O atual protagonista da pandemia

O atual protagonista da pandemia

Brasileiros que moram no exterior compartilham suas vivências em relação ao enfrentamento da Covid-19 e comentam a situação atual do país

Texto: Paula Zuliani


O mundo acompanha, com apreensão, o avanço da Covid-19 pelo Brasil que, nas últimas semanas, tem sido avassalador. De acordo com levantamento do consórcio de veículos de imprensa — considerando os dados divulgados pelas secretarias estaduais de saúde —, um ano após o início da pandemia, o país vem registrando sucessivos recordes de mortes e passou de 2.000 óbitos pelo novo coronavírus em 24 horas. A previsão do Ministério da Saúde é que esse índice cresça ainda mais até o final do mês, ultrapassando a barreira dos 3.000 óbitos por dia. O número de internações e de casos confirmados também continua em alta, levando o sistema de saúde, público e privado, de norte a sul, à beira de um colapso.

Diversos fatores contribuíram para esse cenário crítico: o alastramento do vírus em todo o país (impulsionado pelas aglomerações no fim do ano e no Carnaval), a dificuldade da população em manter o isolamento social depois de tanto tempo, o desespero diante da inegável crise econômica, a divergência ideológica das autoridades em relação aos protocolos de enfrentamento, a circulação de novas variantes mais contagiosas e com grande carga viral e a falta de vacinas para imunizar os brasileiros são alguns deles. Enquanto o Brasil se destaca negativamente como um dos protagonistas da pandemia, outros países que também passaram por momentos difíceis mostram que negar ou minimizar a realidade não é a saída. Confira, a seguir, o relato de quatro brasileiros que saíram de Ribeirão Preto e estão vivendo no exterior. Nos depoimentos, eles descrevem as suas rotinas, discorrem sobre as estratégias adotadas pelos governos na tentativa de conter a doença e estimam dias melhores para o Brasil.  

PERTH, AUSTRÁLIA
No dia 26 de janeiro de 2020, pouco antes de as fronteiras serem fechadas, a família de Marcela Cravo partiu rumo a Perth, na Austrália. “Essa é a minha segunda casa. Minha relação com o país começou em 2001, quando realizei um intercâmbio para aprender inglês. A experiência me trouxe mudanças significativas, pessoais e profissionais. Meses depois de voltar para o Brasil, meu marido fundou a AC Australian Centre, empresa especializada em intercâmbio cultural para a Austrália e a Nova Zelândia. Decidi embarcar nesse projeto como sócia-fundadora. Juntamente com a operação no Brasil, temos quatro escritórios na Austrália. Além do trabalho, também construímos laços familiares e de amizade muito fortes aqui. Por isso, dividimos a nossa vida entre os dois países”, explica. 

Sobre o momento atual, a empresária ribeirãopretana enfatiza que, com a adoção de medidas rigorosas de controle, a Austrália tem demonstrado eficiência na gestão da pandemia. Para ilustrar como a questão está sendo conduzida, ela relata uma situação que aconteceu recentemente. “No final de janeiro, após dez meses sem nenhum novo caso, um segurança de um hotel que recebe hóspedes de quarentena foi infectado em Perth. Isso foi o suficiente para que as autoridades colocassem a 4ª maior cidade do país em lockdown por cinco dias”, revela. Ainda hoje, todos permanecem em alerta. O governo criou um aplicativo que escaneia o código de barras de identidade de cada estabelecimento comercial. Antes de entrarem, as pessoas fazem o check-in pelo QR Code disponível na porta. Assim, caso haja novos infectados, é possível mapear os lugares em que eles passaram e avisar aqueles que estiveram nesses espaços sobre o risco.

Mesmo de longe, Marcela acompanha atentamente a progressão da Covid-19 no Brasil e evita comparações. “São países com diversos contrastes econômicos e, especialmente, demográficos. Por ser uma grande ilha, sem fronteira com outros países, a Austrália tem uma vantagem significativa. Outro ponto: estamos falando de uma população de, aproximadamente, 25 milhões de habitantes aqui. No Brasil, são quase 220 milhões. Portanto, o desafio aí, sem dúvida, é gigantesco, mas tenho visto uma importante mobilização entre o setor privado e a sociedade civil”, comenta a empresária, destacando a iniciativa Unidos Pela Vacina, do Grupo Mulheres do Brasil, que trabalha para otimizar o sistema de imunização nacional. “Eu espero que ações como essa coloquem o Brasil em uma posição melhor de combate”, conclui.

LONDRES, INGLATERRA

A executiva de marketing digital Fernanda Botelho de Oliveira mora em Londres desde março de 2018. Ouviu as primeiras notícias sobre a pandemia em janeiro do ano passado, quando se preparava para passar um final de semana prolongado em Cardiff, no País de Gales, ao lado do marido, Gabriel. Por precaução, o casal incluiu na lista de compras para a viagem alguns potinhos de álcool em gel. “Na época, pensamos que estávamos exagerando. Mal sabíamos que esses potinhos seriam essenciais porque, quando a pandemia se intensificou, era quase impossível encontrar álcool em gel”, lembra. O esvaziamento das prateleiras dos supermercados foi um dos primeiros sinais de que o senso de desespero tinha dominado a Inglaterra. Durante um bom tempo, produtos como papel higiênico, arroz, carne, leite, macarrão, molho de tomate, enlatados, farinhas e pães ficaram indisponíveis. 

Criticado pela demora para tomar as atitudes necessárias, o governo mostrou poder de reação. “Hoje, quem tem sintoma só precisa ligar ou entrar no site do governo para receber em casa os materiais e as instruções para fazer o teste. Se a pessoa não consegue ou prefere não fazer o procedimento sozinha, pode agendar um dia e horário em um dos locais estipulados. Os resultados chegam por e-mail ou mensagem de celular em até dois dias”, descreve. Em caso positivo, uma enfermeira passa a acompanhar o paciente por telefone. O sistema de saúde ainda oferece um kit com termômetro, oxímetro e aparelho de pressão para monitoramento. Ao melhorar, o paciente devolve os equipamentos.  

No início deste ano, apesar de seguirem as recomendações, o casal foi infectado. Ele chegou a ficar internado por cinco dias, com pneumonia. Ela contou com a assistência médica remota. Por ser profissional da saúde, Gabriel já recebeu a primeira dose da vacina. Fernanda aguarda sua vez. A expectativa é que a imunização dos adultos seja concluída até julho. O governo se empenhou para que as medidas de segurança não impactassem negativamente outros segmentos, como a economia. “De maio a agosto, fiquei sem trabalhar. Por causa do lockdown, a demanda por serviços na minha área caiu. Nesse período, o governo pagou 80% do meu salário”, declara Fernanda. A estratégia, nomeada como “furlough scheme”, evitou uma série de demissões em massa. Em relação ao Brasil, o sentimento deles é de tristeza. “Parece que não existe pandemia aí. Os brasileiros precisam ter mais respeito pela vida dos outros”, finaliza. 

LISBOA, PORTUGUAL

Quando o novo coronavírus se espalhou pelo mundo, Portugal era apontado como um dos países que melhor soube administrar a pandemia. A sensação de que estava tudo sob controle, no entanto, fez com que a nação assumisse, no início deste ano, a liderança em uma triste estatística, registrando o maior número de casos confirmados e de mortes por milhão de habitantes. A empresária Mariana Maciel, que está em Lisboa desde outubro de 2020, recorda como foi o início dessa experiência. “Viver uma temporada fora do Brasil antes de ter filhos era um sonho. Como eu e o meu marido podemos trabalhar no sistema home office, decidimos que era a hora de investir nesse projeto e escolhemos Portugal. A princípio, viríamos em agosto, mas a pandemia trouxe contratempos que atrasaram nossos planos. Chegamos aqui em outubro, quando o país tinha uma média de 2.000 novos casos de Covid-19 por dia. A situação, naquela época, era considerada controlada”, pontua.  

Em janeiro, tudo mudou. Os números chegaram ao patamar de 16.000 novos casos e mais de 300 óbitos diários. “Por duas semanas, só saímos de casa para colocar o lixo na calçada. Foi assustador. Um salto exponencial, em um curto espaço de tempo. Se fizermos uma proporção, descontando a subnotificação que sabemos que existe aí, é como se o Brasil estivesse contabilizando 320.000 casos e 6.000 mortes por dia”, compara a empresária. A sociabilização nas festas de final de ano, o frio acima da média em dezembro e o surgimento da variante inglesa foram apontados como os principais responsáveis por esse aumento. No dia 15 de janeiro, o governo decretou lockdown no país todo. Com essa medida, que ainda hoje está em vigor, os índices caíram para uma média de 300 a 900 novos casos por dia no país. 

De acordo com Mariana, com os resultados positivos, o desconfinamento está próximo de acontecer. A previsão é que se inicie na segunda quinzena de março de maneira planejada e gradativa. “Começamos a ver um pouco mais de pessoas na rua, com a maioria seguindo todos os protocolos de segurança recomendados, como o uso de máscara e o respeito ao distanciamento mínimo”, resume. Quanto à vacinação, o objetivo do governo é de que 70% da população esteja imunizada até o fim do verão, em setembro. “Espero que o Brasil aprenda com os países que estão lidando melhor com a pandemia para que o caos que se instala por aí dure o menor tempo possível, e que o avanço da vacinação aconteça de forma acelerada para que tão logo voltemos a, pelo menos, uma aparente vida normal”, acrescenta.

NEW HOPE, ESTADOS UNIDOS
Graduado em Medicina pela USP de Ribeirão Preto, com doutorado em Neurologia pela mesma instituição e com mais de 330 artigos científicos publicados em revistas internacionais, Marcelo Bigal mora em New Hope, na Pensilvânia. Exerce o posto de CEO em uma companhia de biotecnologia, que atua na área de imunidade, com sede em Boston e em Montreal (Canadá). Para o médico, Estados Unidos e Brasil foram os países que lidaram com a pandemia da pior maneira possível. “Essa conduta equivocada está diretamente relacionada com a liderança — ou a falta dela — nos dois países. Quando o problema surgiu, os presidentes em exercício nessas nações eram dois negacionistas. Pessoas com absoluto desprezo pela ciência e pela vida. Aqui, tivemos a eleição em outubro. Com a vitória do Joe Biden, o astral da sociedade é outro. Vimos que uma liderança firme e consciente faz toda a diferença na gestão de uma crise como essa. Aquele período conturbado, de brigas, gritarias e despropósitos, passou. A população parece ter entendido o que está, de fato, acontecendo. Todo mundo está usando a máscara, respeitando o distanciamento e querendo se vacinar”, afirma. 

Os números refletem a mudança de comportamento. Os óbitos caíram de 5.000 para uma média de 1.300 por dia. A vacinação também anda a passos largos. Nos Estados Unidos, 20% da população recebeu a primeira dose e 10% já está totalmente imunizada. “No Brasil só 5% tomou a primeira dose e 1.3% está totalmente imunizada. Essa demora para vacinar permite que o vírus mude. Já foram identificadas seis mutações, algumas com capacidade de transmissão e carga viral muito maior. Sabemos que desenvolver, produzir, distribuir e aplicar as vacinas é uma tarefa titânica, mas, se esse processo continuar lento, se as autoridades não tomarem uma atitude, o contágio não vai diminuir e, quando as pessoas finalmente receberem o imunizante, ele não terá eficácia”, alerta o especialista.

Marcelo confessa que não tem sido fácil observar o desenrolar da situação em seu país de origem. “Infelizmente, o Trump brasileiro permanece no poder, com sua política genocida, que divide a população ao espalhar desinformações sobre um tema tão sério. Enquanto essa ideia persistir, não há escapatória. O Brasil vai seguir perdendo vidas, desfalecendo economicamente e ficando para trás. Para mim, como cientista, é inconcebível ver que o combate ao novo coronavírus se tornou uma questão política, não científica”, lamenta. 

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