Caminhos e descaminhos de um trânsito conturbado

Caminhos e descaminhos de um trânsito conturbado

O Município ainda procura caminhos que levem à mobilidade urbana

Engana-se quem pensa que são atuais os problemas de trânsito e de mobilidade urbana, hoje tão evidentes em Ribeirão Preto. Há 28 anos, esses temas já geravam polêmicas e preocupações por parte da comunidade e das autoridades locais. Apesar de a 9ª edição da revista Revide, de 1987, trazer na capa a manchete “Urbanismo, a face do desenvolvimento”, cuja matéria enaltecia mudanças importantes no cenário urbano, como a construção do viaduto Presidente José Sarney, que reduziu a incidência de acidentes, o recapeamento e a duplicação de avenidas e a construção da Via Expressa Norte, desde 1982, com o crescimento da população, a cidade viu crescer, de forma vertiginosa, os problemas com o transporte coletivo, agravados pela expansão de novos bairros em áreas cada vez mais distantes da zona central. 

No ano seguinte, a 16ª edição da Revista apontava entraves até  hoje não solucionados pela administração pública: as limitações da mobilidade nas ruas estreitas da região central; o excesso de trânsito causado pela concentração de edifícios na região e um dos maiores índices de carros por habitantes.  Em resposta a essas questões, o ex-prefeito João Gilberto Sampaio inaugurou o Terminal de Integração Tarifária de Trólebus na Praça Carlos Gomes e uma linha que ligava o Centro ao Hospital das Clínicas, além das entregues anteriormente, no Jardim Independência e na Vila Virgínia. Em fevereiro de 1990, a Revide de nº 20 trazia um diagnóstico mais sombrio sobre o tema: a matéria “Sinal vermelho para o trânsito” alertava sobre o barulho e os acidentes, sobre a falta de estacionamentos e anunciava o descrédito popular no transporte coletivo, que impelia os usuários a gastarem mais com transportes individuais.

 Nessa época, o cenário já era bastante complexo: o transporte coletivo atendia a cinco milhões de pessoas ao mês — 200 mil ao dia e 25 mil nas horas de pico — o que totalizava 53 milhões de pessoas ao ano, enquanto 150 mil veículos automotores circulavam por Ribeirão Preto. Essa briga crescente pelo espaço, entre carros, motos e ônibus, resultava numa média diária de quatro acidentes  no Centro. Essa realidade deu ao Município um título expressivo: “campeã nacional na média de carros por habitante”. Os 430 mil habitantes possuíam cerca de 100 mil carros particulares. Diante do quadro, o ex-diretor da Transerp, Dante Approbato, sugeriu a remoção do terminal do Centro e a diferenciação dos horários de funcionamento das repartições públicas e do comércio para evitar os estrangulamentos dos horários de pico. A ideia era descentralizar a administração, fomentando a instalação de empresas e de repartições em diferentes pontos da cidade.

 Nesse contexto, surgiu um questionamento: o trólebus, implantado em julho de 1982, ainda era o melhor meio de transporte para o Município? A implantação do trólebus ocorreu devido à crise do petróleo na década de 70. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, Ribeirão Preto foi escolhida para sediar um projeto piloto, que testava a eficiência da energia elétrica no transporte de pessoas. Nesse mesmo contexto, foi criada a Transerp S/A. O especialista em transporte, Raphael Pileggi, defendeu a manutenção do sistema, alegando que o problema foi a falta de reposição da frota e a ausência de investimento, mas que, em termos de durabilidade, 10 trólebus equivaliam a 60 ônibus. O projeto inicial previa 38 unidades em circulação, mas apenas 21 estavam operando em 1990.

 O então presidente da Transerp, Dante Approbato, afirmou que, na época da implantação, a energia elétrica era cinco vezes mais barata que o diesel, mas que alguns anos depois o combustível do ônibus padrão equivalia à metade do custo representado pela utilização do trólebus. Diante do fato, a autarquia estava pleiteando a mudança de certificado de qualificação junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que Ribeirão Preto operasse um sistema misto, e que tinha a intenção de acrescentar à frota 16 ônibus a diesel.  A essa altura, outra mudança significativa havia ocorrido: a edição de setembro de 1990 alertava que o Município tinha a quinta maior frota de veículos do Estado, perdendo, apenas, para São Paulo, Campinas, Santo André e Santos, com 179.464 veículos registrados (148.119 carros). 

Em junho de 1991, os 207 ônibus ribeirãopretanos transportavam 180 mil passageiros por dia, 25 mil nos horários de pico, totalizando 50 milhões de pessoas transportadas mensalmente. Seis anos depois, a matéria de capa do dia 16 de fevereiro anunciava “um veículo para cada dois moradores”, enquanto na Europa a proporção era de 1 para 6; nos EUA, 1 por 8, e na Argentina, 1 para 10 pessoas, destacando a explosão de vendas de carros zero. Os preços estáveis impulsionaram, de forma violenta, o aumento do trânsito: a Santa Emília vendia, na época, 200 carros novos ao mês, computando um crescimento nas vendas de 45%, de 1995 para 1996. A Itacuã Veículos não ficou atrás — registrou, no último ano, o mesmo percentual de vendas ao mês. A Atri Fiat foi além e conseguiu comercializar 350 automóveis no mesmo período. 


Nesse momento, a alternativa sugerida pelo diretor do Departamento de Serviço de Trânsito, Carlos Eduardo França, foi melhorar a sinalização, com a implantação de lombadas, radares e a contratação de uma consultoria para realizar uma análise global do trânsito em Ribeirão Preto, além das campanhas de educação no trânsito. Comprovando a tendência, em julho de 2000, a revista anunciou a redução do número de usuários do transporte coletivo de 1995 a 1999: com 285 ônibus, a queda anunciada foi de 65 milhões para 52 milhões de passageiros. Outro fator importante que traria consequências futuras para a mobilidade urbana foi a desativação dos dois terminais de ônibus existentes em Ribeirão Preto, em 1999, e do próprio trólebus.

 Uma edição especial de 8 de maio de 2009 mostrou, entretanto, que o número de veículos na frota não seria suficiente para mudar a realidade do trânsito: apesar de o transporte coletivo contar com 307 ônibus e 28 vans do sistema Leva e Traz, que transportavam 187 mil usuários ao dia, o diagnóstico da população apontava graves problemas, como a falta de terminais urbanos, um transporte coletivo superlotado e lento,  preço abusivo das tarifas e uma situação geral do trânsito bastante complicada. Como resposta, os especialistas sugeriram a criação de faixas exclusivas para ônibus, a utilização de veículos articulados, que comportam maior número de passageiros, a construção de terminais urbanos, a implantação de ciclovias, a realização de um plano de transporte viário e a implantação de um metrô de superfície. A Transerp refutou essa última sugestão, afirmando que esse tipo de veículo é indicado para transportar 15 mil passageiros por hora, enquanto o fluxo de Ribeirão Preto equivalia apenas a três mil. 


Hoje, a cidade conta com 650 mil habitantes, 345 unidades que integram a frota do transporte coletivo, entre ônibus e micro-ônibus, com 478.737 veículos licenciados. Dois contratos assinados com a Caixa Econômica Federal, no início deste ano, podem ser o ponto de partida para mudar a realidade do Município: o primeiro, assinado em 14 de fevereiro, vai liberar R$ 278,7 milhões para obras de mobilidade urbana, especificamente, e o segundo, celebrado em 4 de abril, prevê mais  R$ 64 milhões para serviços que incluem a pavimentação de ruas.

 Esta liberação, que faz parte da segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) do governo federal, estipula uma contrapartida de mais R$ 5,5 milhões do Município, da mesma maneira que a liberação do financiamento de 278,7 milhões também está condicionada a uma contrapartida municipal de R$ 31,9 milhões, totalizando R$ 310,6 milhões, a serem utilizados em obras que devem ser concluídas em quatro anos, a partir da contratação dos serviços.  


Para dar fluência ao trânsito, a Transerp pretende implantar 56 km de corredores estruturais do transporte coletivo, com sistema semafórico inteligente, autoprogramado, alimentado por contagem volumétrica automática, que priorizará os coletivos, conforme informação do superintendente da Transerp, William Antonio Latuf.  Por meio do projeto encaminhado ao Ministério das Cidades e aprovado pelo Governo Federal (PAC2 Mobilidade Médias Cidades), devem ser construídos 30 km de ciclovias, quatro viadutos; quatro pontes, dois túneis; uma passarela; adequar o complexo viário que interliga as avenidas Nove de Julho, Portugal e Antônio Diederichsen e duplicar a Avenida Antônia Mugnato Marincek. A Transerp pretende, ainda, ampliar a frota, o número de linhas para integração, os abrigos, implantar 20 novas linhas, adquirir novos ônibus, construir o Terminal Central, o Terminal da Jerônimo Gonçalves e a Estação Catedral, além de oito locais de integração nos bairros. 


