A insatisfação popular

A insatisfação popular

Mais de 20 mil ribeirãopretanos foram às ruas soltar o grito que estava engasgado


Texto: Cristiane Araujo

Fotos: Carolina Alves, Julio Sian e arquivo
Governos federal, estaduais e municipais viveram momentos de tensão nas últimas semanas. Em centenas de cidades brasileiras, os moradores foram às ruas para reivindicar e cobrar mudanças na saúde, educação, transporte público e outras áreas. O aumento de R$ 0,20 na tarifa do transporte público em São Paulo foi o suficiente para acender o estopim e acabar com a paciência da população. A mobilização ocorreu através das redes sociais, canal por onde as reuniões eram agendadas para organizar os movimentos. Depois disso, a mobilização ganhou força e por meio da descrição #VemPraRua a população foi a campo lutar pelos seus direitos.

Em Ribeirão Preto, além da redução na tarifa, fazem parte das reivindicações a volta dos cobradores e das linhas extintas e a transparência de gastos do consórcio Pró-Urbano. “As novas tecnologias das redes sociais possibilitam que as pessoas possam se unir por interesse e afinidade, uma vez que o isolamento quer dos progressistas não vinculados a instituições ou de neoconservadores se tornou possível e patente pelas manifestações”, afirma Wlaumir Souza, sociólogo e professor do Centro Universitário Barão de Mauá.

O Movimento Passe Livre (MPL), criado em 2012, ganhou força com as manifestações nas principais capitais do país. O último manifesto, ocorrido no dia 25, teve o foco voltado à qualidade do transporte público. O MPL alerta que é preciso manter as reinvindicações para causar impacto na cidade e garantir o atendimento das reivindicações. No Brasil, além do pedido da redução da tarifa do transporte público, uma lista com cinco reinvindicações está sendo exigida: Não à PEC 37 (a proposta de emenda foi derrubada no último dia 25 por 430 votos), Saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Senado Federal, investigação das irregularidades na organização da Copa, criação de lei que torne a corrupção crime hediondo e o fim do foro privilegiado.

Há muito tempo não havia manifestações de rua tão expressivas. As últimas foram contra o regime militar de 1964, os protestos dos estudantes contra a censura em 1968 e o movimento ‘Diretas Já’, entre 1983 e 1984, reivindicando a volta das eleições presidenciais diretas. A mais recente foi o impeachment de Fernando Collor, em 1992, que exigia o afastamento do ex-presidente do país. O movimento, identificado como “O Gigante Acordou” não revela sinais de um desfecho rápido. Pelo contrário, o pronunciamento da presidenta do Brasil, Dilma Roussef, em rede nacional na sexta-feira do dia 21, em que afirmou “importar médicos para o Brasil” fomentou ainda mais a indignação popular.

Para o sociólogo Wlaumir Souza, a indignação ocorreu por conta do distanciamento dos governos e dos partidos das demandas sociaisOs manifestantes entendem que o Estado agia contra a nação ao negar o acesso ao transporte, à educação e à saúde pública e gratuita de qualidade, além da falta de transparência e de coerência dos partidos e dos detentores de cargos públicos.  Constituiu-se, assim, um estado de mal-estar-social. A evidência disto aparece no distanciamento dos partidos políticos das demandas populares. No caso de São Paulo e de Ribeirão Preto, os ativistas reclamam da falta de discussão com os movimentos sociais. “As manifestações demonstram o esgotamento de um modelo político-social-cultural onde o Estado estava, em certa medida, contra a sociedade. Na última década, a nação tem assistido ao esvaziamento de suas demandas em favor de uma agenda política que contempla os interesses das elites em detrimento dos direitos e aspirações sociais”, avalia Wlaumir Souza.

O sociólogo aponta ainda alguns fatores que revelam a indignação social brasileira: a inflação que se acelerou nos últimos meses sem um correspondente em deflação; a eleição para controle de pastas e/ou comissões, os projetos do Deputado Federal Marco Feliciano, a reforma agrária ou indígena; a aprovação do estatuto do nascituro, além de alianças políticas espúrias. “A indignação se evidenciou, de forma mais visível, na atual gestão do governo estadual e federal, de distanciamento das demandas sociais em face de uma agenda que privilegia a governabilidade nos palácios e nos legislativos em quase completo divórcio com os interesses da população, sobretudo a mais esclarecida independentemente de partidos ou classes sociais”, conclui.

Cerca de 25 mil pessoas saíram às ruas em Ribeirão Preto, no dia 21 de junho, com diversas reivindicações. A passividade e tranquilidade do manifesto que seguia pelas principais avenidas da cidade foram interrompidas por um motorista. Dentre os manifestantes, 11 pessoas ficaram feridas e o jovem de 18 anos, Marcos Delefrate, faleceu ainda no local. “Se eu tivesse mais de um filho, o aconselharia a não ir às manifestações. Existem outras formas de protestar”.  Foi assim que Maria Rosenilda da Conceição Delefrate começou a breve entrevista. Pausadamente e com a voz embargada, a mãe disse que o filho nunca foi participativo em questões políticas, que a exemplo de amigos e professores resolveu, de última hora, ir à manifestação que, inocentemente tiraria sua vida, mas que nem sabia exatamente pelo o que estava lutando. “Só entrego a Deus e a Justiça pelo ocorrido com o meu filho”, conclui.

Para o psiquiatra da Faculdade de Medicina da Unaerp, José Onildo, a união da multidão amplia o poder individual em favor de uma causa coletiva de milhares. “Dos centavos, as manifestações ganharam força para combater a corrupção do mensalão, a indigência da saúde, a educação de má qualidade e o desperdício de dinheiro na Copa das Confederações. Em Ribeirão Preto, o desejo de vingança tem origem clara na identidade da multidão com aquele que morreu por uma causa considerada justa e abraçada como sendo de todos”.

Marcos Delefrate foi morto na primeira manifestação realizada em Ribeirão PretoAinda assim, o psiquiatra destaca um estado de anestesia dos manifestantes ao viver o ideal de uma multidão. “O desejo de vingança rasa já aparece no Código de Hamurabi, na Babilônia de 1800 a.C. na expressão ‘olho por olho, dente por dente’. Talvez a multidão do ‘um por todos e todos por um’ criasse um sentimento de invulnerabilidade e de imortalidade. Mas, tinha alguém do outro lado, solitário, enraivecido, com muita pressa que decidiu passar com seu carro por cima da multidão. Pobre multidão, do êxtase pela causa precisou encarar a morte repentina”, explica o psiquiatra. 

A ferramenta das redes sociais presente no mundo moderno se torna um facilitador de comunicação entre as classes sociais. “A nova sociedade de massa é mais imprevisível e, com isto, exige dos detentores de poder que passem a ser no mundo real o que são na teoria. O aviso está nas ruas. E a convocação da parte mais emotiva por justiça com as próprias mãos é apenas um dos subprodutos de uma massa conduzida por interesses mais escusos ou emocionais”, acrescenta o sociólogo Wlaumir Souza.

Em homenagem à morte do jovem Marcos Delefrate, a prefeita de Ribeirão Preto Dárcy Vera decretou luto oficial de três dias.    “A tragédia trouxe indignação e tristeza para todos. Uma manifestação pacífica e organizada, que tinha tudo para marcar a história de nossa cidade e servir de exemplo para a democracia do País, deixou uma grande cicatriz em todos nós”, comenta a prefeita. No último dia 25, amigos e familiares de Marcos Delefrate se reuniram na Catedral de Ribeirão Preto para rezar pelo jovem. A lembrança foi marcada por uma passeata com velas e a cruz levada pelos amigos até o altar.

O acusado
O empresário, Alexsandro Ichisato de Azevedo, saía do supermercado da esquina da Avenida João Fiúsa com a José Adolfo Bianco Molina quando se deparou com o manifestação. Pressionado pela população para que desse ré e saísse com o veículo do meio da multidão, Alexsandro acelerou o carro e acabou atropelando 12 pessoas, um deles era o estudante de 18 anos Marcos Delefrate.

No dia 21 de junho, a Justiça de Ribeirão Preto decretou a prisão preventiva do empresário por 30 dias. Em entrevista à imprensa da cidade, o empresário afirmou não ter visto as pessoas na frente do carro, contrariando a orientação do gerente do supermercado que pediu aos clientes que saíssem por outro lado para evitar o confronto com os manifestantes. O veículo da marca Land Rover foi deixado por Alexsandro em sua residência, no dia do ocorrido, e levado para perícia em Araraquara. Até o fechamento desta edição (26/06), o acusado e nem o advogado de defesa, Ricardo Augusto Nascimento Pegolo dos Santos, entraram em contato com a Polícia. O advogado pediu à Justiça o pedido que o processo corra em sigilo, pois o empresário teme pela sua vida e de seus familiares.

A legitimidade dos protestos
As manifestações são usadas para expressar o sentimento de uma população e aspirações a respeito de um determinado assunto. “Não há dúvidas de que a manifestação liderada pelo Movimento Passe Livre (MPL) reivindicando a manutenção do preço da passagem de ônibus na cidade de São Paulo em R$ 3,00 foi totalmente atendida”, comenta Fábio Pereira, advogado.

