pessoas. Entretanto, há pessoas que, na tentativa de parecerem modernas, liberais, bacanas se valem generosamente de toda a sorte de palavrões, esquecendo-se de que o seu interlocutor pode não gostar, não aprovar, não partilhar das mesmas escolhas linguísticas. O modo como utilizamos a língua e o respeito que a ela dedicamos fala de nossa educação, história, cultura, valores, crenças e princípios”, argumenta.

Falar ou não falar?

Juliana considera os palavrões grosseiros e fica bem desconfortável em uma conversa recheada delesA dentista Juliana Ferezin Heck não fala palavrões nem quando bate com o dedinho na quina da mesa, uma boa situação para testar o controle dessas expressões. “Talvez eu tenha soltado alguns palavrões quando adolescente, naquela fase em que queremos nos enquadrar numa turma, mas hoje não falo mais, mesmo quando estou sozinha. Acho grosseiro. Aprendi desde pequena que é falta de educação e não me recordo de ouvir meus pais falarem. Lembro-me de ser repreendida quando, às vezes, falava sem saber o significado.  Nesses casos, meus pais explicavam o que era e cobravam para que eu não falasse mais. Isso influenciou muito: fico me lembrando do sentido literal de cada expressão”, revela a dentista. 

Juliana entende que algumas pessoas falam para desabafar, como se soltando um palavrão se sentissem aliviadas, mas, para ela, isso demonstra falta de respeito. Quando vê uma criança repetindo palavrões que ouvem dos pais e isso ainda é motivo de piadas, fica indignada. A situação é tão desagradável que, muitas vezes, chega a ficar vermelha, sem conseguir disfarçar o constrangimento. “Para mim, não importa se é homem ou mulher. Essa história de que mulher falando palavrão é feio, mas homem não, não cola. Fico bem desconfortável em uma conversa recheada de palavrões”, reforça.

Nos momentos em que uma palavra rápida e certeira é inevitável, Juliana usa “palavrões mais leves”, como “puts” ou “caramba”. O artista plástico Marcelo Maimoni também solta uns “vai tomar banho”, “filho da mãe” e “palhaço”, mas, salvo quando alguém o tira do sério ou o deixa muito nervoso, os palavrões não fazem parte do seu vocabulário no dia a dia. Isso, porém, não foi sempre assim. Marcelo conta que já disse muito palavrão, mas, à medida que passou a frequentar mais a igreja, isso mudou naturalmente. “Não porque é proibido ou pecado, mas acredito que acontece uma transformação de dentro para fora, com mudanças de atitudes e novos hábitos.  Hoje, não preciso ficar controlando para não falar”, expõe o artista plástico.

Marcelo lida com pessoas que têm o hábito de falar palavrões e outras não, mas ele acredita que a maioria tem consciência e vocabulário para saber em que situações eles são ou não permitidos. “Tenho amigos que falam palavrões abertamente em uma reunião social ou em um bar, mas nas redes sociais seus posts são educados e polidos. Isso pode parecer contraditório, mas eu vejo como discernimento”, ressalta. Outro aspecto que observa é o tom da voz. Muitas vezes, o palavrão é usado como forma de agressão, mas, em alguns casos, é apenas força de expressão, como, por exemplo, quando alguém diz: “Pqp, que praia linda!” ou “Essa comida está gostosa para caralho!”.

Déborah costuma falar palavrões em diversas situações, mas sabe quando eles devem ser abolidosA professora de literatura e doutoranda em Estudos Literários pela Unesp de Araraquara, Déborah Garson Cabral, costuma falar palavrões em diversas situações: desde momentos de raiva, no trânsito, por exemplo, até os de satisfação ou de surpresa, como quando seu time faz um gol ou quando leva um susto. Alguns são mais comuns, enquanto outros ocorrem com menos frequência e só são ditos quando ela está muito brava. Déborah também tem um repertório da família, como a palavra “múmia”, por exemplo. “Meu pai sempre usava esse termo quando alguém cometia alguma irregularidade no trânsito na frente dele”, lembra a professora.