Apesar de ser mais complexa do que as iniciativas anteriores em relação à mobilidade urbana, o projeto enfrenta resistências. Um dos pontos polêmicos é o local de construção da Estação Catedral, cuja implantação pode ser suspensa devido ao tombamento do conjunto da Catedral, recentemente  determinado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio  Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Para o engenheiro Roberto Azevedo, as propostas da Transerp possuem um cunho imediatista. “Não são ciclovias, nem a ampliação das linhas e do número de ônibus que resolverão o problema. Aliás, com o aumento no número de ônibus, nas ruas estreitas de Ribeirão Preto, a situação do trânsito se tornará ainda mais caótica”, critica Roberto.


Marli ressalta a importância da educação para o trânsito 

Mesmo a implantação de ciclovias é questionada pelo engenheiro, se ocorrer nos moldes atuais. Conforme Roberto, mal sinalizado, o espaço oferece pouca proteção ao ciclista, pois na via em que está implantada a velocidade é superior a 50 km por hora. “Nos domingos pela manhã, muitos jovens condutores saem de baladas, sob o efeito de bebidas e de outras drogas. A forma, o local e o horário de funcionamento desta ciclovia é uma tragédia anunciada, pois os motoristas não têm noção de cidadania e de civilidade”, acrescenta. Para o engenheiro, a solução está na instalação de três linhas de metrô de superfície: uma de Bonfim Paulista a Brodowski, outra de Cravinhos a Jardinópolis e uma terceira de Serrana a Sertãozinho, todas passando pelo Centro de Ribeirão Preto, em uma estação de interligação na Praça Carlos Gomes e na Praça XV, com bolsões de estacionamento em todos esses municípios, evitando que os carros cheguem a Ribeirão Preto. “No futuro, essas linhas seriam interligadas por outras em forma de anéis. Em muitos trechos, o metrô pode ser de superfície, mais barato, não precisando da perfuração de solo. Nas áreas já edificadas, terá que ser subterrâneo. No quadrilátero entre as avenidas Nove de Julho e Francisco Junqueira, Independência e Jerônimo Gonçalves, o tráfego poderia ser restrito a bondes, carros de moradores e pequenos veículos, preferencialmente movidos à bateria para abastecimento de lojas, supermercados e até mesmo para o transporte de pessoas”, sugere Roberto. 

Um bom modelo para o engenheiro é Amsterdã, cuja população equivale à de Ribeirão Preto, e conta com um sistema que abrange bondes, trens, metrôs e ciclovias, com pouco espaço para uso de carros e motos. Em resposta às afirmações de especialistas de que essas mudanças seriam caras e inviáveis, Roberto questiona o quanto se gasta com combustível, tempo e produtividade em um trânsito que não flui e com colisões que geram as vítimas fatais e gravemente feridas, além dos prejuízos causados aos patrimônios público e particular. Apesar de, na história de Ribeirão Preto, as intervenções urbanas terem se mostrado insuficientes com o passar dos anos, a advogada especialista em Direito de Trânsito, pós-graduada em Engenharia de Tráfego, Marli Iossi  Zocarato, acredita que isso não deverá acontecer, em médio prazo, com as medidas propostas pela Transerp e pelo projeto do PAC 2, devido ao nível de interferência proposta na mobilidade. A advogada lembra, ainda, que os investimentos, complementados pelo Pacto da Mobilidade, poderão trazer resultados duradouros. “Embora haja a necessidade do incentivo ao transporte público, sem as obras em questão, os ônibus não circulariam da forma necessária”, argumenta, acrescentando que o incentivo dado pelo governo federal em relação ao transporte pessoal, as obras do PAC 2 podem minimizar os problemas do trânsito. Quanto ao planejamento de ações visando à melhoria da mobilidade com vistas no futuro, Marli afirma que a cidade precisa ser preparada para o crescimento contínuo, mas que essa projeção deve ser feita levando em conta a realidade do Município. A advogada enfatiza que, apesar do complexo metroviário, São Paulo não consegue atender com dignidade os usuários, e que o investimento nesse tipo de transporte pode ser muito alto para Ribeirão Preto. Marli ressalta, entretanto, que é preciso avançar muito no quesito trânsito, sobretudo em relação à educação, que deve começar muito cedo para que, aos 18 anos, o motorista esteja preparado psicologicamente e emocionalmente. “É preciso investir mais em parcerias publico/privadas de educação e orientação, pois este é um problema de todos nós, de respeito e civilidade para com a sociedade”, conclui. 

