História e legado

História e legado

Há 20 anos, Hospital das Clínicas realizava primeiro transplante de fígado em Ribeirão; procedimento foi um dos primeiros do interior do Estado de São Paulo

A rotina da publicitária Bianca Gimenes Feiteira pouco mudou após o casamento, em setembro de 2017. A nova fase da vida com o marido, os gatos e o trabalho seguiu tranquila até janeiro de 2018. Aos 36 anos e sem nenhum histórico de problemas graves de saúde, Bianca passou um por exame de rotina no início daquele ano. E foi nesse momento que tudo mudou. "Quando eu peguei esse exame, vi que os resultados do meu fígado estavam muito alterados. Tanto que eu fui para o hospital ter uma consulta de emergência. Eles me internaram, estavam assustados porque não sabiam o que era", contou. A causa para a alteração brusca nos exames era uma cirrose biliar primária, uma doença autoimune que deteriora o fígado e pode levá-lo à falência. Normalmente, quadros como esse são desenvolvidos em alcoólatras inveterados e como consequência de hepatites: nenhum dos casos era o de Bianca, o que fez com que a doença pudesse avançar silenciosamente em seu organismo longe de qualquer suspeita. "Quando você recebe um diagnóstico desse com 36 anos pensa 'meu deus, vou morrer. Agora não tem saída'. Mas os médicos me trouxeram de volta para a realidade", revelou a publicitária.

Antes de contarmos o desfecho da história de Bianca, devemos voltar alguns anos no tempo para entendermos a importância desse momento. Apesar de ostentar a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP), o município não era uma referência no transplante de fígado até os anos 2000.  No final dos anos 1980, Ribeirão Preto passava dos 400 mil habitantes e já possuía porte suficiente para estruturar a própria equipe de transplante de fígado. Contudo, não possuía profissionais treinados e nem estrutura para isso. Esse processo teve início com estudos experimentais conduzidos pelos médicos e professores Orlando Castro e Silva Júnior e Ana Martinelli, apoiados pelos professores Reginaldo Ceneviva e Ulysses Meneguelli, chefes das Disciplinas de Gastroenterologia Cirúrgica e Clínica respectivamente. Assim, durante toda a década de 1990 foi constituída a base do que seria Grupo Integrado de Transplante de Fígado, uma equipe multisetorial que deveria acompanhar todo o processo do transplante, da fila de espera ao pós-operatório.

E foi exatamente isso o que aconteceu com a publicitária Bianca. Assim que foi constatado a gravidade do quadro de saúde, ela foi encaminhada para o HC onde contou com todo acompanhamento multisetorial, com clínicos, psicólogos, fisioterapeutas entre outros profissionais. Após passar por uma bateria de exames pré-operatórios, no dia 18 de maio de 2018, Bianca recebeu o seu número do MELD (Model for End-Stage Liver Disease) do inglês, Modelo para Doença Hepática Terminal, esse sistema de pontuação quantifica a urgência de transplante hepático em pacientes e posiciona o donatário na fila de espera. Bianca entrou na 33ª posição. "Você fica com uma angústia muito grande, porque é totalmente imprevisível. Pode ir rápido ou pode demorar meses. Ficamos naquela agonia e temos que sobreviver", destacou. Contudo, o estado de saúde dela se agravou rapidamente e ela precisou ser internada. Nesse espaço de tempo, que levou cerca de um mês, ela saltou da 33ª posição para a 1ª no ranking de prioridade, tendo em vista a rápida evolução da doença.

Apesar de ser a primeira da fila, a publicitária ainda dependia de um doador. “Eu precisava de um milagre completo. Porque lá eu tinha todos os médicos e a estrutura necessária a meu dispor, só dependia de um doador que era a parte mais difícil”, lembrou Bianca. Em meio à incerteza e cada vez mais fragilizada, na madrugada do dia 23 de junho Bianca foi acordada por um enfermeiro. O órgão havia chegado. "Foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Eu já não estava mais com medo de fazer a cirurgia, mas com medo de não fazer. Sabia que o caminho era um só", declarou. Com os conhecimentos adquiridos na publicidade, atualmente Bianca se tornou uma defensora do transplante de órgãos e sempre que pode, utiliza as redes sociais como canal de conscientização. “A família do meu doador sabe que ele está vivo dentro de alguém. Você promover a vida apesar de ter tido uma perda é muito importante”, ressaltou.