O advogado ainda explica que a legitimidade de uma manifestação pode ser aferida pelsas dimensões sociológicas, políticas, filosóficas e jurídicas. Na esfera política, assegura-se a condição que a sociedade tem de se pronunciar, no plano constitucional, a liberdade de expressão, como reuniões pacíficas, sem uso de armamento e em locais abertos ao público. É importante lembrar que as manifestações comprometem o respeito e a eficácia ao perder a legitimidade jurídica. “Não temos dúvida de que a manifestação é um importante caminho para redução da impunidade. Mais do que isso, as manifestações deverão ser consequentes no sentido de conscientizar e fazer com que sejam exercidos os mecanismos democráticos de participação popular, além de demonstrarem a atenção e acompanhamento dos assuntos pertinentes à população”, completa Pereira. “Os excessos devem ser rigorosamente coibidos pela própria população que promove a manifestação, para que o ato não seja indevidamente utilizado por vândalos e criminosos, ou ainda estigmatizado pelas parcelas da população que não participam do manifesto. Exceto neste aspecto, de suma importância, é altamente legítimo e desejável que  a população expresse seus anseios e desejos através dos mais variados tipos de protestos, com certeza de que estes manifestos contribuirão para um País melhor”, conclui.

Manifestantes acampam em frente à Prefeitura
O protesto realizado em Ribeirão Preto, no dia 25, levou às ruas cerca de cinco mil pessoas. Apesar de o foco ser a questão do passe livre, outras reinvindicações foram agrupadas ao manifesto: melhorias na educação, fim da corrupção e transparência com os gastos da Copa do Mundo. Insatisfeitos com a primeira redução na tarifa de R$ 0,10 anunciada pela prefeita Darcy Vera, cerca de 150 manifestantes acamparam em frente à Prefeitura para manter o protesto por diminuição de R$ 0,30 sem isenção de imposto. No período da tarde, a prefeita anunciou uma nova redução de R$ 0,15. Com essa redução, o valor da passagem cai de R$ 2,80 para R$ 2,75 com isenção de Imposto Sobre Serviços (ISS) a partir do dia 1º de julho.

PESQUISA
Encomendada pela Rede Globo, uma pesquisa IBOPE foi divulgada nesta semana sobre os manifestantes brasileiros. A pesquisa revela que 46% das pessoas nunca tinham participado de uma manifestação de rua. As informações foram coletadas durante as manifestações do dia 20 de junho. Outros dados revelados na pesquisa são importantes:

Razões para participar das manifestações
53,7% Transporte público
11,9% Contra a PEC 37
2,9% Administração pública
1,8% Por direitos e democracia

Com quem foi às manifestações
65% Amigo ou colega
22% Sozinho
11% Namorado/Marido/Mulher
8% Irmão ou outros parentes
4% Filho
2% Mãe

Como soube das mobilizações
77% Facebook
13% Não se mobilizou através de redes sociais

Convocou outras pessoas através das redes sociais
75% Facebook e Twitter

Interesse por política
89% Muito interesse
11% Pouco ou nenhum interesse


Luta
“Os objetivos das reinvindicações são claros para a sociedade e para os poderes responsáveis. É importante reforçarmos a luta pelos nossos direitos e recuar não está em nossos planos”
Vitor Paschoalick, Advogado






APOIO

“A medida em que saimos às ruas ganhamos mais apoio da sociedade na busca pelos nossos direitos e para atingirmos o nosso objetivo que é a reforma política do nosso país. A questão da qualidade
no transporte público é importante para promovermos a inclusão social em nossa cidade.”
Cassiano Figueiredo, estudante de Letras






MOBILIZAÇÃO
“Sair às ruas é importante para o pleno exercício do sentimento que atinge grande parcela da nossa população em vários segmentos. A internet ajuda a mobilização daqueles que não têm acesso, ou seja, a população a favor de todos.”
Maria Aparecida dos Santos, aposentada







VIOLÊNCIA
“Sou a favor da luta de todos os cidadãos brasileiros pelos seus direitos, sejam políticos, econômicos ou sociais, só não concordo com o uso da violência. Assim, todo e qualquer manifesto perde o sentido. Por isso, eu protesto no momento da votação”
Fábio Cristiano Félix, Analista de Sistemas













SOLIDARIEDADE
“Sou a favor do movimento, por muitos anos esperei que a sociedade se levantasse e desse um basta a toda essa injustiça. Infelizmente não pude participar da primeira manifestação. Manifesto minhas reivindicações através dos colegas e das redes sociais”
Marcelo Brigato, Fotógrafo













PROTESTO NA ELEIÇÃO
“Desde que os manifestos não percam a originalidade e caiam por terra através da minoria que vandaliza. Por outro lado, é preciso lutar pela qualidade dos serviços públicos, além da redução das tarifas do transporte. Prefiro protestar em 2014, ano eleitoral”
Simone Betinardi, Assistente Administrativo

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