Exemplo na Ciência

Exemplo na Ciência

Apresentador de TV e radialista, Antônio Carlos Morandini, conversa com pesquisador da USP, Célio Lopes Silva, sobre os rumos da pesquisa no país

O professor titular de Imunologia da USP, mestre e doutor em Bioquímica, especialista em Biologia Molecular e livre-docente em Microbiologia, o pesquisador Célio Lopes Silva tornou-se referência nacional no desenvolvimento de pesquisas, especialmente na busca por vacinas e tratamentos para tuberculose e câncer de cabeça e pescoço, entre outras áreas. Para que construísse uma trajetória profissional consistente, precisou contornar as dificuldades da vida de trabalhador da roça da juventude e persistir em busca da nova realidade. Foi este cidadão ribeirãopretano, que na verdade é natural de Leme, também no interior de São Paulo, que o radialista Antônio Carlos Morandini escolheu para um bate-papo especial para a Revide.


Morandini: O senhor começou a trabalhar muito antes de estudar?
Célio:
Sim, até os 17 anos eu trabalhava na roça, era pau de arara. Depois, foram surgindo ideias para mudar e fazer algo diferente. Para isso, contei muito com o incentivo do meu pai e de amigos. Eu tinha um grupo de amigos em Leme, que formava de uma espécie de comunidade. Éramos a Associação de Jovens Idealistas Lemenses. Todos queriam fazer e torciam para que os colegas fizessem algo diferente. Recebi muito apoio desses amigos, com os quais mantenho contato até hoje. Crescemos juntos e, cada um em sua atividade, conseguiu se sobressair. Essa foi uma grande motivação inicial, além da família.

M: Por onde iniciou seus estudos?
C:
Com o incentivo do meu pai, que me ajudou um pouco, e também com os recursos que capitalizei através do cultivo de arroz, mandioca e outras culturas, consegui ir para São Paulo. Lá, encarei cursinho por um ano e meio. Em Leme, tinha cursado o Normal, na área de Humanas. Mas aquela formação, que era a única que eu poderia estudar à noite, não me deu base em Química, Física, Matemática ou Biologia. Quando decidi que queria seguir carreira em Biologia ou Medicina, tive que correr atrás do prejuízo, o que me exigiu, no primeiro ano, muitas horas diárias de estudos. Precisei ter muita força de vontade para vencer esta etapa.

M: As dificuldades foram grandes? 
C: Sim, começando pelo aprendizado. Quando a aquisição do conhecimento não segue o curso de evolução normal, fica muito difícil. Aprendi tudo em um ano e meio. Além de correr atrás do prejuízo, eu precisava me lembrar que a competição era acirrada para entrar na Universidade de São Paulo, que era meu objetivo. Na hora da decisão final, escolhi o curso de Farmácia e Bioquímica, que me permitiria trabalhar de dia e estudar à noite.

M: Nos anos decorrentes, o senhor acumulou muitas formações, não é verdade?
C:
Por sorte, logo que ingressei na Faculdade, prestei concurso para trabalhar no laboratório de Química como técnico e entrei, apesar da forte concorrência. Depois de formado, fiz mestrado e doutorado em Bioquímica antes de passar dois anos em Londres, onde me especializei em Biologia Molecular através de uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). De volta ao Brasil, adquiri o título de professor livre-docente em Microbiologia Médica, pela USP, e, quatro anos depois, cheguei a professor titular em Imunologia. Fiz cursos que se complementaram, que me deram uma visão abrangente da Biologia, o que me ajudou muito.

M: O senhor já trabalhou em várias pesquisas, uma delas, direcionada à cura e à prevenção da tuberclose. 
C:
Com o conhecimento do genoma do bacilo causador da tuberculose, clonamos o gene de uma proteína e copiamos em um plasmídeo, uma construção gênica. Percebemos que, ao inocularmos esse plasmídeo no ser humano ou no animal, a proteína era sintetizada no próprio indivíduo. Ou seja, a informação genética gerava o antígeno da bactéria. A descoberta foi, para a nossa surpresa, fantástica porque, além de prevenir a tuberculose, poderia curar a tuberculose.