A mãe de Déborah, sempre que ouve um filho falando palavrão, repreende e, por isso, ela evita falar na frente dos pais. Às vezes, acaba dizendo perto da filha, que também a censura. Em situações formais, os palavrões estão abolidos. Na visão da professora, o uso de palavrões tem duas funções: a primeira é de insulto, de fato, o que acaba não sendo agradável, mas, algumas vezes, pode significar uma libertação de repressões na linguagem. “Falar palavrão causa bem-estar, certo relaxamento. No meu caso, muitas vezes, falo para mim mesma, no trânsito, por exemplo. Daí eu esbravejo, mas não ofendo ninguém. O palavrão tem uma conotação informal, é usado em grupos e ocasiões específicas, é mais uma marca de variação linguística”, argumenta Déborah. 

O que é palavrão?

O palavrão, baixo calão ou apenas calão é um vocábulo considerado impróprio, obsceno, ofensivo ou agressivo, de acordo com os valores de determinada época, cultura, religião. São, portanto, os aspectos sócio-históricos, culturais e ideológicos de uma época que dão elementos para conceber um vocábulo como “palavrão”.

A rainha dos palavrões

A atriz Dercy Gonçalves, que morreu em 2008, aos 101 anos, ficou conhecida não só por ser um dos maiores expoentes do teatro de improviso no Brasil, mas, também, pela irreverência e pelo uso constante de palavrões nas entrevistas que concedia, mesmo negando que as palavras de baixo calão que pronunciava fossem, de fato, palavrões. Duas de suas frases exemplificam bem isso. 

“O que para os outros é palavrão, para, mim nunca foi — é pontuação. Palavrão não é o que você diz, é o que você faz”.

“Porra, caralho, não é palavrão. Palavrão, meu filho, é condomínio, é fome, palavrão é a maldade que estão fazendo com um colírio custando 40 mil réis. Palavrão é não ter cama nos hospitais”.

Como se libertar do hábito

O consultor James O’Connor, autor do livro “Controle de obscenidades”, criou uma agência para controlar palavrões. Ele diz que falar palavrão polui o ambiente com negatividade, afeta o moral e a atitude de quem fala, além de ser uma grande falta de respeito. O consultor tem dez normas antipalavrões:

1-Reconheça que falar palavrão causa estragos. Você não ganha nenhum argumento nem prova inteligência. Palavrão 
intimida, não estimula.
2-Comece eliminando os palavrões casuais. Faça de conta que a sua avó ou a sua filha estão sempre ao seu lado.
3-Pense positivo. Olhe somente para o aspecto bom das situações.
4-Exercite a paciência. Se você estiver preso no trânsito, em vez de xingar o motorista da frente, pense nas tarefas do dia.
5-Aguente a barra. O dia é cheio de desafios e problemas. Palavrões não irão resolvê-los.
6-Pare de reclamar. Em vez disso, ofereça soluções. Você será admirado por sua calma e sabedoria.
7-Use palavras alternativas. Faça a sua lista. Seja criativo.
8-Defenda sua opinião educadamente. Mesmo sem palavrões, uma frase pode ser muito ofensiva.
9-Pense na oportunidade que você perdeu de ficar calado ou de falar a mesma coisa de outra maneira.
10-Exercite novos hábitos. Falar palavrão é um vício, como fumar. Ao eliminá-lo, avise aos amigos e à família.

A visão religiosa

De acordo com religiosos, a Palavra de Deus condena o hábito de usar palavrões para se expressar. O livro de Provérbios diz: “O que guarda a boca e a língua guarda a sua alma das angústias”. Assim, a recomendação é procurar por palavras substitutas para todos os palavrões que se costuma falar. Palavras comuns como “droga” ou “porcaria” são boas opções.

Texto: Máisa Valochi
Fotos: Ibraim Leão
Ilustrações: Alexandre Nascimento

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