Um exemplo de cidadania

Nelson Stefanelli, com trabalho voluntário, consegue orientar as pessoas pelas ruas da cidade

 

Como o futebol é uma paixão nacional, não é de se espantar que os brasileiros estejam de olho no calendário, contando os dias para o início da Copa do Mundo. A realização de um evento de grande porte como esse movimenta a nação nas mais diversas esferas e, consequentemente, expõe algumas fragilidades.

A poucos dias da festa de abertura, é comum ler notícias apontando a falta de infraestrutura do país para receber os turistas. Por ter sido escolhida como cidade sede da Seleção Francesa, Ribeirão Preto também se tornou objeto de análise.

Um dos pontos que mais chamam a atenção dos críticos é a questão da locomoção no Município. A falta de sinalização nas vias, que gera dúvidas e confusão entre os próprios moradores, pode ser um sério problema para os estrangeiros.

Enquanto o poder público não toma nenhuma iniciativa a respeito, um cidadão decidiu agir por conta própria e, com os recursos que dispõe, tem feito esse trabalho em favor da sociedade.

Difícil encontrar uma pessoa que não tenha visto as placas produzidas de forma artesanal por Nelson Stefanelli. Com fundo branco e letras pretas, elas estão espalhadas por postes e muros de todos os bairros, informando o nome correto de cada rua, além de indicar locais estratégicos, como universidades, hospitais e acesso às principais estradas.

O arquiteto Fernando Rivaben confessa que já recorreu a esse recurso para se orientar e que ficou curioso para saber quem estava por trás desse gesto tão simples e, ao mesmo tempo, tão eficiente.

Revide promoveu um encontro entre os dois. Na entrevista, o comerciante aposentado explica a razão que o levou a fazer esse exercício de cidadania: a paixão pela cidade e a vontade de contribuir para vê-la funcionando melhor.

Fernando: Por que você decidiu confeccionar essas placas? Como essa história começou?
Nelson: Na minha rua, Dr. Roberto Mange, nos Campos Elísios, não havia nenhuma sinalização. Era comum ver as pessoas perdidas. Como eu conheço bem Ribeirão Preto, já que nasci aqui, especialmente aquela região, onde vivo há tantos anos, sempre ajudava com informações. Na maioria das vezes, um pequeno erro no trajeto resultava em longas voltas para retomar o caminho correto. Para evitar que o problema continuasse, fiz uma placa com o nome da via e coloquei na frente de casa. Isso foi em outubro de 2004. Nos dias seguintes, fiquei observando a movimentação na área e percebi que a minha iniciativa, apesar de extremamente simples, tinha sido útil. Quem passava por ali olhava a indicação e não tinha mais dúvidas em relação ao percurso. Para facilitar a vida de mais gente, resolvi estender a ação para a vizinhança e, posteriormente, para o Município inteiro. Hoje, depois de quase dez anos, calculo que tenho umas cinco mil placas espalhadas por todos os cantos. Amo Ribeirão Preto. Resolvi fazer a minha parte, o que estava ao meu alcance para ver a cidade funcionando perfeitamente.

Fernando: E como escolhe os locais para colocá-las?
Nelson: Percorro as ruas, do início ao fim, com máxima atenção, procurando pontos falhos que podem confundir pedestres e motoristas. Como a cidade não para de crescer, temos cruzamentos novos a serem identificados quase diariamente. A Prefeitura não exige que os loteadores cuidem disso na hora da entrega dos empreendimentos e, muitas vezes, o serviço acaba demorando demais para ser feito. Por isso, tenho investido nesses bairros mais recentes, como o Jardim Botânico, por exemplo. Conto com o auxílio do Guia oficial, e até dos próprios moradores, para obter as informações certas. Não posso me propor a fazer um trabalho como esse, de orientação, e errar. É preciso ter certeza absoluta. Para pendurar, procuro locais de fácil visualização, como postes e muros.

Fernando: Quais são os materiais que você utiliza? Qual o custo dessa boa ação?
Nelson: No início, usava a madeira como matéria-prima. Hoje, as placas são feitas de forro de PVC: mais leves, fáceis de manusear e sustentáveis. Algumas empresas que conhecem minha iniciativa fornecem os retalhos gratuitamente. O dinheiro para o lápis, a tinta e para o arame sai do meu próprio bolso. Porém, não é caro e rende bastante. Lembro que, em uma das gestões do ex-prefeito Welson Gasparini foi feito um orçamento completo para colocar 20 mil placas no Município. Ele desistiu porque o valor ultrapassou a cifra dos R$ 500 mil. Do jeito que eu faço, o custo é mínimo e o efeito é basicamente o mesmo.

Fernando: Você tem um cronograma de produção?
Nelson: Não tenho nada definido. Sou um comerciante aposentado, mas ainda tenho uma rotina agitada para administrar. Sempre que sobra uma folga, eu me dedico a esse ofício de artesão. Geralmente, fico envolvido com isso cerca de duas horas por dia. Às vezes, dedico até mais. É que eu me divirto tanto que acabo me distraindo e nem vejo o tempo passar.

Fernando: Faz algum tipo de manutenção?
Nelson: Felizmente, nunca registrei nenhum tipo de depredação. Mesmo assim, costumo conferir as placas frequentemente. De tempos em tempos, algumas delas precisam de reparos por conta das ações do clima, como sol, chuva e vento em excesso. Quando isso acontece, recolho a peça, levo para casa, reformo e instalo novamente. Se o desgaste é muito significativo, faço uma nova.

Fernando: Já teve que recorrer às suas próprias indicações para se localizar?
Nelson: Por incrível que pareça, já. É até engraçado admitir isso. Sei andar pela cidade muito bem, sem maiores problemas. Só que, às vezes, a mente dá um apagão e não consegue reconhecer de imediato o caminho. Se isso acontece comigo, confesso, olho para as esquinas e procuro as minhas indicações. Elas ajudam bastante.

Fernando: Existe um reconhecimento por parte da população?
Nelson: As pessoas utilizam as placas, a maioria já ouviu a história de como elas são feitas, mas não me conhecem pessoalmente. Por isso, falam sobre o assunto perto de mim de uma forma totalmente imparcial. Fico satisfeito porque os comentários são sempre positivos. Esse é o maior reconhecimento que eu poderia ter.

Fernando: Você tem a autorização da Prefeitura para fazer esse trabalho?
Nelson: Não existe um acordo oficial, nenhum papel assinado, mas o governo acabou aceitando. É um serviço de utilidade pública, que objetiva apenas o bem dos moradores. Portanto, não vejo razões lógicas para impedir o trabalho.

Fernando: Já teve algum problema em relação a isso?
Nelson: Apenas uma vez. A Transerp foi orientada a fazer uma limpeza geral e recolher placas de propaganda que causavam poluição visual. Por engano, algumas das minhas foram retiradas também. Fiquei muito chateado. Fui até lá, questionei e peguei de volta as cerca de 45 peças que estavam estocadas em um depósito. Fiz pequenos reparos nas que estavam com defeito e devolvi cada uma delas para o seu devido lugar.

Fernando: Falando sobre poluição visual, qual a sua opinião sobre a Lei Cidade Limpa, aprovada em dezembro de 2011?
Nelson: Gosto bastante dessa ideia. Quem circula pela cidade sofre com o excesso de informação e propagandas em fachadas, letreiros e muros. Em contrapartida, falta o mínimo, que seria uma placa com o nome da rua. Se ela existe, não consegue ser vista em meio a tanta confusão. A Lei vai mudar essa situação, deixando em exposição apenas o que é importante e necessário. As alterações já estão sendo feitas e é possível notar a diferença. Por isso, estou bastante otimista.

Fernando: Em breve, Ribeirão Preto vai receber um número expressivo de turistas, já que foi escolhida como sede da Seleção Francesa durante a Copa do Mundo de futebol. Visto tudo isso que mencionamos durante a entrevista, você acredita que a cidade está preparada para essa missão?
Nelson: Honestamente, não. Essa negativa não se restringe à questão da sinalização. Existe um despreparo em todos os setores e muito pouco tempo para tentar resolver. As autoridades precisam se organizar, assumir a responsabilidade e desenvolver um trabalho sério e comprometido com o cidadão. Este, por sua vez, também tem que se conscientizar da importância de suas ações diante do coletivo. Do que adianta cobrar limpeza exemplar e jogar lixo na rua? É preciso ter coerência entre o discurso e o modo de agir, além de respeito ao próximo. Falta educação e esse é o princípio básico para uma boa convivência entre os seres humanos. Cada um tem que fazer sua parte. Só assim poderemos evoluir. O desafio é difícil, mas tem que ser encarado. Os resultados podem demorar a aparecer, mas vale a pena lutar por uma boa causa.

Fernando: Existe alguma cidade que você considera exemplo de sinalização?
Nelson: São Paulo, apesar de todas as dificuldades que enfrenta, é bem estruturada nessa área. Por todos os lados, vemos placas de orientação. Outros municípios que chamaram a minha atenção foram Uberlândia e Goiânia. Fiquei pouco tempo em cada uma delas, mas o suficiente para notar que existe um bom planejamento. Agora, o sistema mais prático e funcional é o que chamamos de tabuleiro de xadrez onde, ao invés de nomes, colocamos letras e números. Orlândia e Araraquara adotaram esse modelo e tiveram sucesso.

Fernando: Pretende continuar com esse trabalho por mais tempo?
Nelson: Com certeza absoluta. Enquanto houver a necessidade e eu tiver saúde e disposição, não vou parar.

ESPÍRITO DE COLETIVIDADE

“Quando fui convidado para participar desta matéria, tive como tarefa a escolha de uma pessoa que, de alguma forma, contribuísse com a cidade por meio de suas atitudes. Pensei em diversos nomes, alguns com destaque na sociedade e evidência na mídia, outros anônimos. Lembrei-me de um Cidadão, assim, com letra maiúscula, que eu não conhecia pessoalmente, mas que, por diversas vezes, havia me ajudado com o seu trabalho. Nelson Stefanelli é um abnegado que faz um trabalho silencioso e extremamente útil em prol da comunidade, e que traduz o verdadeiro conceito de cidadania. O povo brasileiro, por questões culturais ou até mesmo educacionais, não tem o espírito de coletividade como premissa de convívio social, como acontece em outros países. Uma iniciativa como a de Nelson traduz, neste aparente pequeno gesto, a grandiosidade de um trabalho voltado para o bem-estar de seus semelhantes. Além disso, também retrata as condições precárias dos serviços públicos no Brasil, e nos faz refletir se nosso país e nossas cidades têm condições de receber eventos de âmbito internacional, como a Copa do Mundo. Fica a pergunta: dentro da realidade caótica, é correto que os cidadãos ou a iniciativa privada assumam o que deveriam ser atribuições dos órgãos públicos?”
Fernando Rivaben, arquiteto.

Texto:
 Paula Zuliani
Fotos: Julio Sian

* Publicado em 16/04/2014

Compartilhar: