A hora e a vez da ciência

A hora e a vez da ciência

Físico e professor do Departamento de Medicina Social da FMRP-USP, Domingos Alves destaca a importância do desenvolvimento científico no cenário de pandemia

O Brasil foi o primeiro país a sequenciar o genoma do novo coronavírus em 24 horas. Um feito admirável, mas que revela a eficiência da ciência brasileira frente a falta de investimentos: muitos pesquisadores que estão empenhados em investigar a Covid-19 têm feito o trabalho de forma voluntária. O cenário da pesquisa em território nacional durante a pandemia de Covid-19 é avaliado pelo físico e professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), Domingos Alves, que também revela descontentamento com as medidas de relaxamento na restrição de atividades. “O que veremos nas próximas semanas é uma situação crítica dessa epidemia e que não foi observada em nenhum país do mundo até agora”, avalia Domingos, em entrevista a seguir.

 

Foi preciso uma pandemia mortal para colocar a ciência novamente em seu papel de destaque frente aos desafios da humanidade. Como o senhor, como cientista, se sente em relação a isso?

Realmente, a pandemia ressaltou a importância da ciência como agente fundamental nesse combate. A ciência brasileira, que tipicamente tem sido relegada a segundo plano, principalmente internamente, tem se mostrado uma excelente parceira, inclusive dos gestores que estão à frente do combate à epidemia. O Brasil foi o primeiro lugar no mundo que sequenciou em 24 horas o genoma do vírus. A partir dali, só notícias boas em relação às inserções científicas que vieram durante a pandemia aqui no Brasil. O país está produzindo resultados que são relevantes para o resto do mundo, mas nós temos um crescimento, principalmente nos últimos anos, de uma desvalorização importante da ciência, a falta de financiamento. Muitos dos cientistas que estão trabalhando no combate à Covid-19 fazem isso de maneira voluntária, dada a importância. Inclusive, logo no início, houve cortes de bolsas e de financiamento que atrasaram as pesquisas relacionadas à vacina da Covid-19 no Brasil. Nosso país tem de tomar consciência de que a pesquisa aqui não só é importante, como é competitiva no mundo. Contudo, para competir, precisamos de investimentos. No caso do novo coronavírus, poderíamos, com investimentos, estar trabalhando de igual para igual com outros centros mundiais em termos científicos, e isso não está acontecendo.

 

Não acostumados com os processos científicos, muitos cobram respostas rápidas de soluções para crises de saúde como a que estamos vivendo, mas a ciência tem o próprio tempo, protocolos de testagem e validação. Como conciliar a pesquisa científica com a pressa por resultados?

Isso não é conciliável. Não existe uma conciliação temporal do que a ciência pode produzir e das expectativas da população, principalmente no que se refere às emergências que nós temos, como é o caso da Covid-19. O mundo e, principalmente, o Brasil, têm de entender que a ciência precisa de um investimento prévio e, assim, precisa de tempo para evoluir.

 

Como o senhor observa o atual cenário da pandemia da Covid-19 no Brasil?

A partir do dia 1º de junho, foram tomadas decisões, por vários governadores e prefeitos, de adotar um relaxamento das medidas de restrição, por motivos sempre políticos, no meu entender. Observo um ‘apagão’ entre o que a ciência está produzindo de evidências e as decisões que os gestores estão tomando. No Estado de São Paulo, estamos contestando ferrenhamente a ideia de retomada das atividades econômicas. Esses gestores não conseguiram lidar adequadamente com a epidemia e, em vez de virem a público confessar o fracasso — já que, até agora, o controle da epidemia no país não se deu —, eles vêm com um discurso que tem um forte apelo de que está baseado em ciência, quando, na verdade, não está. A tomada de decisão é política. Só para se ter uma ideia, nós preparamos um documento em que recolhemos todas as evidências que temos para vários municípios do Estado de São Paulo, inclusive a capital, mostrando as consequências na primeira semana a partir dessa ‘abertura inteligente’ que foi dita, que de inteligência não tem nada. É importante frisar que hoje, no Brasil, todos os cientistas, de maneira unânime, seriam contra essas medidas de relaxamento. Na verdade, todas as evidências mostram que deveria haver uma união com a população para aumentar índices de restrição de mobilidade. Contudo, governadores e prefeitos, na ansiedade, talvez, por causa das eleições que se aproximam, têm tomado medidas contrárias à ciência. Na minha opinião, o que o presidente Jair Bolsonaro tentou fazer com essa epidemia desde o começo, muitos governadores, por incompetência no controle, estão tomando medidas similares agora. Hoje, eu percebo que existe a ciência brasileira em uníssono, dizendo o mesmo, e a mídia tentando traduzir para a população, mas sem efeito. Isso não causou reflexo na população e nem nos gestores, o que é uma infelicidade. O que nós vamos observar nas próximas semanas é uma situação crítica dessa epidemia e que não foi observada em nenhum país do mundo até agora.

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