A PRIMEIRA CIRURGIA

Toda a história de superação enfrentada por Bianca só foi possível graças ao trabalho de médicos pioneiros na região que realizaram a primeira cirurgia de transplante de fígado há 20 anos, no dia 1º de maio de 2001. Com a equipe que fora lapidada durante os anos 90, o time de profissionais estava pronto para fazer história na região.  Com a lista de espera recém-criada, bastava surgir um doador para dar início ao procedimento. "Eu estava em um congresso em Vitória, no Espírito Santo e fui notificado que havia um doador em Ribeirão Preto. A cirurgia começou em torno das 19h. Eu cheguei, me preparei para a cirurgia. Descansei e refleti sobre tudo o que poderia dar errado", contou o professor Orlando Castro e Silva Júnior. O doador foi uma pessoa que teve morte encefálica, na Unidade de Emergência do HC. Apesar da fatalidade, o fato contribuía para o sucesso da doação, tendo em vista que em muitos casos os órgãos precisam ser transportados de um município para o outro. Ao todo, cerca de 40 pessoas estavam prontas para dar início à cirurgia.

Porém, um imprevisto atrasou o procedimento. "Às 23h tivemos um problema com o ar condicionado. O transplante não podia ser cancelado! O paciente já estava clinicamente e psicologicamente preparado para o transplante", lembrou o professor. Por volta das 2h da madrugada o defeito foi consertado e o transplante pode acontecer. Ao todo, a cirurgia durou 12 horas.  O paciente transplantado, vindo da cidade de Campinas, teve uma boa evolução pós-operatória, recebeu alta hospitalar dez dias após a cirurgia. Com o sucesso do procedimento, estava consolidada a instalação definitiva do terceiro centro de transplante de Fígado do Interior do estado de São Paulo. Segundo Castro e Silva, o transplante deixou um legado para a ciência e a medicina em Ribeirão Preto. A capacitação dos profissionais e os avanços nas pesquisas nessa área elevaram o nível dessa área na USP. "A pesquisa continua. Só com o transplante de fígado você pode montar toda uma faculdade de medicina porque é um processo muito complexo", destacou. Desde então, o hospital já efetuou cerca de 500 transplantes de fígado, com capacidade para a realização de 40 por ano.

Após Orlando se aposentar, o comando do grupo de transplantes ficou nas mãos do médico e professor Ajith Kumar Sankarankutty, do Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP. Segundo o especialista, para um programa de transplante para manter bons indicadores de desempenho precisa se adaptar às necessidades do sistema de saúde que o abriga e implementar determinados protocolos, além de novas tecnologias e práticas. “Nessas circunstâncias, estabelece-se um ambiente favorável à formação, na graduação e na pós-graduação, à pesquisa com inovação, bem como o aparecimento de novas lideranças capazes de manter e disseminar a cultura singular dos programas de transplantes viscerais”, explicou. Ademais, Sankarankutty integrou a equipe do primeiro transplante e ressalta que os sentimentos são semelhantes em todos os transplantes, pois a logística envolvida, as particularidades das famílias dos doadores e receptores tornam cada procedimento muito distinto.   

OS DOIS TRANSPLANTES

Sem dúvidas a equipe do HC de Ribeirão Preto é essencial para que os pacientes recebam o transplante e possam ter uma vida normal após a cirurgia. Todavia, sem o doador nada disso seria possível. Rogério Alves Pereira, de 70 anos, pode analisar toda essa "cadeia produtiva" com uma visão única: ele foi médico por mais de três décadas e é mais um caso de um transplante feito pelo Hospital das Clínicas. Um não. Dois. A história dos dois transplantes de fígados do médico aposentado teve início em 2012. Com o diagnóstico de uma cirrose hepática medicamentosa, Pereira entrou na fila para o transplante de fígado, sendo contemplado em janeiro de 2015. "Eu fui comunicado que o órgão que foi implantado tinha uma circulação um pouco ruim. E eu fui avisado e isso é um direito do paciente saber. Um órgão mal irrigado dura menos. Então eu sabia que a vida dele seria curta", explicou.

Três anos após a cirurgia, em janeiro de 2018, durante um período de férias em Búzios, Pereira começou a passar mal. Com as dores ele retornou de viagem e logo em seguida deu entrada no HC. A princípio foram feitos os procedimentos necessários para tentar salvar o órgão, mas houve uma falência total. Enquanto estava internado, surgiu um possível doador, porém o órgão não era compatível. Após cerca de 48 horas de espera e com a ausência de qualquer função hepática, o órgão compatível enfim apareceu. "Estava muito mal, e do dia 2 de fevereiro em diante eu não vi mais nada. Fizeram o transplante no dia 8 e eu acordei lá para o dia 13. Foi um sofrimento, principalmente para a minha esposa que ficou comigo do meu lado o tempo todo", lembrou. Atualmente, Pereira continua com o tratamento com imunodepressores e mantém uma dieta rígida. Contudo, diz levar uma vida normal. Na mesma semana em que o HC completou 20 anos do primeiro transplante de fígado, ele e a esposa completaram Neusa completaram 43 anos de casados.

DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

Todas as cirurgias citadas nessa matéria só puderam ser feitas com o auxílio de doadores. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), a doação de órgãos acontece, exclusivamente, comprovada a morte encefálica. Após diagnosticado com morte encefálica a pessoa não tem como mais “reviver” e assim, todos os outros órgãos ainda funcionam, possibilitando a doação. A morte encefálica só ocorre e é diagnosticada em pacientes hospitalizados que estejam respirando com ajuda de aparelhos. Pacientes que falecem fora de hospitais não se enquadram nesse grupo. Além disso, pessoas com tumores malignos, doenças infecciosas graves ou alguns tipos de doenças infectocontagiosas não podem doar. Por lei, cabe a família autorizar ou não a doação. Por isso, é importante que os doadores deixem claro essa vontade aos familiares.

Uma pessoa que morre nas causas descritas acima, pode salvar até oito vidas, podendo doar coração, pulmão, fígado, os rins, pâncreas, córneas, intestino, pele, ossos e válvulas cardíacas. Pessoas vivas também podem doar, sendo possível a retirada de um rim, medula óssea, arte do fígado (em torno de 70%) e parte do pulmão (em situações excepcionais). “Quando a pessoa morre esses órgãos vão se deteriorar. Quando você doa eles vão permanecer vivos em outras pessoas”, comentou Pereira.  “Você promover a vida apesar de ter tido uma perda é muito valioso”, acrescentou Bianca.  Além disso, Castro e Silva destaca que em um país como o Brasil, com o Sistema Único de Saúde (SUS) – que realiza cirurgias de transplante de forma gratuita – a doação de órgãos deveria ser algo cultural. O médico fala com conhecimento de causa já que divide o tempo vivendo no Brasil e na casa dos filhos em Chicago, nos Estados Unidos. "Os EUA não conseguiram fazer um modelo como o nosso. Lá o paciente tem que depositar uma quantia de cerca de 200 mil dólares só para começar a cirurgia", contou o médico. No câmbio atual, seria algo em torno de R$ 1 milhão.

Contido, de acordo com o médico Sankarankutty, infelizmente, a oferta de órgãos está muito aquém do necessário. "Muitos pacientes acabam falecendo na fila de espera, aguardando uma doação", alertou. Além disso, após a constatação da morte encefálica, o doador precisa de um suporte de terapia intensiva para manutenção dos órgãos, mesmo que seja por um período curto, até que se consiga realizar a captação daquele órgão. Não obstante, nem sempre essa infraestrutura de suporte intensivo está disponível nos hospitais do país, o que se acentuou durante a pandemia. "Porém, em 42% das situações, a recusa familiar em realizar a doação ainda é o que impede a possibilidade de muitos pacientes receberem um transplante. Isso mostra um potencial enorme que temos para aliviar o sofrimento de pacientes que aguardam este procedimento", esclareceu o médico.

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