M: Por que essa descoberta não está à disposição da população?
C:
Tudo isso foi feito na Universidade, mas uma coisa é comprovar um conceito por meio da pesquisa e outra é desenvolver essa descoberta tecnologicamente. Para isso, precisamos contar com o envolvimento de uma empresa. Infelizmente, o Brasil não tem competência para o desenvolvimento tecnológico, pois faltam infraestrutura e recursos humanos. Quando não encontrei isso por aqui, montei uma estrutura, criando uma empresa. Nos países desenvolvidos, quando um novo conhecimento é gerado na universidade, já existem diversas pequenas e microempresas associadas aos projetos. Só que, em outros países, essas empresas recebem recursos e, por isso, conseguem dar andamento ao processo. Ao final, contam ainda como uma grande empresa farmacêutica que produz essa tecnologia. Aqui, só temos o conhecimento da universidade, ainda faltam a microempresa e o grande interessado na produção.

M: Já houve casos em que pesquisas inteiras foram perdidas por conta disso? 
C:
Sem dúvida. Tomei como desafio dar prosseguimento a isso. Por isso, passei a investir tanto na infraestrutura quanto nos recursos humanos para levar nossas pesquisas ao mercado. Temos 18 doutores na nossa empresa. Consegui alguns recursos do CNPq, da Fapesp, entre outros órgãos, mas ainda é pouco. Para desenvolver uma vacina até o estágio clínico, o custo chega a U$ 350 milhões. Até agora, só pude contar com R$ 8 milhões.

M: A diferença é enorme.
C:
De fato. O Brasil não só não tem infraestrutura como também não tem clareza nas regulamentações da Anvisa. É frequente anular um trabalho em andamento, já testado, porque uma nova norma regulatória foi criada. Não é raro passar muito tempo nesse vai e volta. Apesar disso, avançamos chegando, inclusive, aos testes com macacos, uma exigência no caso da tuberculose. Entramos em contato com o órgão responsável pelo fomento à pesquisa nos Estados Unidos e conseguimos uma verba de U$ 6 milhões para desenvolver os testes no país norte-americano. Os testes levaram cerca de cinco anos e foram concluídos recentemente com excelentes resultados. Agora, estamos documentando o que já foi feito para apresentar à Anvisa e liberar o ensaio clínico em pacientes resistentes a drogas para tuberculose. Esse perfil está aumentando assustadoramente porque muitos pacientes abandonam o tratamento, tornando-se imunes às drogas. Para eles, não há outra opção. 

M: O que falta para que esse trabalho evolua?
C: O problema é que a tuberculose não gera interesse. Não há nenhuma empresa, nacional ou internacional, interessada nessa tecnologia. A tuberculose é uma doença que atinge majoritariamente as pessoas de baixa renda e para esse perfil de paciente não se vende remédio caro. O produto deveria ser vendido para o Ministério da Saúde, que paga muito pouco. Por isso fica difícil gerar interesse. 

M: Quanto se gasta, no Brasil, com a tuberculose?
C:
Acredito que o orçamento do Ministério da Saúde para o Programa Nacional de Controle da Tuberculose esteja em torno de R$ 50 milhões por ano. Só que as estratégias utilizadas não são as mais adequadas. O maior foco de transmissão da tuberculose são os presídios. Para se ter uma ideia, enquanto a incidência da doença na população é de 30 a 40 casos em 100 mil habitantes, essa relação chega a 1500 a cada 100 mil presidiários. Ou seja, o foco é conhecido, o diagnóstico e o tratamento são acessíveis, mas, mesmo assim, o controle não é feito. Logicamente, por se tratar de uma doença de contato, a tuberculose se espalha. O Brasil não consegue atingir as metas da Organização Mundial de Saúde (OMS).

M: Ficaria mais barato investir na pesquisa?
C:
Acredito que sim, pois, em tese, será possível tratar tanto o paciente quanto seus contatos, prevenindo a proliferação da doença. A vacina também permitiria reduzir o tempo de tratamento de seis para dois meses, o que com certeza reduziria o índice de abandono que, hoje, é altíssimo.

M: Sua pesquisa gerou desdobramentos. O senhor conseguiu, por exemplo, antecipar o diagnóstico da hanseníase?
C:
Esse estudo foi desenvolvido em parceria com o Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP. Criamos um teste diagnóstico para a lepra. Esse kit é usado no hospital. Como essa, há várias tecnologias desenvolvidas que, apesar de pontuais, ajudam a resolver um grande número de problemas. 

M: Sua experiência também o levou a avançar na direção da cura do câncer de pescoço e cabeça?
C:
Sim. Desenvolvemos um produto que inclui essa possibilidade. Quando a pessoa está com câncer, tem seu sistema imunológico debolitado. O próprio câncer diminui a capacidade de defesa do organismo. Conseguimos descobrir um produto que reverteria esse quadro. Fizemos todo o desenvolvimento e chegamos à fase de ensaios clínicos um e dois, feitos com pacientes portadores de câncer de cabeça e pescoço. Atingimos uma alta eficácia em 20 pacientes.

M: Essa pesquisa foi abandonada?
C:
Em humanos sim, porque os ensaios clínicos subsequentes são muito caros e não temos o suporte necessário. No entanto, daremos continuidade aos testes clínicos em cães com câncer, que revelaram resultados maravilhosos. Agora, surgiu uma parceira ribeirãopretana, a Vitafort, interessada na tecnologia. Eles nos convidaram a realizar nossa pesquisa dentro da empresa. Esse é o modelo ideal. Em dois anos, o produto deve chegar ao mercado veterinário.

M: O senhor acredita que é possível ver esse ciclo se completar mais vezes?
C:
Eu acredito e, por isso, invisto na empresa de desenvolvimento, criando a possibilidade de dar vazão ao conhecimento da universidade. Essa é uma característica minha: gosto de desafios e quero ir até o fim.
M: O que as autoridades brasileiras poderiam fazer para colaborar?
C: Acredito que um caminho seja incentivar o surgimento de empresas como a que eu criei. Em relação ao conhecimento, a universidade está cumprindo seu papel e ampliando o nível de pesquisa cada vez mais. Precisamos, agora, encontrar caminhos para desenvolver essa ideia, diminuir os riscos e transferir para uma empresa maior. Dessa forma, ganham a universidade, a iniciativa privada e a população.

M: É possível dizer que a cura do câncer pode estar por aí, em um laboratório universitário, aguardando para ser desenvolvida?
C: Esse é um problema real. A maior parte do conhecimento gerado, inclusive, só é registrada no papel. É preciso implementar e transformar essas ideias em realidade.

M: Acredita que vai conquistar seu objetivo final?
C: Acredito que sim. Com o tratamento de câncer em cães, estamos muito próximos de chegar ao final, só precisamos cumprir todos os aspectos regulatórios, que são muito exigentes. Quem sabe depois disso, possamos dar continuidade às pesquisas beneficiando, no futuro, humanos? Só o fato de gerar um produto que cura é uma grande vitória. M: Que pesquisas o senhor está desenvolvendo neste momento?C: Além das pesquisas para tratamento de câncer em pequenos animais, temos outros dois produtos para tratamento de glioblastoma, que é o câncer cerebral. Apesar de ainda estarem em fase de desenvolvimento dentro da Universidade, temos provas de conceito sobre seu funcionamento. As duas moléculas que estamos estudando são antígenos tumorais que, acredito, poderão evoluir muito. Também focamos nos biofármacos. Para se ter uma ideia, o Brasil gastaR$ 300 milhões por ano em apenas um produto responsável por atenuar os efeitos colaterais do tratamento de câncer. Estamos desenvolvendo um desses biossimilares para suprir o mercado nacional. Se houvesse uma empresa interessada, poderíamos acelerar o processo e chegar rapidamente ao mercado, que é certo. 

M: Com tudo isso, sobra tempo para a família e para o lazer?
C: Já completei meus 60 anos e estou me esforçando para cuidar mais do meu bem-estar. Reservo tempo para pescar, atividade que gosto muito e que me proporciona muitas viagens, de cinco a seis por ano.

M: Para os estudantes que almejam uma carreira científica, qual seria sua recomendação?
C: O grande problema dos últimos dez anos é que os estudantes que estão chegando à pós-graduação são muito despreparados. Nessa etapa, ainda apresentam conhecimento e comportamento de início de graduação. Além disso, não demonstram empenho ou vontade para fazer a diferença. Acredito que muitos deles estejam interessados apenas pela bolsa de estudos. Entre dez alunos, em um reconheço maior interesse e criatividade. Essa percepção — de que os alunos estão chegando malformados à pós-graduação — é comum nos cursos em diversas áreas do conhecimento. Falta base para tudo, inclusive para interpretar um texto. Precisamos prestar mais atenção ao ambiente universitário.

Texto: Luiza Meirelles | Fotos: Carolina Alves

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