"Acabou. Que meu filho descanse em paz e que vivamos tranquilos."
“Lembro de Marcos como um menino de ouro, a joia preciosa da família. Infelizmente, teve de partir tão cedo"

"Acabou. Que meu filho descanse em paz e que vivamos tranquilos."

Maria Rosenilda da Conceição Delefrate relembra história do filho morto em 2013 durante manifestação em Ribeirão, após condenação do empresário Alexsandro Ichisato de Azevedo, acusado do atropelamento

Sentada em um sofá de uma casa singela rodeada de muros no bairro Monte Alegre, ela revisita o passado com saudade. Nos olhos, ainda a tristeza de carregar uma dor inexplicável. No coração, o sentimento de justiça. Em uma manhã chuvosa de segunda-feira, ao lado do esposo e em meio a paredes abarrotadas de fotos do filho, detalha cenas daquele dia emblemático e trágico para a família: 20 de junho de 2013. No Brasil, as ruas eram tomadas por uma manifestação contra o governo federal. Em Ribeirão Preto, ela e a família choravam a dor de saber que o filho de 18 anos foi atropelado por um motorista desgovernado, que fugiu sem prestar socorro às vítimas.

Maria Rosenilda da Conceição Delefrate entrou para a estatística de mães que encaram a dura realidade de ver os filhos perderem a vida. Em um julgamento que durou dois dias, iniciado em 3 de fevereiro, o empresário Alexsandro Ichisato de Azevedo foi condenado a 64 anos de prisão por atropelar e matar o estudante Marcos Delefrate no cruzamento das avenidas João Fiúsa e Adolfo Bianco Molina. Outras quatro pessoas também ficaram feridas. A mãe, que passa a maior parte do tempo em casa, e por vezes sai para trabalhar e passar roupas de famílias, em raros momentos sorrindo, afirma que o filho teve uma infância muito tranquila e saudável. Marcos dividia o tempo entre estudos, trabalho, academia e idas à igreja. O menino, influenciado pela avó, que é frequentadora assídua de missas, começou a rezar o terço com cinco anos. Mais tarde, aprendeu a tocar violão e se encontrava sempre com grupos de jovens oradores. O pai, Paulo Pimentel Delefrate relembra que os encontros aconteciam em frente à casa, e por vezes, estendiam-se até as duas da manhã. Ele, que decidiu manter viva a memória do filho, tatuando o rosto e nome no braço direito, não se esquece de quando Marcos ganhou o primeiro violão.

Foi por meio da música que ele alegrou muitos jovens de sua geração. Fez da igreja Santo Estevão, no Ipiranga, quase sua segunda casa, e sonhava em cursar Engenharia Eletrônica. Em uma conversa com a avó, Maria Pimentel Delefrate, o menino disse que ficaria reconhecido mundialmente. Infelizmente, isso não aconteceu em razão da tragédia, lembra o pai, que deu o último abraço antes de o jovem seguir para manifestação e escutou: “Logo volto”. A seguir, a mãe de Marcos, Maria Rosenilda, discorre sobre a perda do filho e de que maneira segue a vida, após sete anos, enfrentando depressão, mesma doença desenvolvida pelo marido.

Por que você acha que seu filho Marcos Delefrate decidiu participar da manifestação do dia 20 de junho de 2013?

Acho que por conta de ele ser jovem ou influência de amigos. Vi que muitos insistiram para que fosse. Chegou a dizer que não participaria, mas mudou de ideia, depois de receber algumas ligações.

Marcos estava participando de um evento considerado por muitos como a maior série de manifestações de rua desde o movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor. Seu filho sempre teve o espírito de liderança, lutava por alguma causa?

Não. Ele não gostava de discutir sobre três temas: política, religião e futebol. Encarava tudo normalmente e foi por influência de amigos. Chegou da academia naquele dia e decidiu estar presente no protesto. 

O que você se lembra daquele dia?

Estávamos dormindo. O telefone tocou. Minha sogra, Maria, foi ao banheiro e trancou a porta. Eu não sabia o que estava acontecendo. Quando liguei para o Marcos e ele não atendeu, eu me desesperei, achei que tivesse se envolvido em briga. Na mesma hora, várias pessoas foram se amontoando em minha porta e eu fiquei sem saber o que fazer. A turma da igreja nos pegou aqui e disse que deveríamos ir ao posto central. Na minha mente, ia encontrar meu filho desmaiado.

Quando se deu conta do ocorrido?

Chegando ao posto. Eu já não enxergava ninguém em minha frente. O médico me pediu para entrar, disse que havia feito uns procedimentos no Marcos, mas que ele tinha vindo a óbito, em razão de um atropelamento. Ele chegou ao posto sem vida. Quando recebi a notícia, fiquei mais desesperada. Eu nem me lembro muito bem, mas pessoas que estavam comigo me contaram e tentavam me acalmar.


Qual foi o momento em que você entendeu que havia perdido o filho?

Eu dizia que precisava ver o Marcos. Meu marido não teve coragem de entrar onde ele estava. Quando entrei em uma salinha que fica aos fundos do posto, eu o vi deitado em cima de uma pedra, algo de mármore, parecia. Conversei com ele como se estivesse vivo. Achei que pudesse estar me enganando, sempre gostava de brincar comigo. Eu dizia: ‘levante daí, vamos embora com a mamãe’.

Como você e sua família encararam essa perda tão precoce? Tiveram ajuda de amigos?

Nunca é fácil. Tivemos ajuda, sim, de pessoas da igreja. Muitas pessoas se afastaram, talvez por receio de vir aqui e se lembrar dele. Eu senti muita falta desse apoio. Pensava: ‘o Marcos foi embora e ninguém mais vem aqui nos visitar, onde estão os colegas dele?’.

Já que esse apoio não vinha, buscaram qual saída?

Procurei sentir como se o Marcos estivesse presente aqui para me dar forças todos os dias, para trabalhar e lutar. Ainda sinto que ele não me largou, era um menino muito abençoado.

Quando você voltou à rotina normal?

Por alguns dias, pensei que o Marcos ainda poderia chegar à casa. Lembro muito dele. Fui voltando à rotina tentando segurar nas mãos de Deus. Só ele para ajudar nesse momento.

Dá para descrever a dor de perder um filho?

Muito difícil. É como se tivessem tirado um pedaço de mim. Quem está de fora nunca vai entender.

Quando você recebeu a notícia de que seu filho tinha sido atropelado por alguém, o que pensou naquele instante?

Fiquei com ódio da pessoa. Cai um temporal em cima de você. Estava muito irritada. Ideias passaram em minha cabeça. Contudo, depois, tudo se acalmou. Não guardo mágoa.

Isso quer dizer que o perdoou? Sim. Por que guardar raiva dele?

Se eu tivesse esse sentimento por sete anos, já teria infartado. Eu me senti muito aliviada e em paz ao fazer isso. Meu filho também não guardava ódio. Fiquei triste por ver o sofrimento da mãe no tribunal, rezando o terço e chorando.

Alexsandro Ichisato chegou a olhar para você no dia do júri popular e pediu perdão?

Sim, olhou para mim e pediu perdão antes da condenação. É muito triste ver uma pessoa entrando algemada, arrastando os pés. Como mãe e olhando para a família dele, senti que doía na gente. Dava impressão de que era um filho meu que estava acorrentado.

A família entrou com pedido de indenização pela morte de Marcos. Você acha que ainda vai vencer mais essa luta?

Disso nossa advogada está cuidando. Mas sei que ele [referindo-se a Ichisato] não tem nada em seu nome. Sinceramente, não tenho esperanças de que vou receber, mas o mais importante aconteceu: o julgamento dele.

Você disse que teve depressão pós-parto. Alguém da família ficou doente depois que o Marcos morreu?

Sim. Meu marido desenvolveu quadro de depressão e faz tratamento. Eu já fazia acompanhamento com psiquiatra e, com ajuda, me sinto até mais aliviada. Antes, eu até era mais alegre, agora, é normal eu ficar mais retraída.

Você fica mais retraída e, ao que parece, seu marido também se isola mais em casa. O que isso acarreta?

Nunca fui de sair de casa. Marcos sempre me cobrava para fazer isso com mais frequência, que eu deveria ir à academia, à igreja. Sei que devo participar mais, sair, mas me sinto sempre recuada. A vida me fez ser assim. Eu saio cedo, volto perto do meio-dia. O trabalho me anima, é sempre bom ocupar a mente e se distrair.

Maria e o marido, Paulo Delefrate, que tatuou o rosto do filho e o nome no braço direito, hoje, não pode trabalhar, em razão de problemas de saúde, como a depressão

E você, tão nova, não pensa em estudar ou se ocupar de outra forma?

Até cheguei a estudar, quando o Marcos ainda era vivo, mas não deu para continuar. Minha cabeça não ajudou mais, o estudo de hoje é diferente. Gosto muito de fazer caça-palavras e pinturas em livros. Dizem que pareço uma criança. Livro de mandalas, por exemplo, servem de terapia. Assim, ocupo melhor meu tempo.

Quando ouviu a sentença no dia 3 de fevereiro, você sentiu que uma segunda vida começaria?

Sim, pelo menos, agora, não preciso ficar escutando se ele vai a júri ou não. Acabou. Que meu filho descanse em paz e que vivamos tranquilos.

Seu filho recebeu, à época, uma homenagem. Foi colocado um busto no local onde Marcos morreu. O que achou da iniciativa?

Não gostei porque nem ficou parecido com ele. Então, nossa família decidiu colocar uma foto no local, pois muitas pessoas passavam e não sabiam quem era e o que tinha acontecido. Sou uma pessoa bem simples. Só uma foto bastaria.

Você tem algum desejo especial que ainda não foi realizado?

Gostaria muito de conhecer a praia. Eu não entraria na água (risos), mas só de encostar o pé, já ia sentir que ela leva todas as impurezas e as energias negativas.

De que forma quer se lembrar do filho?

Como um menino de ouro, a joia preciosa da família. Infelizmente, teve de partir tão cedo, mas creio que esteja muito bem.


Fotos: Julio Sian

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