 Informação
Eu atuava na área de compras da Transerp e, em maio 1987, fui transferido para a área de transporte. Desde 1986 houve muitos avanços, mas eu destaco a nova concorrência pública, a nova rede que foi integrada, com frota nova e acessível. Outra conquista importante foi proporcionar a informação ao usuário, que tinha uma rede de transporte, mas não conseguia obter informação sobre ela. Hoje, fornecemos informação pelo site, pelo guia e pelo aplicativo on-line, o que possibilita ao usuário usufruir melhor e cada vez mais dessa rede. O futuro depende do transporte público: não dá para pensar mais no transporte individual. Os avanços são esses e o que vem pela frente: os terminais, os corredores de transporte que nunca existiram em Ribeirão Preto e que serão implantados em breve.  Tudo isso irá coroar com chave de ouro as mudanças ocorridas até então no que tange à mobilidade urbana. 
José Mauro de Araújo, diretor de transporte da Transerp.

Desafio 
Em 1982 e 1983, participei de dois projetos em favor da mobilidade em Ribeirão Preto: o programa cicloviário de Ribeirão Preto, com 140 Km de ciclovias projetadas e o projeto do Terminal Antônio Achê, já demolido. De 1986 até hoje, o transporte coletivo de Ribeirão Preto piora a cada dia. Além do momento atual, os piores foram a desativação do sistema Trólebus, em 1999, operado pela Transerp, sistema aprovado pelos usuários e a desativação dos dois únicos terminais de ônibus. Nem o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, aprovado em 1993, conseguiu inverter a prioridade dada à mobilidade para os carros, em detrimento do transporte coletivo. Teremos uma oportunidade entre 2014 e 2015, se a Prefeitura discutir com a sociedade o melhor modelo e cumprir o que determina a Lei Federal da Política Nacional da Mobilidade Urbana, que obriga todos os municípios acima de 20 mil habitantes elaborar e aprovar o Plano Diretor de Mobilidade Urbana. Que mobilidade queremos? Este será o desafio!
Augusto Valeri, arquiteto e urbanista.  


Ciclovia

 “No ano de 1986, estava me formando em Engenharia da Produção e fui trabalhar em São Paulo, onde fiquei por 11 anos. Andávamos muito, inclusive à noite, pelo Centro, Nove de Julho, Boulevard, era a época das discotecas. Tínhamos a disposição os Trólebus para o Jardim Independência para Vila Virgínia para o Hospital das Clínicas e Iguatemi. Os carros tinham placas de seis dígitos, a Avenida Caramuru era pista simples, o primeiro viaduto da cidade tinha acabado de ser construído e os carros passavam livremente pelo Centro. Muita gente ia trabalhar de bicicleta e Ribeirão tinha um consistente plano de ciclovia que não foi implementado.”
André costa Lucirton, professor da FEA/USP-RP.   

Plano Viário A velha agenda não deixa dúvida. Em 20 de janeiro de 1986 vim para Ribeirão Preto, viagem semanal a produzir fotos ao longo do tempo. Trabalhando em transportes e docente em Ribeirão, componho um filme da cidade e de seu tráfego. O tempo gasto no trecho urbano não preocupava. A avenida Francisco Junqueira troca memória de bulevar para mar veicular. Em 28 anos, a cidade dobra em habitantes e quadruplica a quantidade mensal de veículos novos. Atualmente, preciosos recursos vão para vias, atendendo carros e dificultando a efetivação de um plano viário com calçadas mais importantes que asfalto e bicicletas a alimentar ônibus, que circulariam em faixas exclusivas. No atual cenário, a ansiedade por novo trevo se tornará frustração, se o cidadão não resgatar cidade da já tóxica dependência do carro para suas necessidades.   Creso Fernando Peixoto, Mestre em Transportes, professor do CUML Moura Lacerda, Engenharia Civil.

Integração
 Em 1986, eu era gerente técnico da Transerp e prestava assessoria técnica ao Departamento de Trânsito. Quando cheguei a Ribeirão Preto, em 1980, havia duas empresas atuando e um sistema de transporte que não era integrado. Em 1984, fizemos a concorrência pública, três empresas foram vencedoras. Em 1985, começamos a viabilizar a integração tarifária: não havia vale-transporte e muitas pessoas pagavam quatro ônibus para ir e voltar do trabalho. Começamos, então, a buscar equipamentos eletrônicos que viabilizassem o processo, de forma inteligente. O trabalho mais importante que fizemos nesse período foi este. Em 2000, fomos um dos primeiros do país a instalar a bilhetagem integrada, e a partir daí os equipamentos se aperfeiçoaram cada vez mais. Hoje, bilhetagem é o que possibilita a integração na grande maioria das cidades. 
Reynaldo Lapate, analista da Diretoria de Transporte da Transerp.

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