Há 54 anos, o Brasil entrava na ditadura militar
Caso emblemático da Madre Maurina, em Ribeirão Preto, coloca a cidade como importante episódio na luta pela democracia

Há 54 anos, o Brasil entrava na ditadura militar

Portal Revide conversou com especialista e jornalista que presenciou acontecimentos históricos de perto

Há exatos 54 anos, era deflagrado o golpe militar brasileiro que resultou na derrubada do presidente João Goulart, o "Jango", e na implantação de uma ditadura que durou 21 anos. Temendo uma crescente “onda comunista”, com o governo Jango e de seu aliado político, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e candidato à presidência nas eleições de 1965, os militares marcharam rumo ao Rio de Janeiro, na madrugada do dia 31 de março para o dia 1º de abril.

Apesar de ficar conhecido como “Ditadura Militar”, historiadores apontam que o termo correto para o episódio seria “Ditadura civil-militar”, já que uma parcela da sociedade apoiou o golpe. Desde 1961, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), criado por grandes empresários da época, mobilizava a classe média brasileira. Com uma forte oposição ao presidente Jango e ideias anticomunistas, o grupo ficou conhecido na época pelo seu ativismo. Um dos feitos mais lembrados foi a participação ativa no protesto conhecido como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em 19 de março de 1964.

Segundo o jornalista e presidente da Associação Brasileira dos Anistiados Políticos (ABAP), Saulo Gomes, que estava no Rio de Janeiro no momento da tomada militar, o golpe de 1964 foi um rescaldo do que aconteceu em 1961, quando três ministros militares tentaram impedir a posse de João Goulart, por considerarem-no de esquerda. No início de março de 1964, segundo ele, começaram os rumores de que estaria em gestação um golpe militar, que se efetivou no dia 31.Saulo Gomes é considerado o primeiro jornalista cassado pela ditadura

Gomes era jornalista na Rádio Mayrink Veiga e transmitiu ao vivo um momento chave naquela última semana de março. “A Associação dos Marinheiros iniciou um movimento de apoio ao presidente [Jango], mas este apoio, em verdade, veio em troca de algumas reivindicações. Uma delas era o direito do soldado raso ao voto. Entretanto, havia uma pressão dos grandes comandos dos militares que já conspiravam contra isso, entendiam que se João Goulart permitisse alguma daquelas solicitações aos marinheiros, isso enfraqueceria as forças armadas”, relembra o jornalista.

A Rádio Mayrink fazia parte da “Campanha da Legalidade”, criada por Brizola em apoio ao governo. Após o motim dos marinheiros, a emissora passou a apoiar integralmente o movimento. “Levei para dentro da rádio todos os grandes líderes que existiam na época, durante dois dias nós lançamos muitos manifestos de apoio ao Jango e de protestos contra o golpe", conta Gomes. Não obstante, o protesto não durou por muito tempo. “Nos dias 29 e 30 [de março] nós fomos alertados por autoridades do exército que a rádio seria tomada. Foram dados vários ultimatos para tirar a rádio do ar, o que eu não fiz. Eu e mais 20 companheiros resistimos por dois dias. Tínhamos uma patrulha dos fuzileiros navais nos protegendo”.

Apesar da resistência, no fim das contas as tropas do exército invadiram o prédio da rádio. “Alguns de nós conseguiram fugir, vários foram presos, metralharam todo nosso equipamento e eu consegui fugir e pedir asilo na embaixada do Uruguai”. Saulo Gomes, que mora em Ribeirão Preto há quase duas décadas é considerado o primeiro jornalista cassado no exercício da função pela ditadura.

A mestre em história política e coordenadora geral dos cursos de pós-graduação da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa, respalda o depoimento do jornalista.  “O Departamento de Censura Federal era implacável e atingiu todos os setores. Mas os mais fiscalizados eram jornalistas, artistas e professores. A imprensa, tanto nacional quanto local, ficou de mãos atadas e não podia divulgar nada que fosse contra o regime. Até os jornais estudantis eram fiscalizados. Um bom exemplo foi o  que houve com o jornal Diário da Manhã que, no dia seguinte ao golpe, foi impedido de circular por meses”, explica a especialista.

Confira o áudio da transmissão de Saulo Gomes na Rádio Mayrink em 1964:

Em Ribeirão Preto

De acordo com análise da professora Lilian Rodrigues, Ribeirão Preto não ficou atrás de grandes cidades da época com relação à censura. Segundo ela, os líderes de movimentos sociais e políticos da região de Ribeirão Preto eram monitorados de perto pela Deops (Delegacia Estadual de Ordem Política e Social). “Aliás, desde o início da década de 1920, quando foi criado originalmente o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Ribeirão Preto estava na pauta de investigações. Isto se justifica pelo fato de o município apresentar grupos operários organizados desde esse período, como é o caso da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Antes do golpe a situação já estava tensa. Não há notícias de movimentos de resistência de grande porte. Contudo, a UGT foi fechada logo no primeiro dia do golpe”, comenta.Madre Maurina foi torturada pelos militares

Um fato marcante nos 21 anos do regime militar em Ribeirão Preto foi o caso da madre Maurina. Este evento foi responsável pela cisão entre a Igreja Católica, que até então apoiava a ditadura, e os militares. Após estes acontecimentos a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tomou outro posicionamento em relação ao governo e a figura de Dom Paulo Evaristo Arns surgiu como grande líder religioso, dos direitos humanos e políticos.

A madre franciscana Maurina Borges da Silveira, com 43 anos na época e diretora do orfanato Lar Santana, na Vila Tibério, foi presa, torturada e exilada sob acusação de pertencer a uma organização guerrilheira.

Segundo o livro “A Coragem da Inocência” escrito pelo irmão da madre, o Frei Manoel Borges da Silveira, e organizado pelos jornalistas Saulo gomes e Moacyr Castro, as suspeitas se basearam no fato de a madre ter permitido que um membro das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), Mario Lorenzato, fizesse reuniões de estudantes em sua instituição religiosa.

A Madre, que não sabia do teor das reuniões e que quando tomou ciência resolveu dissolver a célula, acabou sendo presa pela Polícia Militar em Ribeirão Preto e depois transferida para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo. Durante os cinco meses em que ficou presa, Maurina foi torturada constantemente. Os registros foram feitos em várias cartas que ela enviou à autoridades e também em entrevistas concedidas anos depois. Em uma destas cartas, presente no livro de Frei Manoel, a madre encaminhava seu protesto ao Ministro da Justiça, em dezembro de 1969.

"Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas palavras, venho relatar a V.Exa. as torturas a mim infringidas, por agentes da Polícia de São Paulo, como a aquiescência de delegados de Ribeirão Preto.

Fui conduzida ao Quartel Militar de Ribeirão Preto, às 14h do dia 25 de outubro, julgando que se tratasse apenas de uma declaração [...] Não me foi possível continuar, pois interrompiam-me a cada instante, com gritarias e ameaças, usando uma terminologia a qual sinto-me envergonhada de repeti-la.

[...] “Sua freira do diabo. Você não é filha de Deus. Fica sabendo, que teremos o prazer de prender bispos e padres. Não pense que eles poderão te livrar. O que você tem nos joelhos são cicatrizes de tanto rezar... e porque não reza agora? Não adianta mais". [...] Davam risadas sarcásticas".

Segundo Lilian Rodrigues, “o caso de Madre Maurina é importante para refletirmos sobre como a quebra do regime democrático pode criar situações de extremo constrangimento e desrespeito aos direitos civis, atingindo, inclusive, pessoas que não estão envolvidas com política diretamente, como era o caso dela”


Foto: Wikipedia/Arquivo Pessoal

Compartilhar: